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Vem com a chuva
Pedro Girardi Modesti

- Tóóóbby?

Não estranhou o fato de o cão não ter ido recebê-la em sua chegada naquele fim de tarde. Geralmente ele já estava arranhando a porta desde o momento em que ela batia o portão do pátio na entrada da casa.

Porém hoje chovia muito, então era de praxe que seu companheiro estivesse encolhido, tremendo em silêncio embaixo de sua cama no segundo piso da casa.

Tobby era um cão de raça indefinida, uma mistura de poodle com basset, fora adotado pela dona há vários anos – tantos que ela já perdera a conta – geralmente era corajoso e brincalhão, mas definitivamente não gostava de chuva e de homens. Provavelmente traumas que trouxe dos tempos em que vivia na rua. Bastava um homem ingressar no jardim que começava a latir incessantemente.

- Tóóóbby?

Foi só chamar mais uma vez que o cão veio em disparada em sua direção, quase se perdeu na curva da escada entre um andar e outro. Lambeu-a como se ela estivesse ficada uma década longe, como se não houvesse o amanhã.

Como era bom chegar em casa após um exaustivo dia de trabalho, ainda mais em meio ao temporal que caia na cidade. Não havia coisa mais horripilante do que ter que pegar duas conduções para chegar ao trabalho em um dia em que as ruas estavam completamente alagadas.

Bastava uma gota de chuva cair no asfalto e as pessoas automaticamente viravam ogros e perdiam o mínimo de cordialidade que possuíam no trânsito, além é claro, de desaprenderem a dirigir.
Já fazia um ano que largou o vício de usar o carro para ir ao trabalho, geralmente ia de bicicleta, às vezes até caminhando. Mas com o temporal que caía na cidade a única alternativa era a lotação disponibilizada municipal. Aliás, lotação sem dúvida era o nome mais apropriado para o veículo, um ônibus com capacidade para 40 pessoas, mas que sem dúvida carregava 70 na melhor das hipóteses, em dia de chuva então, cabia pessoas até as portas não fecharem mais.

Mas tudo isso era passado e preocupação só para o próximo dia (isto é, se a chuva continuasse). Chegara em casa, molhada, exausta, mas na expectativa de um banho quente e de uma bela taça de vinho Cabernet Sauvignon chileno, talvez uma garrafa.

Pendurou o guarda-chuva atrás da porta, junto com seu pesado casaco para dias como esse, tirou as botas molhadas e finalmente ingressou em seu seco e confortável lar, na companhia de seu medroso e carinhoso cão.

Subiu as escadas e já entrou em seu quarto parcialmente sem roupas (uma das vantagens em se morar sozinha). O segundo andar de sua casa era dividido em três peças, unidas por um longo corredor, logo ao sair da escada havia um quarto/escritório (que com o tempo se tornou mais um depósito de tralhas), em seguida o único banheiro da casa, um ambiente amplo, tendo nele uma bela banheira vitoriana com aquecimento (utensilio esse que seria desfrutado com todo o prazer em poucos minutos), e então, por derradeiro o quarto principal.
Logo que entrou no quarto Tóbby correu para baixo da cama se proteger da chuva e das trovoadas.

- Tudo bem Tóbby, agora estou em casa pra te proteger. Enquanto falava levou a mão até o escuro debaixo do móvel até a língua de seu cachorro a encontrar e a lamber. Um ritual dos dois, quando estava protegido em seu esconderijo, de tempo em tempo a dona levava a mão até embaixo da cama e seu animal apenas a lambia para demonstrar que estava tudo bem, que nenhum dos dois estavam sozinhos na casa.

Após retirar as roupas molhadas se dirigiu a peça ao lado, abriu a torneira da banheira, ajustou o nível dos dois registros até a água sair na temperatura exata para o banho. Jogou alguns sais, viu a espuma subir e desceu até a cozinha pegar o vinho e uma taça para ter companhia durante o banho relaxante.

La fora a chuva só aumentava, mais e mais. Só imaginava o inferno que seria ir trabalhar no próximo dia.

- Esquece, viva o momento, vou aproveitar o banho, meu vinho, um bom livro, o amanhã que se dane. (sim, tinha a mania de conversar sozinha).

Esse era seu momento preferido do dia. Era só ela e seu espírito inquieto, ali podia ser quem realmente gostava de ser, abandonar qualquer convenção social, não tinha a necessidade de agradar, bajular ninguém, era só ela e sua mente levemente perturbada.

BAROOM! BARUUUMM – trovejava lá fora.

Ficava imaginando quantas pessoas e quantos animais estavam lá, sem refúgio, se escondendo sob marquises, sob abas de telhados, e até imprudentemente no pé de árvores. Sábia que era privilegiada por ter um bom emprego, onde morar, que deveria abandonar essa angústia que corroía sua alma, não tinha motivos para tê-la.

Mas a vida não era tão simples, simples era vagar entre pensamentos bons e pensamentos agoniantes num estalar de dedos. Não pertencia a esse corpo, a esse lugar.

Após horas de molho na banheira, dois terços da garrafa de vinho a menos e vários capítulos do livro deixados para trás, se levantou, enrolou-se em seu roupão, mais uma vez checou como estava Tóbby (coitado, sofria em dias como estes), sentiu sua língua dando sinal que ainda estava ali, que apesar do silêncio estava tudo bem.

Desceu até a cozinha, pegou uma lasanha pré-pronta do freezer, a preparou no micro-ondas – sua mãe sempre lhe alertara do maleficio que esses alimentos industrializados faziam ao corpo, que isso um dia ia matá-la – não se importava, não queria viver para sempre, também, depois compensaria fazendo exercícios.

Com um prato de lasanha em uma mão, mais uma taça de vinho em outra, sentou-se no sofá, zapeou na televisão algo que prestasse, claro que não achou nada.

Apelou para o Netflix, única real utilidade de sua TV na verdade, optou por um thriller policial dos anos 80, sempre fora apaixonada pelas décadas passadas, quem sabe essa sua agonia existia porque nascera na época errada.

Dormiu sentada no sofá – claro que dormiria, o vinho erra seu calmante natural – acordou no meio do filme, desligou a TV e rumou para seu quarto.

Ao deitar na cama, mais uma vez checou Tóbby, sentiu a respiração saindo de seu nariz gelado de cachorro e uma lambida leve e automática em sua mão, que ele dava mesmo dormindo (se é que dormia com todo o barulho de trovões lá de fora). Recostou a cabeça no travesseiro e apagou.

Estava em uma cidade limpa, organizada, que possuía uma iluminação incrível, parecia que tudo era feito de marfim, as pessoas andavam alinhadas, todas quase que uniformizadas, ninguém parecia ter uma face definida, todos seguiam seu rumo sem interagir. Parou de seguir o fluxo por um instante, pediu a um transeunte para onde todos iam, este respondeu que não precisava saber para onde ia, todos estavam indo para o mesmo lugar e era isso que sempre fizeram e seria isso que fariam até o fim de sua existência.

Acordou assustada, era um simples sonho. Mas percebeu que o sonho era real, não a cidade limpa, não as pessoas alinhada, mas o rumo que elas tomavam, todas faziam parte de um rebanho resignado, inclusive ela.

Encontrou o motivo de sua agonia, seguia o rebanho, mas não era essa sua vontade, ela queria ser diferente, fazer o contrário do que sempre lhe ensinaram, não queria viver a vida que sua família a ensinou a viver. Amanhã seria diferente, daria um ponto final em sua vida atual e começaria uma nova.

Desceu a mão até debaixo da cama, sentiu a quente língua de seu companheiro a confortar, levantou-se no escuro, arrastou-se pelo quarto, tateando as paredes – gostava do escuro da noite – entrou no banheiro e fechou a porta, triste mania, se trancar no banheiro mesmo morando sozinha.

Ao pisar no piso gelado sentiu algo úmido no chão – droga, só pode que deixou a janela aberta e a chuva entrou – procurou o interruptor na parede.

Quando a luz se fez seu semblante cansado refletido no espelho sumiu e se tornou uma face de um pavor que nunca antes tinha visto nem nos piores filmes de terror, afinal, aquilo era realidade.

Atrás dela estava Tóbby, pendurado, estripado. No espelho, com seu sangue, estava escrito o seguinte “Não são só os cães que lambem, também posso lamber ”.

No exato momento que leu, ouviu uma trovejada e baterem na porta de seu banheiro.

BAROOOM!

KNOC! KNOC! TOC! TOC!


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