Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
Os Maridos de Dona Clara
Onildo Rodrigues Soares

Para vivenciar a sua primeira experiência de boiadeiro, Zé Benvindo calçou bota de cano alto, vestiu uma camisa amarela de manga comprida, amarrou um lenço encarnado no pescoço e botou na cabeça o seu chapéu de aba levemente dobrada para cima. A seguir arriou e montou aluvião, o cavalo de manchas brancas no lombo. Estava prestes a iniciar a experiência que ansiosamente esperou por vários meses, ser ajudante do pai e do irmão no transporte de gado para o Chapadão.

E se as rezes fossem cooperativas como os cães Tarzan e Sansão que o seguiram no galope até onde o gado esperava desde a tarde do dia anterior para seguir viagem, depois da cancela de arame farpado que separava os arredores do casarão com o pasto de cima, iniciaria logo essa nova atividade, mas elas desobedeceram indolentemente a sua ordem boiadeira.

-Aôôô!O grito de Zé ecoou na serra.

Continuaram deitadas em vez de se levantarem e iniciarem a marcha estrada a fora. Algumas até reagiram ao grito, mas para informar a desaprovação do incômodo através de olhares. Diante da dificuldade, Zé conformou-se com adiar o momento da partida para quando contasse com a ajuda dos companheiros. Na verdade, voltou para dentro de casa para esperar sentado senão cansaria. Porque seu pai, Benvindo, ainda aguardaria a chegada do carapina com quem teria uma demorada conversa sobre a fabricação da nova bica d água e o seu irmão, Alvarindo, ainda procuraria o seu chapéu novo pelos cômodos do casarão.

O atraso para iniciar a viagem seria inevitável, avisou-lhe a mãe, pois apesar de ter sido visto bem cedo do outro lado do Ribeirão, o carapina certamente caminhava devagar para postergar a conversa que supunha desagradável. Um pressentimento, visto que o mensageiro disse apenas que Benvindo queria falar-lhe sem outras informações, mas bom entendedor, daqueles que tratam pingo como letra, desconfiou que só podia ser reclamação do atraso da fabricação da bica de água. Jamais para lhe dar biscoito de polvilho e goiabada com queijo, até porque o patrão era justo, pagava o combinado, tostão em cima de tostão, mas de graça só bom bom dia e uma xícara de café ralo que as visitas bebiam para não cometerem desfeitas.

Sua autocrítica também lhe avisava que esta reclamação até chegou atrasada. Seu serviço rendia tão pouco que nem parecia esforço de quem sabia que a nova bica que movimentaria o munjolo e o moinho devia ser instalada a tempo de beneficiar o arroz, o café e o milho que alimentaria os trabalhadores do mutirão da limpa de pasto, isto é, dali a poucos dias. Claro que sabia, pois Clara, mulher de Benvindo o avisava disso o tempo todo, pessoalmente ou mandando recados. Mesmo assim ele continuava no seu ritmo de devagar quase parando. Tirava uma casquinha aqui e acola na imensa tora de jacarandá e durante o resto do tempo pitava para não dizer que fazia outras coisas alheias ao trabalho, soltando no ar densas baforadas do pito de palha agachado detrás das moitas.

Portanto tinha mesmo de ir aquele encontro preparando no caminho as orelhas para ouvir calado as poucas e boas que merecia. Podia responder somente a desculpa esfarrapada de sempre, que ultimamente sentia uma diarreia que diariamente o impedia de trabalhar fizesse chuva ou sol. Ainda faltava descobrir o motivo deste sofrimento que ao seu ver podia ser o cheiro da madeira, tomar pouca água, ventar demais, mas jamais culparia a apetitosa comida de Clara.

O almoço, por conta do patrão conforme combinado, era o tradicional arroz molhadinho, tutu com torresmos e couve, famoso em toda região, tinha homem que trabalharia de graça só para desfrutá-lo e o carapina era um desses, mas com a diferença que depois de comer quase botava as tripas para fora. A barriga só melhorava com sumo de losna; obrigando-o a ir para casa medicar-se e, então, juntava as ferramentas no saco de linhaça, botava-o nas costas e voltava para trabalhar somente no dia seguinte com o sol quente, depois que o frio da manhã sumia e a neblina do pé da serra desaparecia.

Assim o seu serviço rendia quase nada comparativamente a outras ocasiões em que fabricou objetos para aquela casa. As camas que continuavam firmes mesmo que sobre elas Maria, Ana, Tião e os maiores, agora comportados fizeram todo tipo de estripulias foram feitas em menos de uma semana. O suporte do rádio pregado na parede da sala e apreciado pelas visitas foi fabricado em apenas dois dias e o recorde, a mesa de fabricar queijo, modelo encomendado por outros fazendeiros da região, fabricado apenas numa tarde. Com um rego nas bordas coletava o soro direto para o balde. Agora para fazer um objeto simples de pouca ciência, apenas um rego na madeira demorava tanto que o atraso na entrega já alterava o o seu conceito de profissional, de confiável para duvidoso e de certo para errado.

Porém, no que se refere a culpado, para Clara só havia um. Benvindo entregou ao carapina a melhor vaca parida da propriedade tirando do contratado a pressa de entregar o serviço. O bom negociador, cuja fama ultrapassava as fronteiras da região do sudoeste de Minas, daquela vez fez um papel de bobo, passado para trás por uma pessoa que só sabia escalavrar paus e fazer filhos, um por ano. Ao negociar esqueceu a regra número um da esperteza que diz que aquele que paga adiantado recebe atrasado se receber.

-Não sabe mais negociar! Clara provocava. Perdeu a prática.

E mais pelas provocações da mulher do que propriamente pela demora em receber o serviço, Benvindo decidiu botar fim naquela chateação que quase o obrigou a passar uns tempos no chapadão para ficar livre de tais conversas ao pé do ouvido. Dormiu pouco remoendo frases silenciosas, mas que diria em alto e bom tom ao indolente carapina.

O empregado aparentando quarenta anos, rosto castigado pelo sol, barba malfeita, olhos fundos que denunciavam sofrer de alguma angustia, usava uma calça rasgada na altura do joelho e tinha na cabeça um chapéu de palha puído na aba. Esperou Benvindo no lugar reservado onde sempre encontravam para negociar, ao lado do curral das vacas.

Clara até tentou ouvir o que um disse ao outro, mas como os demais curiosos, teve de se contentar apenas em ver os gestos. Portanto, ninguém soube o teor das palavras, mas o encontro foi breve, menos de cinco minutos, depois cada um tomou o seu rumo em silêncio, pois eram homens de ocupações. O Carapina pôs o saco de ferramentas nas costas e foi para a grota onde fabricava a bica, perto de um riacho onde diziam morava o corpo seco do Zeca Estrangeiro e Benvindo foi beber o último gole de café que esquentaria o peito para seguir viagem.

Gastou menos tempo que Alvarindo, o seu filho mais velho e seu companheiro de viagem precisava para encontrar o chapéu novo, dando tempo apenas de procurar pelos cantos da casa e restava a parte mais difícil, tirar uma confissão da irmã Ana.

Cadê o meu chapéu? Onde botou ele?

Num sei.

Sorte dela e de todos os envolvidos no problema é que Benvindo intimou Alvarindo a acompanhá-lo antes que a sessão de beliscões fosse iniciada senão Ana abriria o bico, pois os dedos do irmão eram grossos e fortes.

Respiraram aliviados quando o rapaz colocou o chapéu velho na cabeça e saiu resmungado na companhia do pai, mas que ninguém acreditasse que ele tinha dado o episódio por encerrado, pelo contrário, retornaria com menos paciência e Ana veria o que era bom para tosse se não entregasse o objeto em suas mãos limpo e cheirando a novo, mas aí já teriam pensado numa maneira dele ficar menos furioso quando descobrisse que isso seria mais improvável do que água subir morro. Todos estavam ajudando a mocinha porque sabiam que, pelo menos desta vez, apesar de Maria ter dito que viu o objeto com ela, era inocente diferentemente de quando deixou o retrato da namorada de Alvarindo em lugar incerto e não sabido, ou seja, caso desejasse, dessa vez, o rapaz deveria beliscar e gritar contra a cabra do Vicente Avelino. O animal tomou o objeto das mãos de Ana de uma maneira tão rápida que mal deu tempo dela chorar quanto mais de pedir socorro. Ficou apenas paralisada assistindo o ardiloso animal remoer e engolir tudo. Talvez dissessem mesmo a ele que cabra é diferente dos outros animais que comem apenas capim. Ele que se conformasse, até porque aquele acidente não foi o primeiro e não seria o último causado por um animal que comia o que encontrava pela frente, lençóis do varal, sapatos das meninas, tapetes e até cuecas no monte esperando para serem lavadas. Com o chapéu de pelo de Alvarindo teria de ser diferente? Acha que seria respeitado pela cabra só porque custou caro e foi comprado na famosa loja do Sô Geraldo em São João Batista do Glória, Minas Gerais? A maioria achava que isso deveria ter sido dito ao incauto Alvarindo deste o início para que ele deixasse de imaginar coisas.

Porém Clara obrigou a todos ficarem de bicos calados sobre o acontecido para evitar que a implicância de Benvindo contra o pobre animal aumentasse, um vivente que só queria experimentar o sabor das coisas. No entanto, ela mesma intimou o dono do bicho a levá-lo dali e agora ele residia lá pelas bandas da Matinha, propriedade dos Balduinos. Vicente Avelino doou-o desistindo de ficar rico. Doravante teria animal se tivesse terra, prometeu a si mesmo. Pior. Decidiu ter poucas posses além do dia e da noite. Talvez três mudas de roupas, duas para o trabalho e uma para passeio. Gastaria seus ganhos em aguardante diferentemente de Benvindo que economizava cada tostão passando vontade de beber um refrigerante. Um tipo de vida besta sabendo-se que mais cedo ou mais tarde todos vão morrer e ninguém levará nada consigo, ensinava que todo rico quando morre, além da viúva deixa terras, gado e o dinheiro que apenas provocará briga entre os herdeiros. Em pouco tempo, cada um dá fim a sua parte e todos continuam pobres do mesmo jeito. Porque para continuarem ricos deveriam ser iguais ao Benvindo que trabalhava todos os minutos dos dias. As vezes, levantava de madrugada debaixo de chuva para ver se a vaca pariu. Voltava com o bezerro nos braços. Trabalhava incansavelmente para lucrar cada vez mais. Assim que os bezerros tornavam novilhas e novilhos eram levados para o chapadão como acontecia agora para retornarem com lucro, as novilhas prenhas para virarem vacas e o dinheiro dos novilhos vendidos juntados para comprar novas terras, num círculo vicioso sem fim. E igual a Benvindo só ele mesmo que em plena sexta-feira, véspera do pagode na casa do Zé Neca estava indo levar gado para o chapadão. Nunca pensava em se divertir.

-Vamos com Deus e Nossa Senhora Aparecida adiante! Benvindo ordenou si, aos filhos e aos animais. Sempre que iniciava viagem repetia essa frase, pois fazia tudo pedindo proteção principalmente a santa padroeira do Brasil.

-Aooo!!! Gritou o conformado Alvarindo de chapéu velho na cabeça.

Os animais que anteriormente desacreditaram na sinceridade dos primeiros gritos de Zé, e que na maior falta de consideração permaneceram deitados agora se esforçavam para alcançarem os colegas mais adiantados escapando dos ferrões das varas de Benvindo e de Alvarindo. Clara e os outros filhos, exceto Joaquim que repousava na cama doente de caxumba assistiram aquela partida como a um espetáculo, mas que durou pouco tempo. Em poucos minutos os boiadeiros e os animais desapareceram de suas visões, deixando na estrada montes de estercos cujos odores impregnavam o ar. Restou ouvir agora os gritos de Zé que ecoavam nas serras, um “aooo!!!” tão forte que certamente incomodavam os morcegos nas locas das pedras, as onças em seus esconderijos e o gado que agora sabia que teriam de obedecer ao novo boiadeiro. Um grito que fazia pulsar o coração de Clara. Qual mãe não sente orgulho de ter um novo filho boiadeiro?

2

     Durante a viagem Benvindo parava nas casas dos conhecidos de beira de estrada, ora para levar recado de Clara, agradecimentos pelas provas de quitandas e de pamonhas recebidas e também para convidar a todos para o mutirão de limpa de pasto ou simplesmente para saber notícias, principalmente daqueles que se sabiam doentes. Deixava a boiada seguir com os demais companheiros e depois os alcançava no galope. Não havia perigo nisso, pois os cães ajudavam na tarefa de manter o rebanho junto retornando as reses por vezes desgarradas. Mas às vezes eles eram o problema, metiam-se em confusões; Sansão acuou um ouriço e ficou cravejado de espinhos, Tarzan cheirava a jaratataca. Alterações nas aparências e nos odores que o gado rejeitava bufando de chifres baixos. Mas rolando aqui e acolá na poeira e na lama, os animais conseguiram recuperar suas condições naturais de higiene. Sansão deu mais trabalho, pois precisou que Benvindo extraísse os espinhos do ouriço com um alicate. Uivou como estivesse morrendo. No fim, nada demais.     

Em todo o lugar que passavam um comentário era constante:

     -Lá vai o Benvindo Rodrigues com os filhos...

E não precisavam ao rigor dizerem mais nada. Era um nome associado ao respeito, à riqueza e ao exemplo para aqueles que sonhavam em enriquecer. Benvindo não escondia de ninguém que trabalhava dia e noite só pensando em prosperar. Dizia que imitava o ingazeiro da beira do Ribeirão Grande, florescendo e dando frutos o ano inteiro na terra úmida. E a sua umidade era o trabalho. Por outro lado era um rico humilde e principalmente temeroso aos castigos de Deus. Orava toda noite antes de dormir pedindo para viver até ficar muito rico, mas nunca ligou para aproveitar da riqueza que tinha. As suas camisas eram costuradas à mão de pano tecido no tear. Calçava precatas de couro cru. Chamava até os meninos de senhor. Gostava de comer em cuia. Portanto, não tinha homem mais simples apesar de rico e agora de cabeça fria arrependeu-se do teor da conversa que teve com o pobre carapina. O seu jeito de homem justo e honesto seria o bastante para obrigá-lo a cumprir com o que fora apalavrado da primeira vez.

     -Lá vai o Sô Benvindo Rodrigues tocando a boiada, homem para mais de uma mil cabeças de gado e para mais de mil alqueires de terra.

     -Terra boa?

     -Oh!

     -Dá o que?

     -Arroz, feijão, milho, milho de pipoca, mandioca e café.

     -Café também?

     -Oh, tem mais de dez mil pés plantados, na beira da serra.

     -O que mais?

No resto não planta mais nada, só pasto para o gado.

Vacas?

Vacas, cavalos, mulas, éguas e jumentos.

Cabrito?

Não. De jeito nenhum. Benvindo acha que cabra, cabrito e animais deste tipo estragam o pasto, pois roem até as estacas das cercas.

Ah, bão.
     E foi por conta desse exemplo de homem sabido que o carapina voltou a trabalhar com afinco para aprontar a bica em trinta dias, antes da data marcada para o mutirão da limpa de pastos. Tolerando a dor no pulso de manejar a enxó, suportando a vontade de tomar um gole de café e consequentemente de pitar e as vezes até de fazer as necessidades fisiológicas. Era para cumprir a palavra com o patrão, mas também para nunca mais vê-lo na condição de inimigo, mordendo a língua e retorcendo os beiços. As lascas de paus voavam para todos os lados. Naquele dia só se permitiu parar o trabalho para almoçar. Como sempre a comida chegou pelas mãos dos meninos Tião Benvindo e de Antoin Medeiro. Cuidadosamente preparada por Clara numa gamela, num canto arroz, noutro, linguiça de porco, no meio, o feijão em forma de tutu ocultando generosos pedaços de torresmos fritos e a couve picada. A comida era famosa entre os trabalhadores da propriedade. Tinha homem que trabalharia só pelo direito de comê-la, mas jamais contaria isso a esposa, principalmente se ela fosse ciumenta. E não à toa, pois corria ditado naquela região que o tempero tinha a ver com a beleza da cozinheira. E naquele dia, Clara devia estar mais formosa que quando se casou com Benvindo, pois o cheiro da comida roubou do hálito silvestre do vento cortando a sensação de que, à beira da serra, aquelas três pessoas estivessem num local intocado pelas mãos humanas.
     -Eta comer bão! Disse o carapina segurando a gamela entre as pernas, sentado no tronco em que lavrava. E comprovando a veracidade da frase transferiu o conteúdo da artesanal vasilha para o bucho.
     Tião e Antoin ficaram abismados com a fome do trabalhador e agora aguardavam ele tomar o café do jeito que lhe observaram nos dias anteriores, de sorvo, sem respirar. Caso isso acontecesse novamente, seria a última vez que beberia alguma coisa sem cheirar ou sem primeiro prová-la usando apenas a ponta da língua. Ficaria adepto do ditado que diz que cachorro mordido de cobra tem medo de linguiça. Mesmo em casa, ao beber a água do pote cheiraria antes. Porque a bebida estava tão concentrada de salmoura que quase o matou asfixiado; deixando seus olhos esbugalhados, as narinas entupidas, o rosto roxo e a respiração tão prejudicada que quase não lhe foi possível restabeleceu o fôlego. A cena foi tão forte que superou as expectativas dos seus idealizadores, os experimentados artistas Tião Benevindo e Antonin Medeiro que no momento nem riram, ao contrário, deram tapas nas costas do pobre Maximiliano ajudando-o a recuperar do susto. Só depois que ele explicou que Clara havia errado no adoçante do café, botando sal em vez de açúcar foi que eles riram, mas bem menos do que das suas traquinagens dos outros dias quando o deixou detrás das moitas, gemendo, intoxicado pelo óleo de rícino misturado ao feijão e também pela troca da farinha pela ração das galinhas. Agora riram com parcimônia, pois o carapina fez uma cara de quem estava desconfiado de que eles tinham alguma culpa em cartório.

3

     O verde chapadão que no mês anterior ardeu em fogo estava , transformou-se num belíssimo vale. Não fossem os pretos nas cascas das arvores tortas, ninguém diria que, há menos de um mês, o lugar ardera em fogo, pois agora era um tapete verde manchado de outras cores. Estas manchas eram as flores exóticas como a resistente “barba do capeta” ofertadas em várias tonalidades de vermelho. O verde, porém é o que interessou ao gado que comia o capim com gula recompensando as horas de jejum passadas durante a longa caminhada. Não se preocupava em em economizar comida para os próximos dias que ali passariam. Morariam naquele lugar até alguma alteração nas suas condições de utilidade; as vacas perto de parir voltariam para as propriedades leiteiras; as que fossem atacadas pelas onças e pelas cobras certamente morreriam e também algumas sairiam por serem vendidas como estava preste a acontecer com uma delas.

Mas o chapadão apesar de tudo era o cofre onde Benvindo depositava uma parte importante de sua riqueza, mais precisamente a que podia se transformar em dinheiro a curto prazo, às rezes de corte. Assim ele chamou o filho Alvarindo para um canto, longe de Zé e disse com uma das mãos sobre o ombro do rapaz.
     -Venda uma vaca e fique com o cinheiro!
     -Para que, pai?
     -Pra comprar um novo chapéu.
     Deu um breve silencio para que o rapaz pudesse responder ao pai.
     -Mas eu já tenho um.

Benvindo fitou-o dando-lhe ciência de que sabia mais do que queria contar sobre o desaparecimento daquele objeto que o filho valorizava mais do que qualquer outro pertence, mais do que a sanfona porque nunca aprendera a tocar, mais do que sela porque Alvarindo gostava mesmo era do bom e velho arreio.
     -Compre outro chapéu de pelego. Fica bem em você!

4

Clara acreditava que estava ficando doida. Como se não bastasse botar sal no café do carapina agora não se lembrava onde guardou a pinga e o pedaço de fumo do Vicente, o retireiro. Não que ele tivesse pedido de volta. Absolutamente. Clara sabia que ele jamais procuraria por aquilo. E o fato dela denunciar o sumiço dos guardados era justamente para dar conhecimento de que naquela casa não havia nem pinga para remédio.
-Não importa, Dona Clara, aquele pedaço de fumo já estava velho, não servia mais para cigarro e a pinga estava azeda.
-Não sei mais onde guardei.
-Deixa isso pra la!
     Deixava. Mas ordenava ao empregado para ir à venda comprar o que havia desaparecido. Dava-lhe dinheiro, recomendava não economizar, pois por ali sempre passava pitadores procurando por fumo toda hora e a pinga era coisa boa para curar resfriados. E Tomila também sempre lhe pedia quando passava por ali para fazer partos. Nestas ocasiões não podia faltar um litro para ferver com arruda.
     -E também traga uma bateria nova para o radio. O radio e bom para a gente saber as horas.
     Vicente entendia Clara como ninguém. O seu nervoso, gritos com os filhos eram provocados pela falta de fumo para mascar e a pinga para beber. E para supri-la sem ofende-la, inventava justificativa.
Guarda isso para mim, Clara.
Clara atendia.
     A recuperação de Joaquim, que andava com desenvoltura e sem febre pelo corredor da casa a deixava satisfeita. A sua relação de mãe era mais acentuada com ele que a adulava e como cúmplice com o radio.
     - Posso ligar o radio para saber as horas?
     Não esperava pela resposta. Sintonizava às vezes a radio Inconfidência de Belo Horizonte num programa dedicado aos fazendeiros, que ela gostava de ouvir e na radio Aparecida, na hora da benção, às três horas da tarde. Colocava um copo d água sobre o eletrodoméstico que o padre, em seu programa diário, benzia a distancia. Uma água usada nos momentos aflitivos; na picada de uma cobra, cessar chuva brava e curar dor de cabeça e cólicas agudas.
     Mas ao primeiro sinal de ou barulho que alguém em casa, fora Joaquim, desligava o aparelho. Como radio era um bom relógio. Quando Madalena e Clarinda voltavam da bica d´água onde ia lavar roupa, Clara o desligava.
     -Não precisa mãe, a gente sabe que a senhora escuta radio.
     -Eu escuto as horas. Não admito falar comigo desse jeito. Só porque pensa que vai casar com o Juca Neves está falando o que quer?
     -Discurpa, mãe. A gente também gosta de ouvir. Estamos cansadas, lavamos duas trouxas de roupa.
     - Está bem, só um pouco, depois junta os meninos para os banhos.
     -Ta bom, mãe.
     Na cozinha Ana chorava por café, no quintal os meninos procuravam o fugitivo gato com uma palha de bananeira presa no rabo. Tião atiçaria fogo nela se o esperto bicho de sete vidas não tivesse escapado das mãos de Antoin Medeiro e ganho o mundo. Maria olhava aquele movimento da janela.
     -Vou dizer a pai. Ameaçava.
     -Conta enredeira, não lhe dou picolé quando a gente for pro Gloria.
     Maria gostava de picolé. Muito mais que Ana de café. Mas entendia que precisava passar um medo no irmão, colocar limites nele, já que suas artes incógnitas somente ela percebia.
     - Peço ao Zé e Alvarindo.
     Ameaçado Tião Benvindo freava seu impulso criativo. Mas não por muito tempo. Mas gostava de um mal feito. Dedicava a maior parte de seu tempo nisso. Estudava a natureza das coisas, os procedimentos humanos e não parava de engenhar peripécias mesmo quando tratava das galinhas, dos porcos ou botava lenha para dentro da casa. Vicente Avelino desconfiava dele. Vitima por varias vezes não se sentia confortável vendo-o por perto, principalmente acompanhado de Antoin Medeiro. Um dia amarraram sua botina no pé da cama, usando o laço acima do calcanhar. Vicente dormia profundamente sonhando que era domingo e ele estava na venda e não viu os traquinos entraram em seu quarto. O resultado foi um belo tombo. Clara deu-lhe nas pernas e na bunda com uma vara de marmelo e o botou de castigo, separando os grãos de feijão dos de milho misturados com essa finalidade. Nessas horas, Antoin Medeiro, um parente, sumia e voltava uns cinco dias depois.
     Clara, ao contrario de Benvindo, não se preocupava em demasia com os filhos. Preocupava, mas em mantê-los limpos e alimentados. Por ela não certificaria com o medico os comportamentos estranhos de Maria e Ana. O médico do Gloria, o Doutor Freitas recomendou que as levassem a Belo Horizonte, examinassem suas idades cronológicas e mentais. Tudo levava a crer que eram portadoras de atrasos no desenvolvimento. Clara manteve-se imparcial e obedeceu a recomendação ate chegarem no consultório do psiquiatra, um lugar estranho, cheio de quadros sem sentidos e estatuas sobre a mesa e a prateleira e o medo de que as internassem no manicômio de Barbacena tirou-a dali às pressas. Pois já não bastava o exemplo da Maria Medeiro, irmã de Antoin, de quem sentia pena.
     -Eles dão choque na gente, tia.
     Não deixaria acontecer o mesmo com as filhas. Benvindo devia entender o que ela já sabia, desde que as viu no primeiro instante de nascidas, eram deficientes. O que faltou nelas sobrou em Tião, cuja inteligência não o deixava quieto obrigando-o a criar coisas constantemente. Coração de mãe não se engana. Sabe tudo.
Para Alvarindo Maria era uma boba ativa. Usavam o termo bobo no lugar de deficiente. O fato de ser o “repórter” da casa, dando todas as noticia; se uma vaca parisse; se uma roça de milho estava boa para fazer pamonha; quem fosse chegar; se alguém estava triste ou alegre. Adivinhava o pensamento de todos. Aquilo por vezes irritava Alvarindo.
- Alvarindo falou que vai pro Gloria namorar.
Não falei isso.
Mas não adiantava negar. Maria não mentia. Sem a atenção dos outros aprendeu a ler feições e adivinhar pensamentos. Ela captava as noticias e as divulgava. Hora que era ouvida e vista. Quem quisesse manter segredo que não falasse nem alto ou baixo e nem pensasse perto dela.
Ana preocupava-se em beber café e namorar. Na sua inocência qualquer pessoa servia para namora-la. E queria namorar qualquer homem fosse ele disponível ou não. Quando os noivos de Madalena e Clarinda chegavam a casa não os deixava em paz.
Inhozinho quer namorar comigo?
Se a Bastiana não me quiser a gente namora


5

Quando os três boiadeiros atravessaram o córrego, onde se lavaram e trocaram de roupas, ouviram o som da sanfona. A musica que contava com a marcação de uma caixa e pandeiro não deixava duvidas que o pagode estava dos melhores. O dono da casa Mane Vendero que alem de explorar por ali um comercio de secos e molhados, promovera um mutirão para limpar o pasto de sua propriedade. E agora gratificava os participantes com uma dança, comidas e quitandas. Quando Benvindo e os filhos chegaram na tolda, armada para a festa, ele veio recepciona-los.
-Seja Benvindo ao nosso pagode. Gostava de brincar com a palavra benvindo.
-Brigado, amigo Mane. Na verdade vim apenas pedir pouso e comida. Fomos levar o gado para o chapadão e como de costume a gente sempre pousa por aqui. Mas tire cinco litros de pinga de seu comercio e de para o povo. E por minha conta.
Mane Vendero era um explorador do povo da região. Alem de vender os produtos pelo dobro ou triplo do preço que os comprava em São Jose do Barreiro ou em São Roque de Minas, ainda cobrava pelos pousos dos boiadeiros. Os animais cobravam por cabeça. Mas quando bebia, e isso era difícil, ficava rico conforme lhe dizia a mulher. Distribuía cachaça de graça, ficava emotivo, abraçava o povo e chorava de saudade da filha que estudava na cidade. E aquele era um desses dias, havia bebido. A cachaça rolava solta. As grandes panelas de comida, que matinha para cozinhar para os boiadeiros, era de graça.
- O dinheiro do Sor hoje num vale nada aqui. Bamo desarria os animalis e se diverti no pagode, mode que a vida e curta.
E tinha motivo para isso. A filha havia chegado trazendo com ela uma colega. Estava dos mais feliz e não escondia esse fato de ninguém.
Sansão e Tarzan juntaram-se a outros cães que com seus donos participaram do mutirão. O que não faltava era resto da melhor comida, saborosos ossos de galinha caipira. O que mais um cachorro pode desejar?
Depois de soltar os cavalos no pasto que Mane Vendero reservava para esse fim, os boiadeiros foram convidados a ir para a cozinha onde Zé conheceu a colega da filha de Mane Vendero, uma loira de olhos azuis e cabelos cor de mel descendo pelos ombros e costas. A moça que o conhecia de outras viagens boiadeiras, mas que daquela feita não podia dar-lhe atenção, pois estava com um namorado o tira-colo, vindo também da prospera cidade de São Jose do Barreiro reservou-lhe a moça. Melhor. Vez dele a maior propaganda. Disse que era um rapagão bonito, desejado pelas moças do Gloria e, ainda por cima, um bom partido, pois era filho de fazendeiro rico. Zé portava um chapéu de pelo na cabeça, levemente levantado a aba para parecer-se com os mocinhos dos filmes americanos. O lenço no pescoço, encarnado, contrastava com a luz da lamparina e o seu rosto branco, fidalgo, diferente dos demais rapazes de peles encardidas, o fazia diferente. A sua grande mão fez desaparecer os franzinos dedos de Maria dos Remédios. Ela deslumbrou-se. Não saiu da cozinha enquanto ele não terminou a refeição e o arrastou para a tolda, para o desespero de outros rapazes que com ela queriam dançar.
Benvindo e Alvarindo olharam o baile ate pela meia noite, mas depois que Zé Barduino comandou a quadrilha foram para o paiol de milho dormir. No mesmo dia precisavam voltar para o Quilombo e a distancia era grande. Mas Zé continuou agarrado a Maria dos Remédios. Numa certa hora um filho de outro fazendeiro da região que durante o dia vira a possibilidade de namorar Maria. Ela o olhara com leve sorriso nos lábios entregando o prato para ele almoçar. E daquele momento em diante não tirou a moça da cidade do pensamento. E vendo-a enrabichada com outro sem dar-lhe a menor atenção durante toda a noite, bebeu, e concordou consigo mesmo que não devia deixar o acontecido pelo não acontecido, e valente esbravejava do lado de fora da tolda com um punhal na mão.
-Pico ele na faca!
Felizmente o vendeiro e outros homens que controlavam o evento, deram jeito na situação sem que Maria e seu namorado percebessem. Mane acostumara enfrentar aquele tipo de bravata. E aproveitou a ocasião par botar-lhe medo. O valente, de nome Joaquinzinho não era a primeira vez que aprontava em sua venda. Um dia bebeu e queria colocar o cavalo para dentro da venda. Deu o que fazer para acalma-lo. Gastou café amargo e paciência. Mas daquela feita resolver passar o troco.
-Entao você não sabe a fama dos Benvindos?
O criador de caso, neste ponto da conversa já estava assustado.
-Não.
-E gente brava. Mata pra ver o cabra gemer.
Joaquinzinho guardou o punhal e disse que não continuaria com aquela relia.
-Agora e tarde. Disse o vendeiro com cara de quem dava péssima noticia. Os Benvindos sabem da sua provocação. E já tão reunidos.
-O que vão fazer? Vai me matar?
-Não. Mas como não deixam passar nada em brancas nuvens, acho que vão fazer aquilo quando deixam o cabra vivo.
O que e?
Mane Vendero olhou para um companheiro que lhe deu credito afirmando um sim com a cabeça.
-Vao lhe castrar, com a um cachaço.
E foi o suficiente para vê-lo sair em disparada, deixando para trás os pertences. De forma que Ze e Maria dos Remédios ficaram livres para dançar o restante da noite, ate o sol raiar. Na hora dele ir embora, Benvindo e Alvarindo estavam com os cavalos arriados e Sansão e Tarzan mobilizados, ela encostou o rosto naquele grande peitoral.
-Voce vai se lembar de mim?.
-Claro. Como posso esquecer?
-Quando encontrar com uma moça bonita do Gloria nem vai mais se lembrar de mim.
-Engano seu.
-Jura?
-Claro.
-Quero que leve uma lembrança minha.
O que e?
Uma medalhinha.
E de Santo?
Não! E de Divino Pai Eterno. E para quando sentires em dificuldade valer-se dela. Posso coloca-la no bolso de sua camisa?
Pode.
Bamo bora! Sentenciou Benvindo.
E os três boiadeiros deixaram o lugar. Depois que andaram uns três quilômetros os cães encontraram algo na beira da estrada. Era Joaquinzinho. Bêbado, que sem poder caminhar a pe, deitou e dormiu. Quando os Benvindos ficaram em sua frente e ele abriu os olhos reconhecendo-os ficou com os olhos estatelados de terror.
-Oceis vão me capar agora?
Alvarindo, que tinha grande perspicácia, entendeu que aquela era uma situação no mínimo para se levar adiante, saber no que daria.
-Nois vai capar ele, Ze?
-Voce que sabe.
E Joaquinzinho correu e trepou numa arvore próxima. Horrorizado gritava.
-Acode, gente, acode!
So a custa de muita explicação soube da verdade. Mais foi tarde, já havia sujado as calças.

6

     O dia não havia amanhecido quando Joaquim trouxe os bois para o curral. Ele era quem gostava de ajudar quando o trabalho fosse ligado ao carro de boi ou simplesmente boi de carro. Sabia tudo sobre essa profissão, o que fazer em cada situação. Nos tempos das colheitas de arroz, milho, feijão trabalhava de candeeiro. Realizava-se somente em ver o cantar do carro, o eixo atritando com o cacau. Benvindo colocou a sogra nos chifres dos bois, juntando aos pares e, depois colocou as cangas em seus pescoços e os cambões ligando estas, ate que o ultimo ficou de arrasto no chão e serviria para amarrar a bica, usando uma grossa corrente de aço.
     -Fasta Matreiro vem Berrante, ordenou Joaquim aos bois de guia.
     Depois de tomar o café, que Ana trouxe, e deixar recado para o carapina com Vicente que ainda terminava de tirar o leite das vacas, Benvindo colocou os bois na estrada.
     -Eira! Bora! Chacoalhava a vara no ar.
     Aquela foi a ultima vez que Clara viu o seu primeiro marido com vida. Soube a noticia, pela boca de Joaquim e do carapina que ele, quando amarrava a bica no cambão, deu um grito “ai!” E caiu sem vida. Uma morte instantânea, mas não surpreendeu os que já sabiam da sua doença, a Chagas. Uma doença que, conforme dizia Tomila, mulher de Ze Barduino, costuma matar as pessoas por volta de seus quarenta e cinco anos. Voltou para casa morto. O carapina arrastou a bica. Ali terminava a vida de um cabloco trabalhador. A noticia de sua morte entristeceu a região. Uma dupla de cantador da Gurita fez uma moda contando sua vida e sua morte.
     
“... a noticia correu, o Benvindo morreu”.

     Assim terminava a letra. Alvarindo e Ze, tempos depois quiseram ouvi-la, souberam da noticia por umas pessoas que o viram cantar na venda, e a dor da perda do pai era uma coisa sem fim, não cabia dentro de dois corações acostumados a vê-lo lado a lado, trabalhando na lida do gado, consertando cerca de arame farpado, curando as reses, amansado cavalos, aumentou com aquelas estrofes e a voz tremula da dupla que soltava a voz a custo das grossas veias no pescoço. Foi uma moda que não gostariam nunca de ouvir, uma tristeza que não mereciam. Mas Vicente Avelino retirou a rolha da garrafa e enchendo as xícaras deu a cada um para beber. Os rapazes também solveram daquele liquido. Era um modo de atenuar o sofrimento.
     
     Vicente Avelino, irmão de Tomila e de Roque Avelino era quem cuidava de tudo naqueles dias de luto. Ninguém fora dele tinha cabeça para fazer nada, cuidar das vacas, olhar a propriedade. Alvarindo danou a ir para o Gloria e levava com ele os irmãos. Clara ficava acéfala na responsabilidade de levar avante o projeto de vida que desenvolvera ao lado de Benvindo. Sem ele o que parecia ser simples não tinha rumo. O que era fácil não era mais. Vacas morriam no pasto, vitimas de cobra e erva, o leite diminuía, o queijo perdia a qualidade. Os fregueses do Gloria e de São Roque reclamavam. O que fazer?
     Vicente aos poucos foi colocando as coisas no eixo. Trabalhava mais sem exigir nada em troca. Tinha pena da situação de Clara. Diminuiu as idas a venda, conforme fazia todos os domingos, quando gostava de tomar umas pingas. Mas teve um dia que não houve jeito. A goela coçava, o sangue pedia e, entao ele arriou o burro, colocou nele um arreio com detalhes em prata, o bridão e as rédeas eram de luxo, coisa de quem tinha vaidade. Chegou lá com pompa de fazendeiro, e falando com toda a confiança que um homem podia ter em si, pediu uma cachaça. O vendeiro serviu-lhe com olhos de quem procurava curiosidade.
E entao, Vicente, como vão as coisas?
Miorando...
Fez cara que gostou da pinga. Estalou a boca e os dedos no ar. Era da branquinha.
-Ponho outra?
-Demoro!
Depois disto prestou atenção no ambiente. Estavam na venda dois sujeitos. Um era tirador de leite de Inhambu e Vicente o conhecia. O outro era novo na região. Tinha ares de ser gente da cidade e tomava uma cerveja.
-Gosta disso quente?
-Gelar aonde?
-Por isso tomo da quente, e concluiu, não gosto de beber espuma.
-Mas uma geladinha e boa?
-Se e. Mas cada lugar exige uma bebida. Aqui na roça, tomar cerveja e o mesmo que beber purgante.
-Não me dou bem com pinga. Fico tonto à toa...
-Farta de costume.
Depois disso houve um silencio. O rapaz voltou a perguntar.
-O senhor e fazendeiro daqui?
-Não. Na verdade o único bicho que tenho e uma cabra. Minha vida e luitar com o gado dos outros.
-Trabalha para Dona Clara, adiantou o vendeiro.
-Mas já tou deixano o serviço. Concluiu Vicente.
-Já? Uai, entao o que falam e mentira?
Olhou lacônico para o vendeiro.
-Dizem o que?
-Que voce namora a viúva.
Retirou um monte de moedas da guaiaca e as depositou no balcão produzindo um barulho que feriu os ouvidos de todos. Em seguida, bebeu de sorvo o resto de pinga do copo, caminhou para a saída, ajeitou o chapéu e deu a resposta que ele esperava.
-Se eu tiver num e da conta dóceis.
Montou o cavalo e foi-se. Da outra vez que retornou ali não era mais Vicente Avelino, mas So Vicente Avelino.
-Fazendeiro Rico.
-Dono de muitas mil cabeças de gado.
Usava novidades, esporas de prata, legitimo revolver inglês na guaiaca e um bigode que Clara exigiu para retirar-lhe a cara lambida. Botou o chicote sobre o balcão e cumprimentou a todos.
-Boas tardes.
Mas ouve gente que não respondesse. Mas não foi por falta de educação e nem de consideração. Economizavam palavras. Um mineirinho do canto nem olhou, continuou fazendo o seu pito sossegado.
-O que vai beber?
-Tem da branquinha?
-Claro.
-Entao serve todo mundo. E por minha conta. E depois voltou desafiante para todos da venda. E pra todo mundo beber!
Antes que a ordem fosse obedecida, o mineiro do canto, que antes fazia o pito sossegado, de impulso fez-se de pe e de punhal na mão mirou Vicente com raiva.
-Pois eu num bebo!
Os outros homens permitiram abrir um claro de frente ao balcão, criando uma espécie de rinque para o duelo que vislumbravam aconteceria. Mas Vicente não estava ali para brigas. Não tinha porque brigar. Queria mais era comemorar, mostrar a alegria que sentia.
-Carma, amigo. Sou da paz.
O homem nada disse. Continuou em posição de luta.
-Num quero fazer ninguém beber a força. Foi uma força de expressão, tentei ser cortes com que não tem dinheiro pra uma pinga. Que raiva e essa amiga?
Num levo desaforo pra casa.
Pois entao considere isso como um convite amável. Tome comigo uma branquinha e seremos amigos. Como e seu nome?
Chico Anjo.
Não quis a pinga. Nem deu demonstração de gosto ou desgosto e voltou a picar o fumo Mas de resto nenhum outro recusou. Mas depois de um trago foi Vicente quem quis voltar a pendenga. Disse em voz baixa ao vendeiro amigo, dando-lhe ciência do que aconteceria em seu estabelecimento.
-Vou matar àquele desgraçado!
E desabotoou o coldre. Mas o amigo se interpôs e o aconselhou.
-Num faça isso.
-O merda num merece morrer?
-Deixe as coisas como estão. Aconselhou novamente. O coitado ta amuado.
-O que lhe acontece?
-Perdeu o emprego, e ta casado de novo.
-Ah, bao. Concordou abotoando novamente a fivela prendendo o revolver. E dirigindo ao mineirinho.
-Quer um trabaio?
Mas o homem permaneceu calado.
-Ei, moço, pra que tanto orguio? O sumiterio ta cheio de gente braba.
E vendo que a intenção de Vicente era boa, tentou desfazer da preocupação em que estava mergulhado. As suas feições mudaram.
-So se voce me pagar uma branquinha. E depois de uma pausa completou. Tou sem tostão!.
Vicente foi assim. Entendia todo mundo e queria que todo mundo o entendesse. Contanto que o deixasse viver a sua vida não interferia na de ninguém. Mas quando bebia era que nem Mane Vendero, ficava rico, ou melhor, demonstrava o que tinha. Se fosse preciso comprava a venda, a loja, o gado e botava fogo. Ai de quem mexesse com os filhos mais novos de Clara. Os viu nascer e gostava deles, mesmo não sendo seus. Brincava com Alexandrina, a mais nova, mas Clara teve duas filhas suas, a Aparecida e a Ivone. Mas os filhos mais velhos não o viam com os mesmos olhos. O coração era de angustia, de saudade do pai Benvindo. Tanto que na venda chegou a noticia que Vicente tinha dado um tiro em Alvarindo. O fato que não foi apurado tinha motivado a ida dos filhos da Clara para Goiás. E em verdade ninguém mais os viu por ali. Sumiram todos, como alguém que parte num disco voador.


Biografia:
Escrever é fácil, o difícil é entender.
Número de vezes que este texto foi lido: 52822


Outros títulos do mesmo autor

Poesias Fryuds Onildo Rodrigues Soares
Contos Os Maridos de Dona Clara Onildo Rodrigues Soares
Artigos É possível aprender a ser feliz Onildo Rodrigues Soares
Poesias Direito a informação Onildo Rodrigues Soares
Poesias A apoteose do começo Onildo Rodrigues Soares
Poesias E a luz se fez Onildo Rodrigues Soares
Poesias A chave do céu Onildo Rodrigues Soares
Poesias Coisas da vida Onildo Rodrigues Soares
Poesias Fryusds Onildo Rodrigues Soares
Poesias O Luto Vermelho Onildo Rodrigues Soares

Páginas: Próxima Última

Publicações de número 1 até 10 de um total de 15.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
JASMIM - evandro baptista de araujo 69018 Visitas
ANOITECIMENTOS - Edmir Carvalho 57926 Visitas
Contraportada de la novela Obscuro sueño de Jesús - udonge 57560 Visitas
Camden: O Avivamento Que Mudou O Movimento Evangélico - Eliel dos santos silva 55844 Visitas
URBE - Darwin Ferraretto 55126 Visitas
Entrevista com Larissa Gomes – autora de Cidadolls - Caliel Alves dos Santos 55082 Visitas
Caçando demónios por aí - Caliel Alves dos Santos 54964 Visitas
Sobrenatural: A Vida de William Branham - Owen Jorgensen 54905 Visitas
ENCONTRO DE ALMAS GENTIS - Eliana da Silva 54835 Visitas
Coisas - Rogério Freitas 54832 Visitas

Páginas: Próxima Última