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Perna de porco da vovó
Gil Cordeiro Dias Ferreira

Resumo:
Imperdível receita de pernil de porco preparado por uma vovó italiana, num domingo dos anos 50, no Rio de Janeiro.

PERNIL DE PORCO DA VOVÓ

O melhor da festa era esperar por ela. Todos os domingos, o almoço da família – umas vinte pessoas, entre filhos(as), netos(as), genros, noras e os inevitáveis “perus-de-fora”... – era na casa da Vovó - napolitana de boa cepa, "la vera Nona"... E pelo menos em um deles por mês, saboreávamos o pernil de porco. Particularmente em certas comemorações, como Dia das Mães, Dia dos Pais, aniversário de alguém, ou mesmo no Natal.
Tudo começava na quinta-feira, com um telefonema ao criador de porcos, que morava em Nilópolis. Vovó encomendava um pernil de 4 a 5 kg, de um “porco daqueles bem vira-latas”...
Na sexta-feira, pela manhã, outro telefonema – agora para o “Seu Abel”, do Armazém Sublime. Para encomendar uma lista de “não perecíveis”, que não variava muito. E depois, íamos à feira, na Praça Xavier de Brito, ali na Muda da Tijuca, para comprar os “perecíveis”.
Por volta das duas, três da tarde, chegavam o pernil e as compras do Armazém. Tinha início, então, o grande ritual. Minha avó, virginiana, e, como tal, detalhista e meticulosa, ia agindo com precisão cirúrgica, dando ordens muito claras – e enérgicas! - a nós, seus jovens netos, e às fiéis empregadas Minervina e sua filha Dulcinéia.
A assadeira imensa de barro já havia sido retirada do armário sob a pia e muito bem lavada. Enquanto isso, o pernil “descansava” numa travessa de alumínio, mergulhado numa água onde haviam sido espremidos seis ou sete limões, naturalmente sem os caroços.
De início, derretia-se no fogo uma xícara de chá – exatamente uma, rasada com faca – de manteiga “Sinhá”, com sal. O líquido cheiroso resultante dessa “química” era derramado na assadeira de barro. A ele eram juntados: 4 a 5 cebolas brancas médias (uma por kg do pernil) picadas bem miudinhas; 1 molho de salsa e outro de cebolinha, sem talos, também picados; uma cabeça de alho roxo, dentes grandes, muito bem socados; 4 a 5 colheres de sopa de sal, rasadas com o dedo (uma por kg do pernil); 4 a 5 colheres de sopa de vinagre branco (uma por kg do pernil); 4 a 5 colheres de sopa de molho inglês (uma por kg do pernil); 1 colher de chá de pimenta do reino branca, bem cheia; 4 a 5 colheres de sopa, rasadas, de mostarda (uma por kg do pernil); 1 copo (200 ml) de vinho Madeira Izidro “R” (seco); 4 a 5 folhas de louro grandes (uma por kg do pernil); duas a três nozes moscadas muito bem raladas (1/2 noz por kg do pernil); e o suco de 4 a 5 tomates grandes (um por kg do pernil), cozidos junto a uma cebola toda espetada de cravos, que ao final era descartada, e a seguir peneirados.
Minha avó misturava tudo isso numa pasta fortemente aromática. Depois, fazia vários furos no pernil, com uma faca de ponta; colocava-o na assadeira e o esfregava durante um bom tempo com essa pasta, para que entranhasse bem nele.
O passo seguinte era cobrir a assadeira com papel de alumínio, vedando tudo muito bem, e colocar na geladeira. A essa altura, já eram cinco ou seis da tarde de sexta-feira: hora de tomar banho, para depois ingerir um vinho do Porto enquanto se aguardava o jantar.
Ao longo do sábado, Minervina e Dulcinéia faziam a faxina na casa: palha de aço no assoalho, depois cera Parquetina e esfregão; vassourão no teto; varredura geral; baldeação e esfregação de azulejos dos banheiros e da cozinha; lavagem de louças, copos e talheres, cuidadosamente retirados da cristaleira e do “birô” de jacarandá; tirar poeira e passar óleo de peroba nos móveis; e por aí a fora.... Enquanto isso, minha avó começava a preparar os acompanhamentos do pernil: feijão preto com costela e lombo, arroz branco com coentro, salada de batatas, cenoura, chuchu, azeitonas sem caroço, pimentões de várias cores e cheiros verdes, muito bem temperada com maionese feita em casa....E de duas em duas horas, religiosamente, abria a geladeira, levantava o papel de alumínio e virava o pernil...
E por fim, o domingão ! Primeiro, o café da manhã, que ninguém é de ferro. Minervina e Dulcinéia estavam lá – naquele tempo, as empregadas trabalhavam aos domingos...
Às sete e meia, ligava-se o forno. Às oito em ponto, a assadeira era levada a ele. Íamos todos para a Missa – exceto as empregadas, que ficavam de olho no forno.
E durante quatro horas, até meio-dia – ou mais, se necessário – o bicho ia sendo assado, volta e meia revirado na assadeira, e banhado com aquela vinha-d’alhos incrível...
Meu avô já havia comprado várias cervejas e refrigerantes, a mesa já estava posta, com toalha de linho impecável e aqueles descansos de madeira, axadrezados e dobráveis, para os pratos. Mesa também de jacarandá, combinando com a cristaleira, o birô e as cadeiras, daquelas que se abria no meio, para colocar duas extensões, de forma a caber toda a família em volta....Vitrola ligada, com discos de 78 r.p.m: sob o comando de meu avô, ouvia-se Francisco Alves, Carlos Galhardo, Sílvio Caldas, Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Emilinha, Marlene, Elizeth Cardoso, Cauby Peixoto, Orlando Silva...Ou então a Rádio Nacional ! Mas quando chegava minha avó, só se ouviam as cançonetas napolitanas - O Sole Mio, Torna a Sorrento, Mallafemena, Core'ngrato, Funiculi Funiculá..
E tome de chegar gente, a provar o “rabo-de-galo” que meu avô preparava, beliscando amendoim torrado, castanhas, picles...até a hora de a comida vir para a mesa...E lá vinha o pernil...Minha avó forrava com folhas de alface americana uma grande travessa de porcelana inglesa Ainsley; sobre esse "berço", deitava o pernil, e, à volta dele, rodelas de abacaxi - sobre cada uma delas, uma outra, de figo, e, por cima destes, cerejas ao Maraschino - branco, verde e vermelho, as cores da Bandeira de sua saudosa Itália... A partir daí...Avanti, Italia ! Forza, Azurra ! Dove sei un italiano, là e il tricolore ! Ah, deliciosas lembranças das tardes de domingo...
E as sobras do pernil duravam ainda alguns dias, na geladeira, sendo consumidas aos poucos, como deliciosos sanduíches, com pão francês fresquinho, ou de fôrma, cortado na própria padaria...
Sim, o pernil era maravilhoso. Mas o bom mesmo era curtir esses domingos na casa da Vovó !


Biografia:
Brasileiro, casado, nasceu no RJ, em 06/09/1946. É Oficial de Marinha (Escola Naval, 1967) e Administrador (UNESA, 1996). Passou à reserva em 1996 e, desde então, trabalha na iniciativa privada, como Administrador e Consultor. Tem mais de sessenta trabalhos publicados sobre assuntos militares, história, geografia, política e ficção, em periódicos especializados e jornais do RJ e de MS. Conquistou vários prêmios literários e, em 2000, o Clube Naval editou seu livro “Coisa de Naval”. Tem livros à venda nos sites Clube de Autores, AgBook, Recanto das Letras e Bookess.
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