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Estética e cultura – beleza pura
ANDRÉIA T. COUTO

Em todas as culturas, desde tempos imemoriais, a forma de pentear ou cortar os cabelos, masculino ou feminino, serviram para delimitar o status social, religioso ou como uma forma de expressão corporal. Ao lado das vestimentas e adornos, os cabelos demarcaram territórios sócio-culturais, bem como acompanharam as pinturas corporais do visual de guerreiros de inúmeras tribos. Desde os primórdios da civilização, os cuidados com os cabelos estão relacionados à estética, aos motivos religiosos ou à higiene.
Um dos penteados mais disseminados por todas as culturas é a trança. Da Ásia à América do Norte, passando pela América Central, do Sul, África, em termos de adorno natural, a trança é unanimidade. Na Mongólia, as tranças são ornamentadas com jóias de prata; entre os Astecas, as tranças eram reservadas às mulheres, assim como na Sibéria, enquanto que na China era uma prerrogativa masculina, bem como entre os índios norte-americanos Dakota.
Em várias tribos indígenas das Américas, raspar determinada parte da cabeça, fazer cortes em cuia, deixar os cabelos longos ou trançá-los, além de enfeitá-lo com penas e peles, foi um delimitador de origem ou sinal de pertencimento. Na Polinésia, as mulheres simplesmente deixam seus cabelos longos e lisos soltos sobre os ombros.
Os cabelos africanos são um exemplo de variedade, complexidade e paciência para fazer transformar cabelos em formas elaboradas de trançagem. Por toda a África, cada povo marca sua cultura com penteados diferentes e cortes marcantes. Talvez seja a África o continente que contenha a maior multiplicidade de cabelos trançados. Em Camarões, Guiné e República Democrática do Congo – conhecido também como Congo-Kinshasa, para diferenciar-se do outro Congo, chamado de Congo-Brazzaville –, há verdadeiras preciosidades de penteados trançados. Enquanto em muitas regiões africanas as mulheres elaboram grandes penteados, em outras da África centro-oriental elas raspam completamente a cabeça, ao passo que os homens portam penteados elaborados. No Quênia, tribos como a dos Massai criam penteados personalizados e originais. No Congo-Kinshasa, o penteado é um elemento essencial e faz parte do cotidiano das mulheres que querem realçar sua beleza. Estamos aqui falando das mulheres que vivem na capital e nas cidades maiores, e que têm condições de pagar 14 dólares por 10 pacotes de mechas de cabelo natural mais a mão-de-obra da cabeleireira, que sai entre 30 e 50 dólares. As mechas são importadas e esse fato encarece a produção. Mas há também as que utilizam mechas sintéticas coloridas, que são trançadas juntamente com fitas e fios brilhantes. O resultado é surpreendente. Há cabelos que levam dias para serem trançados, dependendo do tamanho e da quantidade de mechas utilizadas. Até as crianças entram na onda das tranças.
A partir dos anos 60, os negros passaram a assumir o visual afro, apoiados em movimentos de conscientização da beleza negra, como o Black Power, que reforçou o grito da população negra para a valorização da sua cultura, quando os homens e mulheres assumiram seus cabelos eriçados e volumosos – Black is beautifull –, além de uma postura de liberdade para deixar os cabelos afro livres de penteados e alisamentos. Bob Marley ajudou a disseminar os dreadlocks como mais um jeito marcante de mostrar uma postura através dos cabelos.
Uma visita a outras culturas ancestrais mostra como as mulheres de classes mais abastadas eram as mais penalizadas no quesito cabelo. As japonesas usavam elaborados penteados, enfeitados com diversos tipos de adornos que faziam de suas cabeças verdadeiras esculturas. Belíssimas, mas incômodas e pesadas. As mulheres da realeza européia ostentavam penteados que exigiam horas de mão-de-obra de servas treinadas com dedos de fadas. Na França da corte de Luiz XIV, os homens usavam enormes perucas encaracoladas, que lhes ornavam a cabeça em altos penteados, enquanto cachos caíam pelos ombros. Os altos magistrados ainda hoje se vestem com perucas para cerimônias especiais.
Na cultura árabe, até hoje é interditado às mulheres exibir seus cabelos em público. Somente no seio familiar é permitido que deixem de lado seus lenços e os únicos homens que podem ver as mulheres com os cabelos à mostra são os da família. A chegada de uma visita masculina faz com que tenham que cobrir as madeixas.
Como uma das partes do corpo que mais chama a atenção, o cabelo é também uma das que requer mais cuidados: gastos semanais e mensais com cabeleireiros para cortes, retoques, tinturas, mechas, escovas, chapinhas, alisamentos e relaxamentos, causam um rombo no orçamento. Sem contar os gastos com os produtos específicos a cada tipo de cabelo para a manutenção, para clarear, colorir, criar mechas, fazer reflexos, amaciar, enxaguar, perfumar... Basta entrar em uma boa loja de produtos de beleza para ter a noção de como a indústria de cosméticos lucra com a vaidade capilar. Se os cabelos não estão bem tratados, bem apresentados, não há roupa, por melhor que seja, que salva um visual. Qualquer sinal de deslize pode transparecer uma aparente falta de cuidado. Ao contrário, um cabelo bem cuidado pode se transformar em um belo cartão de visitas.
É o seu cabelo que faz você se sentir à vontade, bonito, convencido, seguro. Se estiver insatisfeito com ele, o contrário pode acontecer. Um penteado adequado pode levar você ao apogeu; um inadequado pode por tudo a perder. O fato é que há cabelos e penteados para cada circunstância: um bom corte pode até dispensar um penteado em um evento de gala, mas normalmente nessas ocasiões as mulheres aproveitam para transformar seus fios em uma parte do corpo que brilha tanto quanto a roupa e as jóias de grife. Assim como o eterno rabo-de-cavalo, que se popularizou na década de sessenta, acompanha as mulheres da academia às festas chiques.
Na moderna sociedade do espetáculo, onde tudo é mercadoria e a princípio está numa vitrine, as celebridades lançam modas e modismos para serem vistos e copiados. Durante os primeiros episódios da série norte-americana Friends, anos atrás, Jennifer Aniston teve seu corte e cor de cabelos febrilmente copiados pelos quatro cantos do mundo. Anos antes, mais precisamente nas décadas de 70 e 80, a pantera loira Farrah Fawcett causava frisson com seu corte esvoaçante-sexy. Em terras tupiniquins, a ilha da fantasia de Caras expõe as celebridades na vitrine para que qualquer leitor da revista tenha ao seu alcance o retrato do corte de cabelo da modelo-atriz do momento. Resta saber se o cabeleireiro do bairro vai fazer jus à cópia.
Hoje, tudo é permitido, até mesmo o não-penteado, ou os penteados desestruturados, os cortes femininos a navalha, com jeito de desarrumado proposital. Técnicas modernas permitem uma permutação cada vez mais camaleônica de estilos e configurações de cabelos. Já não é mais preciso nascer e morrer insatisfeito com a cor, forma, textura que a natureza lhe deu.
Atualmente, a velocidade com que as mulheres mexem em seus cabelos, seja para cortá-los, remodelá-los, penteá-los, colori-los, alisá-los ou enrolá-los é cada vez maior. O preconceito de antigamente por mudanças radicais de visual devido a cortes diferentes e inusitados já não existe. A liberdade com que todas as etnias tratam seus cabelos ganhou o mundo e democratizou o uso de penteados, tranças, alisamentos e tinturas. Símbolo de rebeldia anteriormente, hoje as mudanças para o diferente são sinônimos de “moderno”. Uma asiática ou africana que pinta seus cabelos de loiro não causa mais estranhamento. O importante é a criação de visuais personalizados, tratados com ares de exclusividade. O visual marca, delimita uma postura, diferencia e tira do anonimato. Usar um cabelo sem nenhum diferencial é o mesmo que usar uma roupa sem nenhum traço de pessoalidade. A originalidade comanda as cabeças mais arrojadas. Os adolescentes japoneses, por exemplo, tratam seus cabelos lisos e negros com as mais variadas cores e formas.
Mesmo a total falta deles pode significar diferentes posturas, culturais e ideológicas: desde os skin heads, os radicais de direita que usam a cabeça raspada, até mulheres que raspam a cabeça como forma de se distinguirem de outras, através de um visual mais ousado. Afinal, uma mulher de cabeça raspada ainda chama mais atenção do que uma com o cabelo cor-de-rosa.
No final da Segunda Guerra, os franceses raspavam a cabeça de mulheres francesas acusadas de colaborarem com soldados alemães durante a ocupação nazista. Isso era motivo de vergonha e humilhação diante de todos. O fotógrafo Robert Capra eternizou essa cena em uma famosa foto feita em Chartres, em 1944. Nas modernas tribos urbanas, punks de cabelos iroqueses, um universo formado por cabelos heavy, góticos, hastas, grunges e rockabillys de topetes encorpados, dividem a cena com cabeças raspadas e tatuadas. Naturalmente que os cortes de cabelo de cada uma das tribos traz o acompanhamento de um vestuário específico, que traduz uma maneira de ser.
Em entrevista à revista Época de março de 2008, Javier Barden diz que construiu seu personagem de Os fracos não têm vez a partir do penteado escovado dos anos 70 escolhido pela produção para compor o visual do personagem. Aliás, o cinema é o locus de grandes lançamentos, modismos e composições de penteados que viraram clássicos. O de Audrey Hepburn, por exemplo, em Bonequinha de luxo, é até hoje copiado e citado como um ícone de penteado chique. Grandes personalidades da história e da moda, como Jack Kennedy Onassis protagonizaram looks chiques de cabelo que nunca saíram da moda. Cleópatra até hoje é lembrada – talvez mais por seu corte liso e preto com franja e olhos marcados, do que pela grande rainha egípcia que foi.
Um dos símbolos mais fortes de sensualidade coube ao cabelo loiro. Sinônimo de sensualidade feminina, liberalidade, modernidade, por um lado, por outro pode reportar a vulgaridade, falsidade, falta de identidade. Mas pode também transmitir um ar angelical e inocente. Foi Marilyn Monroe, considerada o maior símbolo sexual de todos os tempos, quem melhor sintetizou essa mistura. O filme protagonizado por ela em 1953, Os homens preferem as loiras, marcou para sempre no cinema as cabeças loiras – verdadeiras ou não – hollywoodianas com uma aura de fetiche.
Durante séculos, as mulheres ocidentais viveram presas a uma estética capilar que reverenciava cabelos longos. Somente a partir do século XX, através de estilistas européias e também por causa da pressão econômica causada pelo período entre as duas guerras mundiais, que forçou a mulher a ocupar cargos masculinos e sem tempo para cuidar dos cabelos, elas foram liberadas para usar cortes à la garçon. Mas no início, exibir esse corte foi um escândalo e somente as mais ousadas desfilavam em público com ele. Para disfarçar, pequenos chapéus enfeitavam as cabeças de melindrosas de cabelos curtos na década de 1920. Foi também na década de 20 que a estilista francesa Coco Chanel, que deu nome não só ao corte de cabelo, mas a todo o estilo de vestir e ser, começa a influenciar a moda em todo o mundo e foi uma das responsáveis por liberar as mulheres de longos fios de cabelo, das saias e das bolsas de mão. As mulheres das primeiras décadas do século XX se livraram dos pesados trajes do final do século XIX e a partir dos anos 40 passaram a usar cabelos curtos, calças compridas e bolsas a tiracolo. Pode parecer pouco, mas a liberdade causada por esses hábitos liberou mãos, cabeças e pernas para atitudes mais arrojadas e posturas físicas mais liberadas. Ainda hoje cabelo e roupa Chanel são sinônimos de beleza e elegância no mundo todo. Mas Chanel, que dizia ser escrava de seu próprio estilo, deixou uma marca que vai além da moda de sua roupa e cabelo. Antes de tudo, foi um ícone da liberdade e independência. E liberdade, independência e personalidade estão acima das ditaduras da moda.

Texto extraído do livro Corpos estéticos. Publicado pela revista Griffe.
www.revistagriffe.blogspot.com



Biografia:
ANDRÉIA T. COUTO Doutora em Planejamento e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Estadual de Campinas. Mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo. Graduada em Letras pela Universidade Federal de Ouro Preto. Professora dos cursos de Letras e Jornalismo.
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