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Sete nuvens, sete Largos
Gil Cordeiro Dias Ferreira

Resumo:
Sessentão recorda sete passagens marcantes de sua vida, da infância à terceira idade, todas ambientadas no Largo da carioca, Rio de janeiro.

SETE NUVENS, SETE LARGOS
50’s
Apenas eu diria
Nuvem no domingo
Tira a poesia
(Receita de Domingo - Billy Blanco)
Tórrido sábado de Carnaval. O Ford fica no Palácio Capanema. Mãos dadas aos pais, eis a Avenida. Frevos, Vassourinhas, Lenhadores. Blocos, Bola, Bafo. Camelôs, lança-perfume Colombina, confete no filó, serpentinas em pacotes. Meu tirolês fere os ombros queimados de praia. Chapéu verde insuportável. Medo da Nega Maluca. Hotel Avenida, Bar da Brahma. Chope para meu pai, Hydrolitol para mim e minha mãe. Galeria Cruzeiro, Tabuleiro da Baiana. No Largo, uma nuvem cobre o sol e me alivia. Leve cirrocumulus. Bendita sombra! Mãos macias, cheiro bom de minha mãe.
60’s
Você é isso, uma nuvem calma
No céu de minh’alma, é ternura enfim
(Prelúdio Nº 2 - Luiz Vieira)
Jaquetão azul de sarja, botões dourados, espadim balança no quadril. Orgulho, sou da Escola Naval. Escapada eventual do internato, cerimônia no Liceu, celebra-se algo. Chance de encontrar Verinha. Telefonema furtivo, ela atende. Discurso enfadonho, canto de hinos, chega o ite missa est, corro, ela espera na galeria do novel Avenida Central. Uma nuvem sobre o Largo, um altostratus, traz a chuva. Seu vestido de voil, translúcido e molhado, revela seios e anseios. O jaquetão se encharca. Mãos macias e cheiro de Verinha - Arpège. Guaraná Caçula e empadinhas na Cavé. Perco o ônibus da Escola, pago um táxi. Por atraso e uniforme em desalinho, serviço extra. No sábado. Mas revê-la-ei domingo.
70’s
Eu sou nuvem passageira
Que com o vento se vai
(Nuvem Passageira - Hermes de Aquino)
Jovem Tenente, há que servir fora do Rio. Aos solteiros, lonjuras inóspitas. E a amada, que dirá? Não mais Verinha, é Anail. A passagem da Cruzeiro em meu bolso pesa toneladas. Vôo longo, quatro escalas, preciso de um livro. A feira voltou ao Largo, revisito-a. Gabriel Garcia Marques, Cem Anos de Solidão, uma luva. Entardece, véspera da partida, noite de despedida. Nuvem escura sobre o Largo, um nimbostratus, outra em minh’alma. Em pouco - última vez? – sentirei o cheiro gostoso de Anail – Vivará - e suas mãos macias entre as minhas.
80’s
Assim como uma nuvem só acontece se chover
Assim como o poeta só é grande se sofrer
(Eu não existo sem você – Tom e Vinicius)
Drummond, meus ombros não suportam o mundo, mas uma criança cujas mãos não me pesam. Repartimos misto-quente-e-coca-cola na fastfood do Avenida Central. A vista do Convento a intriga, pergunta-me por Papai-do-céu. Miro o céu, uma nuvem sobre o Largo lembra a Arca de Noé, o vento molda o cirrostratus, parece agora o rosto de Vinicius cantando Lá vai São Francisco para os frades. Mas ela prefere o pato pateta. As mãos macias de minha filha beliscam-me nariz e orelhas, deixando ali seu cheirinho gostoso de bebê.
90’s
Onde havia a luz do sol
Uma nuvem se formou
Onde havia uma alegria para mim
Outra nuvem carregou
(Tudo se transformou - Paulinho da Viola)
Mudou o Largo e mudei eu, Machado. Empresa civil, andar alto do Avenida Central. Da janela vejo o mercado persa à volta do relógio centenário. Músicos, pregadores, malabaristas, saltimbancos, pirataria incontrolável, de ervas suspeitas a eletro-eletrônicos idem. Verão outra vez, desço sedento. Junto ao prédio da Caixa, a barraca do melhor acarajé do Rio, pelas mãos da baiana negra, gorda e linda, em impecáveis vestes e turbante brancos, guias de Oxum, sorriso perene. Frita a massa de feijões, passa-me a lata gelada e dourada. Sinto suas mãos macias e seu cheiro de alfazema que encobre o dos temperos. O toldo brilha ao sol. Uma nuvem, fino stratocumulus, filtra a luz por breve instante. Abro, bebo, curto a voz suave – “desceu redondinha, né?”
00’s
Passa nuvem negra
Larga o dia
E vê se leva o mal
Que me arrasou
(Nuvem Negra - Djavan)
Crepúsculo vespertino e da vida. Lembra os Contrastes de Antonio Thomaz, os desenganos vão à frente, as esperanças ficam atrás. Resta o Clube Naval, a contrabordo, na Barroso. Ali, velhos lobos-do-mar, entre cachimbadas e goles de scotch, recordam saudosas singraduras. Na Gonçalves Dias, ainda a Colombo, mas não mais a Kanitz. Cruzo o Largo; onde a Palermo, a Freitas Bastos, o luminoso Longines, a Polícia Especial, boné vermelho, subindo o Santo Antonio nas Harley-Davidson? Saudades da professora e do engenheiro que me carregaram por aqui vestido de tirolês. Um cumulonimbus encobre o resto de sol no horizonte. Regra de bordo, preparar para mau tempo. O Clube me abriga da chuva. A garçonete do pub me traz o ansiado scotch. Suas mãos são macias, ela cheira a Avon – “Boa noite, Comandante”.
10’s
Meu nome é nuvem
Pó, poeira, movimento
O meu nome é nuvem
Ventania, flor de vento
(Nuvem Cigana - Lô Borges)
O ambulante discursa, estica o elástico, solta-o e o minicóptero luminoso sobe, deixando um rastro no céu do Largo, neste começo de noite. O anjo louro se extasia com o brinquedo, mira-o boquiaberta e pede – “Compra p’rá mim, vovô?”. As mãos macias da neta puxam as minhas, ela cheira a lavanda e seu sorriso me leva às nuvens – delicados cirrus - que encobrem o Largo da Carioca.


Biografia:
Brasileiro, casado, nasceu no RJ, em 06/09/1946. É Oficial de Marinha (Escola Naval, 1967) e Administrador (UNESA, 1996). Passou à reserva em 1996 e, desde então, trabalha na iniciativa privada, como Administrador e Consultor. Tem mais de sessenta trabalhos publicados sobre assuntos militares, história, geografia, política e ficção, em periódicos especializados e jornais do RJ e de MS. Conquistou vários prêmios literários e, em 2000, o Clube Naval editou seu livro “Coisa de Naval”. Tem livros à venda nos sites Clube de Autores, AgBook, Recanto das Letras e Bookess.
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