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Graça Maravilhosa
Gil Cordeiro Dias Ferreira

Resumo:
Cinqüentão boêmio, com habilidades musicais, encanta-se com uma jovem mulata feirante, cantora de gospel.

Graça Maravilhosa
- Complicado, isso de traduzir do Inglês. Por exemplo, amazing.
- Daqueles vídeos do Spielberg? Amazing Stories? As tais Histórias Incríveis? Fantásticas? Extraordinárias?
- Não, cara. Isso era um programa de rádio do tempo do meu avô! Tô falando de uma música – Amazing Grace .
- Ah, sei. Todo filme americano em que tem enterro, o fundo musical é esse. Ou de caubói, Charles Bronson ou Clint Eastwood tocando isso numa gaita, num deserto. Ou aqueles cantos gospel, de negros protestantes, tipo A Cor Púrpura, aquela cantora reencontrando o pai. Mas era outra música.
- ‘Cê tá com o Spielberg na cabeça hoje, hein? Mas escuta:

Amazing Grace, how sweet the sound / That saved a wretch like me / I once was lost but now I’m found / Was blind, but now I see

- É. Você canta direitinho. Lembrou a gravação do Elvis...
- Isso, goza. Pelo menos não falou que parecia a Nana Mouskouri!
- Ih, magoei. Liga não, é piada. Mas qual é o teu lance com essa música?
- Pois é, cara. Sacou a tradução do título?
- Não (pausa – um gole de chope, uma fatia de provolone). Diz aí.
- Seguinte, curte uma feira?
- Feira? Tô fora. Quando era guri, minha mãe me mandava ir a uma perto de casa, para comprar alguma coisa, mas depois, nunca mais.
- ‘Cê não sabe o que tá perdendo. Olha, a tradução é Graça Maravilhosa. Pescou?
- Malandro, quê que tem a ver essa música com feira? Se fosse sertaneja, ou aqueles boleros bregas, a 2000 Watts, nos toca-fitas...
- Toca-fitas? Tamos em 2011, amigão, toca-fitas, nem no Robauto.
- Cara, todo feirante tem uma Brasília 81 verde, caindo aos pedaços, porta amarrada com arame, com melancia, abóbora, uma gaiola com um curió e um toca-fitas K-7, aquelas músicas de Anísio Silva, Teixeirinha e Orlando Dias nas alturas.
- Tu já freqüentou feira, hein? Mas faz tempo que não vai a uma, isso era quando tu tava no Primário... Agora é só funk, di-jêi , em-ci , essas bossas. Peraí. Êi! Garçom! Mais dois! Leva esse provolone, murchou com o sol, traz salaminho e azeitona. E limão! Êta, barzinho de praia!
- Boa pedida.
- Isso aí. Mas te liga. Graça Maravilhosa, cara. Não te diz nada?
- Néris de pitibiriba, meu velho vive repetindo. Gíria dos anos 50. Já ouviu?
- Nunca ouvi, não, esquece. Graça é a caixa de uma barraca que vende frangos. E ela é ma-ra-vi-lho-sa!
- Ah, não acredito.Tu tá enrabichado por uma feirante? Quem é, mulher ou filha do barraqueiro? Te segura, cara. De repente, tu acorda com a boca cheia de formiga.
- Nada...Lembra do Morengueira ? Compôs e gravou a Feira do Irajá, conhece? A feira da Graça Maravilhosa é em outro lugar, mas...
- Tá, conta aí (pausa – o garçom pousa dois chopes e os beliscos).
* * *
Aos domingos eu me enfarpelo legal
Vou fazer onda lá na Feira do Irajá
E ao mesmo tempo, aproveito o ensejo
P’rá ver se vejo uma tal de Dagmar...

Sempre gostei de feiras. Pequeno, pai e mãe trabalhando, ficava com minha avó materna, que me levava a uma, numa pracinha suburbana, às sextas, meio longe da casa dela, íamos de bonde. Cresci, continuei indo por conta própria, nos muitos pontos em que morei daquele mesmo subúrbio: de segunda a sexta, cada dia numa rua. Aos sábados, neca; e aos domingos... Ah, a feira de domingo... Bem Zona Norte, estação de trem, pagode na calçada, churrasquinho de gato e cerveja barata, mas tudo de primeira, padrão Cobal – inclusive os preços, bem salgados...
As posições das barracas na rua não mudam. Há décadas os feirantes se posicionam, desde as quatro da matina, nos mesmos lugares, sem layouts nem palpites de consultores. Não falha. Na pré-feira, antes da rua principal, pequenos ambulantes com ervas, cascas de laranja da terra, limões, potes de mel, miudezas e velharias como discos de vinil e livros em pedaços.
Depois começa a feira p’rá valer. Uma barraca de caldo-de-cana e pastéis, outra de quitutes baianos; à esquerda, o florista, carros-frigoríficos com peixes e camarões, o tripeiro, uma penca de guaiamus, pequenos utensílios domésticos... À direita, mais carros-frigoríficos, um deles com lingüiças e carnes suínas e dois com frangos, miúdos e ovos...
* * *
É uma mulata muito disputada
Com seu belo penteado e um rico cordão de ouro...
Se você vê ela de saia justa, é...
Como de fato, a mulata é um estouro...

Foi num desses últimos que a vi, operando o caixa. Sim, sem dúvida, ela estivera ali anos antes, ainda guria, ajudando o pai. Depois sumira por um tempo, de certo ficava em casa ajudando a mãe. Agora voltara, mas... puxa, como cresceu!
Freguês antigo, fiz lá meu pedido habitual de coxas, fígados e moelas. Atendido pelo pai, de uma habilidade incrível para tirar as pelancas dos frangos, com um facão de dar inveja a cangaceiros nordestinos. Tudo posto em sacos plásticos bem amarrados e passados à bela, para pesar, fechar a conta e cobrar.
Acerquei-me dela, na ponta do carro, de pé no piso alto da carroceria e afastada dos fregueses pelo balcão, repleto de carcaças, pés, cabeças e outras peças dos pobres galináceos. Morena, cabelos muito lisos, tingidos de claro, tipo loura - loreal, presos num rabo de cavalo. Fazia calor e ela, com movimentos lentos e sensuais, começou a retirar o jaleco branco, em cujo bolso entrevi um dístico bordado em azul - algo como Jesus, ou Deus, salvação, amor, fidelidade. Coisas do gênero, que a falta dos óculos me impediu de decifrar. Ah, a idade do lobo. Corre atrás da Chapeuzinho o dia inteiro, mas fica mesmo com a vovó. Ou a do condor - com dor aqui, com dor ali.
Ela dobrou cuidadosamente o jaleco e guardou-o sob o balcão. Usava calças jeans índigo blue justíssimas, realçando o derrière bem torneado. Uma blusa rosa de alças, curta, revelando uns três dedos da barriguinha sarada – sem piercing no umbigo – deixando claro que soutien ali não havia: eram bem perceptíveis os bicos dos seios pequenos, duros e empinados. Maquiagem discreta. Óculos de aro metálico fino e brincos pequenos – orelhas furadas, claro. Pesou minhas compras, disse-me o valor e estendeu a mão para pegar a nota de cinqüenta que lhe entreguei, no que vi as unhas bem cuidadas, pintadas numa cor escura e adornadas com pequenas estrelas. Ela cheirava a alfazema, pude perceber, apesar do aroma nada agradável dos pollos atropelados.
Passou-me o troco, dei um jeito de roçar um pouco mais forte aquela mão delicada e perguntei seu nome.
- Graça.
- Ah, Maria das Graças - sugeri, tentando estender o papo.
- Não, Gracinda. Mas todo mundo me chama de Graça, prefiro.
E virou para trás, para atender ao pai, que já lhe entregava mais sacolas para pesar. A cintura baixa do jeans deixava à mostra uma nesga da calcinha branca. Meu discurso ensaiado morreu na garganta, ficou só a idéia de que ela ia pagar cofrinho. Guardei o troco, murmurei um inaudível tchau e retomei minha caminhada, agora em direção aos verdureiros e fruteiros, meus velhos conhecidos, lá do final da feira. Aqui e ali, uma beliscada nas amostras de aipim cozinhando em panelas velhíssimas. E água de côco, que carregar sacola às onze da manhã, no verão carioca, é dose.
* * *
Quando ela entra dentro daquela feira
Leva uns esbarros, ainda pede desculpas,
De saia justa é um princípio de guerra,
É um show, é um desfile em praça pública...

Começo a voltar, e... Quem vem lá? Graça! Ah, não é tão alta quanto parecia, em cima do carro. Soltou os cabelos... Ué, parou...Está conversando com aquele mulato de terno. De terno na feira? Ah, vi a Bíblia debaixo do braço. É o Pastor da igreja dela. Acabou o papo, ela vem em minha direção, o Pastor foi para o outro lado. Já sei, Graça vem para aquela barraca onde o pessoal almoça. Tem ali um fogão de tijolos, com gás de botijão. Um bando de panelões daqueles de quartel. O cheiro é divino. Feijão, arroz, carne assada com molho ferrugem e batatas. Muita laranja, vidros de pimenta e a cerva rolando. A turma começa a almoçar às dez.
Ela se aproxima, me reconhece, sorri, faz um ligeiro aceno com as mãos. Arrisco:
- Oi! Já vai almoçar?
- Oi! Vou... Só tomei um cafezinho de madrugada...
- Você é de igreja? Tava conversando com o Pastor, né?
- É, ele é orfeonista, eu canto no Côro...
- É mesmo? Soprano?
- Ele diz que é, não entendo muito disso...
- Ah, mas as músicas você conhece... Aposto como sabe essa, escuta:
Se as águas do mar da vida / quiserem te afogar...
Ela se surpreende, olha bem nos meus olhos e emenda:
Segura na mão de Deus e vai...
Aproveito a deixa, largo a sacola no chão, seguro a mão direita dela com a minha esquerda e continuo:
Segura na mão de Deus, segura na mão de Deus, pois ela, ela te sustentará...
Sinto que consegui emocioná-la. Sua mão é quente e úmida, ela aperta a minha com mais força. A voz é linda, ela sabe cantar acapella, mas abaixamos o volume, para não chamarmos a atenção. Animados, fazemos um côro, ela na segunda voz:
Não temas, segue adiante, e não olhes para trás... Segura na mão de Deus e vai...
Ambos nos entusiasmamos, ela solta minha mão. Simulamos aplausos, baixinho.
- Como o senhor canta bonito... É de igreja, também?
O senhor é uma ducha de água fria. Mas que fazer? Ela anda pelos vinte e cinco, eu quase nos cinqüenta... Respondo, com olhar pidão:
- Não, não sou, não... Sou músico amador desde moleque. Já toquei violão e teclado, cantei na noite, fui boêmio, tive conjunto, às vezes me pediam p’rá cantar em casamentos, daí eu ter aprendido essa música, já ouvi em igrejas católicas e protestantes, até hoje não sei de qual das duas ela é...
- É gospel, do Pastor Nelson da Motta, mas o Padre Marcelo Rossi também canta.
- É mas tem outra mais bonita, que eu gosto mais.
- Qual?
- Uma com o seu nome!
- Meu nome? Gracinda? Caramba, nunca ouvi! Como é?
- Não é Gracinda. É Graça. Em Inglês – Grace.
- Grace Jones?
- Não, não é a cantora que se chama Grace. É a música – Amazing Grace. Conhece?
- Ah, já ouvi em filmes... Bacana... No YouTube tem muitos filminhos com ela, gosto de um com um negro que também toca piano, numa igreja.
- Wintley Phipps. É Pastor. Um vozeirão, show de bola.
- É mesmo... Que legal... O senhor canta ela também? Todinha?
- Quase toda... vamos lá, baixinho, se não o pessoal vai parar do nosso lado e começar a jogar moedas na minha sacola.
Ela ri gostoso, vejo seus lindos dentes mais que alvos e ataco:
’T'was Grace that taught my heart to fear / And Grace, my fears relieved /
How precious did that Grace appear / The hour I first believed…

Mas não consigo prosseguir, porque ela toca de leve meu braço com a ponta dos dedos, aponta para a barraca do almoço e mostra que o irmão a chama de lá. Pede licença, diz que vai falar com o Pastor para eu cantar na igreja. Pergunta meu nome, passo-lhe um dos torpedinhos que trago sempre, para essas emergências, só com o prenome e o celular. Ela lê , guarda-o no bolso do jeans e promete ligar.
* * *
Um português vinha lhe acompanhando
Mostrou-lhe dinheiro, ela tomou por desacato...
Tomei-lhe a frente, contei minha história,
Ganhei a mulata e amarrei no papo...

Domingo ainda. Depois do almojanta, desço até o pé-sujo de fé, ali na esquina. TV no pay-per-view mostrando um jogão, papo furado com os pinguços de sempre, entre um chope e outro o celular toca. Não identifico o número. Atendo, assim mesmo.
- Quem? Graça? Mas que surpresa agradável! Peraí, tá muito barulho, deixa eu mudar de posição... Pronto, aqui tá melhor! Pode falar! E aí, o almoço tava bom?
- * * *
- Ah, bondade sua... Não canto tanto assim, não... Tô meio destreinado...
- * * *
- Quando? Hoje? Caramba... Que legal... É mesmo? Mas a que horas?
- * * *
- Tá certo, topo, sim...Vou até em casa, tomo um banho, boto uma roupa melhor... É perto daqui, dá para ir a pé, te encontro lá às seis da tarde, tá bom assim?
- * * *
* * *
(Pausa. Retorno ao barzinho de praia. Mais chopes e bolinhos de bacalhau.)
- Cara, então tu ganhou mesmo a morena? E aí? Quê que tu disse em casa que ia fazer?
- Pois é, campanha. Fui em casa, tomei um banho, botei uma roupa melhorzinha, nada chique, p’rá não dar na pinta. Sem perfume, só desodorante, mesmo. Falei que ia jogar buraco na casa do Beto, já fiz isso antes, colou...
- Corajoso, hein? O Beto sabe?
- Avisei a ele, claro. Mas escuta. Saí a pé, carro é ruim. Passei na farmácia, comprei camisinha, compro sempre, minha mulher não usa pílula, o vendedor já me manja.
- E aí... tchan, tchan, tchan, tchan!!! Cheio de amor para dar...
- Pois é, a Graça tinha dito assim – um encontro de surpresa... na hora eu falo... Seis horas, naquela esquina, perto do Motel Je t’aime. E deu uma risadinha marota. Fiquei doidão. Cheguei antes, senti falta do cigarro, quase comprei um maço, mas já larguei faz tempo...
- E aí, ela chegou na hora, fez doce ou te deixou na bóia?
- Chegou bem na hora. Sozinha, vestido longo, linda de morrer, estranhei a gola fechada. Sorriu, perguntou se tava tudo certo... Aí eu vi a Bíblia na mão dela...
- Bíblia? Não acredito! Ela levou a Bíblia para o Motel?
- Que Motel, cara. A igreja dela é em frente. Me deu o braço, falou – Vamos? – e me fez atravessar a rua. O tal Pastor da feira estava na porta nos esperando. Me abraçou, disse que já sabia que eu cantava muito bem, melhor ainda que morava por ali, ia ter que entrar para a comunidade...
- Hehehehehehe...Desculpe, cara, só rindo... Que furada... E aí, rezou muito?
- Nem tanto. Mas cantei Segura na mão de Deus e Amazing Grace até as dez da noite... Garçom! Mais dois!
* * *



Biografia:
Brasileiro, casado, nasceu no RJ, em 06/09/1946. É Oficial de Marinha (Escola Naval, 1967) e Administrador (UNESA, 1996). Passou à reserva em 1996 e, desde então, trabalha na iniciativa privada, como Administrador e Consultor. Tem mais de sessenta trabalhos publicados sobre assuntos militares, história, geografia, política e ficção, em periódicos especializados e jornais do RJ e de MS. Conquistou vários prêmios literários e, em 2000, o Clube Naval editou seu livro “Coisa de Naval”. Tem livros à venda nos sites Clube de Autores, AgBook, Recanto das Letras e Bookess.
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