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Vereda Nordestina
Gil Cordeiro Dias Ferreira

Resumo:
O autor, premido por uma nostalgia de suas origens nordestinas, coloca no papel os traços culturais que herdou, em termos de prosa, poesia, música e folclore.

VEREDA NORDESTINA
Para o amigo e Poenauta Marinho, em resposta a seu texto “Sobre Quibes e Tapiocas”
Meu caro Marinho:
Desde sua mais que merecida admissão à Venerável Ordem Marinheira dos Poenautas, nós, seus confrades, passamos a dispor de um relé cerebral automaticamente ativado quando da anunciação de textos de sua lavra; de imediato, piscam as luzes coloridas e ecoa a mensagem – vem aí coisa de mestre.
Foi assim hoje, quando me deparei com o e-mail (ou “imeiu”, no dizer do bodeverdiano Bus) que transportava a magnífica crônica “Sobre Quibes e Tapiocas”. O próprio título já é magistral, pois, como sói ocorrer aos títulos, expressa, integralmente, o teor do tema abordado – no caso, o debate quanto à escolha do local de nosso próximo encontro: Quiosque Árabe da Lagoa (“Quibes”) ou Feira de São Cristóvão (“Tapiocas”). Claro, preciso e conciso, como nos ensinavam Hamilton e Sílvio Elia, naquele distante e saudoso tempo em que vivíamos abrigados pelas muralhas da Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição de Villegaignon.
De início, duas observações – de um lado, muito me honra ser considerado, por você, o metteur em scène de nosso grupo, mas, calçando as sandálias da humildade, prefiro ver-me como um mero escriba, responsável pelo registro em Ata de nossas atividades, ou, no máximo, um arremedo de “agente provocador”; de outro, espicaçam-me a curiosidade os porquês de, tendo sido o Sep seu pupilo, na infância comum em Resende, ter ele, também laureado escritor, desenvolvido um estilo tão diverso do seu, vale dizer, tão cáustico, tão cartesiano, tão desprovido de poesia, tão “Gregório de Mattos, o Boca do Inferno”, enquanto você prima pela sutileza, pela verve, pela fleugma, pelo inimitável “sense of humour”, como também o faz – registre-se ! – o Mano Zé. Mas que seria do azul se todos gostassem do amarelo, não é mesmo? Assim, por certo as preferências dos leitores de ambos se distribuirão equitativamente, ou segundo a Curva de Gauss, que, parece-me, regula a distribuição de todos os fenômenos transcorridos no orbe terrestre.
Mas retomo o foco de minha proposição. Logo às primeiras linhas de seu texto, transportei-me para a serra de Baturité, no Ceará, na primeira década do século XX. Sentei-me à varanda do casarão, ao lado de minha bisavó Jovina, com seu cachimbo longo, fino e recurvado, cheio de fumo de rolo picado por canivete, e de meu bisavô Antonio, com seu jeitão circunspecto, acenando para seu filho, também Antonio, meu avô, que partia, viola nordestina às costas, em direção à terra potiguar, deixando saudades em seus irmãos Benjamim, Rosinha, Isaura e Raimunda. Invisível, acompanhei-o nessa vereda nordestina, até chegar às bandas do Acari, Rio Grande do Norte, onde em outro casarão, em outra varanda, conversavam meus bisavós Miguel Arcanjo e Adalgisa, sobre se deveriam ou não autorizar a ida de sua filha única Gilberta, minha avó, ao sarau daquela noite. Febril, por força de um resfriado – não a “espanhola”, mercê de Deus - tomara chá de pimenta que lhe daria forças para bailar, e, mais ainda, lhe aguçaria os sentidos para ouvir e deixar-se enlevar pela cantoria daquele cearense Antonio, recém chegado de Baturité, entoando, ao som de sua viola, as modinhas de Catulo da Paixão Cearense, em especial Flor Amorosa e Cabôca di Caxangá.
Alternando meu percurso virtual por aquelas bandas com a leitura de seu texto, deparei-me com o trecho “ÊTA CABRA DE ASSOMBRAÇÃO!!!!    ÊTA CABRA DE ASSOMBRAÇÃO!!!!! (não vou dar mole não, Gil. Vá ao Houaiss. Essa seu pai não te ensinou)”.
O emprego – correto e adequado, ressalve-se – dessa expressão evocou em mim todo um jargão que, como você bem sabe, meu pai me transmitiu. E retornei às varandas dos dois casarões, para ouvir, ora numa, ora noutra, trechos das conversas de meus quatro bisavós com seus compadres, afilhados, “coronéis”, jagunços e tantos tipos mais que povoaram (ainda povoam ?) o sertão, todos, como meu pai, eméritos contadores de inacreditáveis “causos”, tão bem retratados pelo nordestino de boa cepa Chico Anysio, em seu quadro “Pantaleão” – “É mentira, Terta ?”. Pois aí vão para você alguns trechos dessas conversas de fim de tarde...
“É o hervanso nos baixios dos riachos que nasce embastido...lá surge um almocreve pequenino, mais sabido que vigário de vila...e esse cavalo frio que não beneficia, solta o dundo nos pastos, que não apanha rengue...’bora ouvir os gagáos das miliêtas de arumarás, pelas gurguéias do Apodi...sentir a cruviana das madrugadas, cobertas de lubrina...ou ouvir o tundé dos brocoiós desadorados, mangando das caritós, cada qual orando a Santo Antonio para que lhe arranje um bode arretado...E estes, mitrados, se casqueiam p’ro mato, ou, com tenência, se protegem sob a reima do abagão...Êita, ferro, que esse granganzá intojado, cheio de fricotes, vem chegando assim, de pega-bode, querendo tramamoca ou cochambrança p’rá godelar um putufu...”
São falas do Nordeste, esse Nordeste de Ascenço Ferreira:
“O ferreiro malhando no topo das baraúnas / Nas lombadas da serra o sol é de lascar.../ Nem uma folha só fazendo movimento ! / - Nana! Ô Nana ! / - Inhôr ! / - Chega me abanar ! / Pouco a pouco, porém, vem vindo um frio lento / Trazido pelas mãos de moça do luar.../ Que gozo nos coqueiros acarinhados pelos ventos ! / - Nana ! Ô Nana ! / - Inhôr ! / - Chega a me esquentar !”
E de longe ouvi o ruído do trem de Alagoas:
“O sino bate, o condutor apita o apito, solta o trem de ferro um grito, põe-se logo a caminhar.../ Vou danado p’rá Catende, vou danado p’rá Catende, vou danado p’rá Catende, com vontade de chegar.../ - Adeus, morena do cabelo cacheado.../ - Adeus, adeus...”
Mas voltando de Catende, cheguei a Mossoró, e ouvi as vozes das velhas beatas na Matriz:
“Grória a Cristo Jesus / Ce – éus i terra / Bendizei o Sinhô / Louvô i grória a ti / Ó Rei da grógria / Amô iterno a Ti / Ó Deus di amô ...”
Ouvi também as amas-de-leite entoando para as crianças:
“Carrapato, vait’embora / Sai de cima do telhado / Deixa o menino dormir / Seu soninho sossegado...”
E as crianças cirandando na praça:
“Amanhã é domingo / Pé de galinha / Areia é fina / Que dá no sino / O sino é de ouro / Que dá no besouro/ O besouro é valente / Que dá no tenente / O Tenente é valente / Que dá na gente / A gente é valente / Que senta o mucumbu no batente...”
Ao meio-dia, não tomei água quente, para não ficar com fala fina. Almocei primeiro a carne, depois o peixe, pois quero que a morte me deixe. Não derrubei farinha na mesa, que é miséria certa; só açúcar, que dá felicidade. Queijo com cachaça, nunca, para não estuporar; só puro, e sem a casca, para não emburrecer. Vixe! Cab’a sem-vergonha ! Só sendo tentação do capiroto !
Mais eis que chegou o cantador Limão, p’rá contar a história do 13 de junho de ’27, dia de Santo Antonio, quando Lampião saiu corrido na bala, de Mossoró:
“Lampião foi se meter / A atacar Mossoró / Pensou que era Ceará / Qua a Polícia tinha dó / Quase apanha de macaca / de Colchete e Jararaca / Que ficaram no quichó...”
Pois é, amigo Marinho, você, com sua cantoria, digna de um ABC, de um cordel, me fez relembrar tudo isso...e toda essa cultura nordestina, que estava amocada em minh’alma, me ressurgiu devagarinho, que nem revência de açude, mas rija como um baobá...
Resta agora esperar que a gente se reúna na Feira de São Cristóvão, talvez sob uma daquelas luas do sertão, sentados em preguiçosas, afagados pela brisa que vem da boca-da-mata, dançando ou só olhando o fandango, a chegança dos mouros, o boi-calemba ou os congos, mirando nossas Nanas e ouvindo o violeiro pontilhar mais uma modinha de Catulo, quem sabe, “Ontem ao Luar”:
“Se tu desejas / Saber o que é o amor / E sentir o seu calor / E o amaríssimo sabor do seu dulçor / Sobe o monte à beira-mar, ao luar / Ouve a onda sobre a areia lacrimar / Ouve o silêncio / A falar na solidão / De um calado coração / A penar, a derramar os prantos seus.../ Ouve o choro perenar / A dor silente universal / Que é a dor maior / Que é a dor de Deus....”
Amigo Marinho, espero ter respondido condignamente a seu texto, que, como outros anteriores, também me emocionou. Só resta, agora, repetir a última mensagem do Frater, também de origens nordestinas:
- “À Feira ! À Feira ! À Feira !”
Um grande abraço do
Gil


Biografia:
Brasileiro, casado, nasceu no RJ, em 06/09/1946. É Oficial de Marinha (Escola Naval, 1967) e Administrador (UNESA, 1996). Passou à reserva em 1996 e, desde então, trabalha na iniciativa privada, como Administrador e Consultor. Tem mais de sessenta trabalhos publicados sobre assuntos militares, história, geografia, política e ficção, em periódicos especializados e jornais do RJ e de MS. Conquistou vários prêmios literários e, em 2000, o Clube Naval editou seu livro “Coisa de Naval”. Tem livros à venda nos sites Clube de Autores, AgBook, Recanto das Letras e Bookess.
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