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O Senhor dos Sonhos
Sérgio Vale

Naquela hora do entardecer, o senhor Ribeiro
tinha a forte impressão de que seu carro
apenas se afundava na noite nascente a cada
quilômetro vencido da estrada. Era a primeira vez,
em dois anos, que visitaria o filho. A idéia da viagem
o aborrecia tanto quanto o rádio que se interrompia
ou se enchia de chiados toda vez que uma curva
contornava algum morro. Se fosse possível, teria adiado
novamente a visita. Queria estar com o filho, é bem
verdade, mas não gostava de estar sendo enganado
desde o dia em que o garoto ingressara na Faculdadde
de Artes.
       Em sua época de universidade, o próprio Ribeiro
sentira a forte vocação de ser um artista plástico. Por uns
tempos sua vida se moveu por este intenso desejo. A família
não possuía meios suficientes e, por fim, pareceu tolice, a ele
e aos seus, firmar os pés em qualquer carreira que não
apontasse um rumo claro para a vida. A decisão se mostrou
acertada, já que aos poucos construiu-se prático e rico, o
homem que planejara ser. Sem nunca abandonar o gosto
da juventude, as paredes de suas casas, cada vez mais amplas,
foram sendo tomadas por uma valiosa coleção de obras de
arte. Envolvido por este ambiente, cresceu o filho de Ribeiro.
O olhar vivo do moleque sempre voltado àquele pai ao seu
gosto refinada pela arte. Ribeiro tomou com satisfação e
naturalidade a decisão do filho em ingressar na Faculdade de
Artes. De pronto, resolveu bancar a aventura do filho, dando-lhe
a oportunidade que nunca tivera.
       Agora sabia que o filho o enganava, utilizando a boa mesada
para não se preocupar com nenhuma arte senão a de bem viver.
Foi com tal sorte de pensamentos que Ribeiro trocou a noite da
estrada pela claridade falsa da cidade. O esboço de mapa que
havia recebido serviu para orientá-lo através das largas
avenidas até entrar numa rua estreita e achar o prédio simples
que onstentava na fachada o mesmo número indicado no
recorte de papel.
       Subiu quatro lances de escadas, tocou a campanhia e viu a
porta se abrir. O filho surgiu , com um largo sorriso, para abraçá-lo.
        - Entre papai! - exclamou.
        As mãos de Ribeiro suavam. Ele examinou toda a extensão
da sala de móveis modestos, com uma estante repleta de livros e
paredes nuas. O filho o cobria de gentilezas.
        - Paulo, onde estão os seus quadros?
        - Mas é claro - respondeu com entusiasmo, sem perceber o
tom seco da pergunta do pai. - Sente-se um minuto.
        Paulo sumiu pelo corredor e voltou trazendo uma, duas, três,
quase uma dezena de telas assinada com o nome de família.
Arrumou-as lado a lado, tentando superar a falta de espaço,
preparando a exposição para um exigente colecionador.
Ribeiro mal podia acredita naquilo. Cometera o maior dos enganos:
seu filho era um artista que transboradava talento. Com os olhos
vermelhos puxou-o para seu lado ; depois, cheio de satisfação,
passou a decifrar a pequena mostra. Cenas figurativas de interior,
cenas de um ateliê, compstas num estilo forte e próprio. As telas
estavam mergulhadas numa atmosfera cinza e em todas elas surgia
um mesmo rosto masculino, maduro, que em sua morena obscuridade
pareceu estranhamente peculiar a Ribeiro.
           - Quem é esse homem que está nos quadros ?
           - É alguém que inventei, um pintor que talvez habite o mundo
dos sonhos - disse.
           A explicação vaga de Paulo não condizia com a riqueza de
detalhes e a aparente complexidade retratada tantas vezes; para o
orgulhoso senhor Ribeiro, ela soou satisfatória. Ribeiro estava em paz
com sua consciência e Paulo, sem se saber responsável pela alegria
do pai, teve em seu velho, pelas próximas horas uma ótima companhia.
           Naquela noite, ao contrário do previsível, o sono de Ribeiro foi
agitado e desagradável. Em sonho, visitou um ateliê. Telas, pincéis, tintas
e solventes espalhados por todos os cantos. Um homem pintava sob
a fraca iluminação. Ribeiro se aproximou e logo reconheceu a figura dos
quadros de seu filho. Sem a proteção das sombras aquele rosto perdeu
seu inquietante mistério.
            - Você está mais velho, seu rosto tem novas marcas, mas
finalmente eu o reconheço - disse Ribeiro.
             - Nós dois estamos mais velhos - retrucou o outro.
             - Porque você parece transtornado ? - disse Ribeiro com ironia.
             - Vejo que produziu uma centena de bons quadros, exatamente
como pretendia.
              - Minha tristeza não é por mim, é por você. Eu fiz o que deveria,
mas e quanto a você? Por mais que eu tenha indicado seu caminho, há anos
você me expulsou de seus sonhos e correu contra o destino. Agora exige de
Paulo o que você não realizou. Pintar era o seu destino.
               Ribeiro acordou com uma sensação de amargor, graças à
imagem incômoda daquele rosto. Ainda entre o sonho e a vigília, ao
despertar, teve, pela primeira vez, a impressão de que o medo de visitar
Paulo era o medo de si, o medo de enfrentar um destino não cumprido.
"Apenas um sonho esquisito", repetiu mentalmente. E quando a face
morena já se desvanecia na memória, pensou: "Apenas um sonho inspirado
pela imaginação de meu filho, que absurdo me preocupar!" Mas ficava a
pergunta: qual dos dois, ele ou o filho, tinha sonhos próprios? E qual
vivia os sonhos do outro?
        No café da manhã com Paulo, Ribeiro quis deixar o quanto antes
aquele apartamento e voltar para o abrigo de sua rotina.
          - Não pense que já vai embora - sentenciou Paulo. - Você ainda
não conhece meu estúdio.
          Havia mais quadros? mais retratos daquele homem e seu mundo
inexistente de sombras!
          - Aluguei uma casa, onde passo as manhãs pintando. Minhas aulas
são à tarde. Faço questão de que conheça o local, afinal é o seu dinheiro
que o mantém. Em breve espero começar a vender meus quadros, e aí a
situação vai mudar.
           Pai e filho caminharam pela rua ensolarada. O calor da manhã já
parecia sufocar. Chegaram a uma casa, modesta como o apartamento,
ainda que mais espaçosa. Uma colega do filho pintava na sala principal;
provavelmente outros artistas também usavam o espaço.
           Paulo indicou seu "território" na casa e fi apontando suas telas,
fazendo pequenos comentários acerca de cada uma. A ansiedade de
receber a visita do pai passara; podia mostrar sua obra om confiança.
O mesmo talento visto nas telas escuras da noite anterior. Desta vez, os
olhos do pai refletiam quadros com cores vibrantes e temas variados,
libertos como o próprio artista. Vendo a surpresa de seu velho, Paulo
explicou que as telas de seu apartamento pertenciam a uma fase anterior,
superada, que correspondeu ao período logo posterior à vinda para a
faculdade. Na época, ainda não tinha uma visão clara do caminho
artístico a ser seguido.
             Ribeiro enxugou a testa. A colega de seu filho lhe trouxe um
copo d'água. Os três sentaram-se para conversar; o peso e o calor
e a aflição do ar foram aos poucos se desfazendo. Mantiveram uma
conversa tranquila sobre arte e planos futuros. O entusiasmo dos dois
jovens trouxe boas recordações a Ribeiro.
             Rodeado pelo colorido das obras do filho, o senhor Ribeiro
percebeu que em breve Paulo encontraria o sucesso. Mas seu
pensamento foi além: no campo da arte, Paulo já percorria terra que ele,
Ribeiro, jamais teria alcançado.






Biografia:
Técnico e Engenheiro por formação, sempre se dedicou aos livros. É autor premiado de romances, contos, livros infantis. Desde 1992, na Editora Komedi, é responsável pela publicação de centenas e centenas de títulos.
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Contos Jazz (ou Música e Tomates) Sérgio Vale
Contos O Senhor dos Sonhos Sérgio Vale


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