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O OUTRO
O OUTRO
LLEAL

Resumo:
O outro.

Ele torceu os lábios e perguntou:
“Poder? Que poder?”
“O poder de conseguir o que quiser. Você só precisa desejar e está feito.”
Com os lábios unidos e um ar pensativo ele se levantou, sacudiu a cabeça e como alguém acabou de lembrar-se de algo engraçado soltou uma risada de deboche que sacudiu sua barriga volumosa e ressoou através das dunas de areias.
O outro, sentindo o calor sufocante que encharcava seu turbante branco aumentar, levantando-se devagar, começou a entrar em pânico ao pensar na possibilidade de não ser levado a sério.
“Agradeço muito pelo que você está tentando fazer, mas não creio que vá dar certo. O sultão já decidiu o futuro de minha filha e talvez o meu também.”
Expirando ruidosamente, o outro levantou a mão direita, voltou os olhos para o céu e disse:
“O gênio tem o poder de mudar tudo isto, Kalib”
Kalib, transformou o semblante risonho que carregava na face em uma profunda expressão de desânimo, como se a alternativa oferecida não fosse a que esperava, deixou cair ainda mais os braços longos, esticou os dedos das mãos, como se estivessem apontando para as areais quentes do deserto, apertou os lábios com força e sob o olhar penetrante do outro, sem dizer palavra, encaminhou-se para sua tenda.
No dia seguinte, durante a dura jornada, sob o sol escaldante do deserto, até o castelo do Sultão, á medida que o sol crescia, as preocupações de Kalib aumentavam.
Ele estava tão nervoso, que a cada cinco minutos, parava, respirava fundo e tomava alguns goles de água, contrariando uma das mais importantes regras do deserto, ou seja, a de não desperdiçar água, mas sua garganta, como se fosse o próprio deserto estava sempre seca e aspera.
Por outro lado, o outro parecia nunca ter sede, apenas caminhava, caminhava e caminhava em um silêncio incansável.
“Jamais deveria ter concordado com uma tolice dessas, disse Kalib a si mesmo com voz baixa para não ser ouvido pelo outro, enquanto observava seus pés afundarem-se na areia. Pensei em tudo depressa demais e acabei me deixando levar pela empolgação de poder salvar minha filha e agora estou aqui a caminhar no meio do nada.”
Assim ambos passaram o dia, em direção ao horizonte que parecia nunca se aproximar.
Ao entardecer, observando que a luminosidade começava a diminuir e a sombras da noite a surgir, decidiram montar acampamento.
Estava tudo muito silencioso.
Nenhum som podia ser ouvido no ar, como se o único ruido permitido naquele lugar fosse o lamento do vento a açoitar as montanhas de areia.
Mais tarde, depois de fazerem suas preces, Kalib arrumou a fogueira da noite, tentando controlar seus nervos enfraquecidos pelo desespero, esfregou as mãos e arrastando os pés como se fosse um condenado sentou-se com as pernas cruzadas a espera que ele viesse lhe fazer companhia.
O outro deixou que ele ficasse sentado sózinho por quase cinco minutos.
Após este tempo, quando surgiu na abertura da tenda e seus olhos decididos cruzaram com os de Kalib, ele sentiu um calor subir-lhe pelo rosto e seu nervosismo diminuir.
Encaminhando-se para a fogueira, o outro sorriu um pouco, o suficiente para confortar o atormentado coração de Kalib e sentou-se exatamente na mesma posição, bem em frente a este, como se tivesse a intenção de ser o seu reflexo em um espelho imaginário.
Kabli notou que os olhos do outro estavam mudados, pareciam mais aguçados, escuros e focados e mesmo sentindo o sangue latejar em seu cérebro, encarou-o francamente.
Permaneceram em silêncio, os olhos preocupados e sérios, cheios de estranhos presentimentos, até que o outro, sem desviar o olhar, falou:
“Kalib, meu doce irmão, você lembra o dia quando me pediu ajuda?”
Kalib sentiu sua boca escancarar-se em assombro pela lembrança, os olhos arregalarem-se, a pulsação parar por completo e o coração a fazer sons de um tambor sendo freneticamente martelado cada vez rápido e o gemido que saiu de sua garganta, quase inaudível, teve que ser complementado por um gesto com a cabeça para se fazer entendível.
“Sim”
Com toda paciência, parecendo estar esperando que Kalib se acalmasse, o outro, quando ouviu-o soltar a respiração, ruidosamente, falou baixinho:
“Agora sua mente voltara até aquele dia”
Sob a luz pálida do luar as palavras que o outro pronunciava, sem pressa, pareciam suaves gestos de comando, como se quissesse prolongar aquele momento para sempre. Kalib, sentindo os olhos enevoados, diante do olhar penetrante do outro, por um instante escutou a brisa do deserto sussurar em seus ouvidos e teve que ordenar a si mesmo que apoiasse as mãos na areia para não cair para trás, quando sentiu sua mente ser inundada por sensações descontradas e os pensamentos serem arrastados para um passado longínquo, como se estivesse entrando em um sonho, mesmo acordado.
Baheil, a cidade situada em meio ao maior deserto do mundo, estava calma, tranquila entre as paredes altas que protegiam suas três entradas e no escuro de seu interior somente o som de alguma ave noturna ou o sussurar de uma voz perdida no calor sufocante da noite se deixavam ser ouvidas.
Kalib, naquela noite, muitas noites atrás, acordara com o cheiro da chuva a encher-lhe as narinas e num gesto automático, esticara a mão esquerda em direção á cama da filha, mas seus dedos ansiosos esbarraram no vazio quando percorreram a frieza dos lençóis, então, como todas as noites seus olhos encheram-se de água e seu grito de lamento desesperado foi ouvido por toda Baheil.
Ele levantou, silenciosamente, de forma tão rápida que parecia ter sido chamado para uma batalha e sua mão direita alcançou a espada encurvada encostada na parede, mas quando seus olhos vararam a escuridão do quarto e encontraram o leito vazio, seu coração encolheu-se e o sangue circulou mais depressa em sua cabeça, trazendo-lhe as lembranças da noite de luar, quando sua filha fora tomada pelo sultão e pela segunda vez seu sofrido grito de dor foi espalhado pelo vento, por toda a cidade, como todas as noites.
No próximo instante, ele deixou-se cair de joelhos e jogando a espada ao lado, cobriu o rosto com as mãos, como se estivesse envergonhado e ficou a chorar até que uma voz desconhecida se fez ser ouvida:
“Kalib”
Perplexo, ele afastou as mãos, ergueu o rosto riscado de lágrimas, abriu os olhos e deparou-se com o olhar acusador de um homem alto, de ombros largos, vestido inteiramente de branco e o meio sorriso que acompanhava seus olhos brilhantes, por uma razão inexplicável, mostrou-se para ele como um momento de esperança.
“Quem é você? Como entrou em minha casa? O que deseja?”; ele perguntara, com os olhos fixos no estranho visitante, tentando entender de onde ele viera e ao mesmo tempo começando a arrepender-se de ter largado a espada
O outro, movendo-se alguns passos para o lado, levantou uma sobrancelha no rosto de feições belas e suaves e continuou observando-o com ar pensativo, parecendo estar ordenando os pensamentos antes de falar ou refletindo se deveria falar ou não.
Os movimentos do estranho mostravam determinação e suas pegadas aconteciam como se estivesse esmagando o solo em que pisava, um passo de cada vez, de forma lenta e calculada.
Então sua voz disparou um relâmpago sonoro, enchendo o ambiente, fazendo o sangue correr tão forte nas veias de Kalib que ele ficou sem fôlego.
“Você me acordou.”
Kalib reagiu, erguendo-se num salto e com a mão sobre o coração replicou:
“Oh...Eu?”
Ele não conseguia raciocinar direito e sua garganta seca pela confusão dos pensamentos aguardava sobre o que deveria ser dito ou perguntado.
“Muito bem...senhor...Quem é você?”; dissera ele, finalmente, soltando o ar bem devagar e umedecendo os lábios ressecados com a lingua
Como resposta o outro girou o corpo, avançou até a janela e abriu-a com um movimento, fazendo com que a luz do sol batesse em cheio nos olhos de Kalib, forçando a apertá-los, cegando-o e confundindo-o ainda mais.
Kalib levantou a mão a frente de olhos, tentando evitar os raios do amanhecer que machucavam seus olhos e com o coração batendo descompassadamente ouviu-o dizer:
“Estou aqui para ajudá-lo”
Ouvindo isto, Kalib abaixou a mão, sentindo as lágrimas começarem a brotar em seus olhos e a esperança começar a bater forte novamente em seu peito, então mudou seu olhar e uma dor amarga foi expressada em sua voz.
“Ninguém pode me ajudar”
O outro deu um passo na direção dele, parou e como se tivesse mudado de idéia, de repente voou até ele, como passos rápidos e olhou-o dentro dos olhos, suas sobrancelhas tão próximas que quase tocavam a testa de Kalib que sentiu o suor começar a escorrer por suas costas e pela testa, pingando-lhe sobre os olhos, paralisado pelo olhar.
Kalib, tentando se livrar do olhar, remexeu-se todo, recuou alguns passos até sentir as costas encharcadas grudarem-se na parede do quarto, passou as mãos pelo rosto, engoliu em seco para evitar que as lágrimas voltassem a escorrer pelo rosto e com os lábios tremendo, gaguejou ruidos sem sentidos.
“Arrume suas coisas, vamos resgatar sua filha”; disse o outro, com o olhar imóvel
Kalib, sentindo a força do comando, esfregou os olhos com os dedos, tentou ignorar a confusão que se apossara de sua mente e obedientemente, notando que agora o outro olhava para longe, através da abertura da janela, começou a reunir seus poucos pertences para a longa viagem
Quando ele terminou, o outro continuava com o olhar distante, voltado para o deserto, pacientemente aguardando.
Sem dizer qualquer palavra, ele se pos a caminhar em direção a saida e Kalib rapidamente seguiu-o.
Deserto de Noabi, muitas luas á frente...
Kalib sentiu uma onda de calor forte percorrer-lhe o coração, suspirou fundo, com um jeito entrecortado e piscando os olhos repetidamente sentiu que o sonho acabara, estava de volta no deserto, ao lado da fogueira e á frente do outro.
Levantando-se, o outro olhou para ele como se notasse pela primeira vez que Kalib viera com ele, estendeu-lhe a mão e quando Kalib segurou aquela mão forte sentiu emoções de bondade, sabedoria e força dançarem em sua mente.
“Amanhã confrontaremos seu destino. Sua filha está a uma lua de distância de onde estamos”
O outro voltou as costas para ele, voltou para sua tenda e Kalib precisou respirar fundo várias vezes para fazer o mesmo.
O novo dia espelhava delicadeza, mas em meio ao vazio das areias do deserto, a visão do castelo de esmeraldas que se erguia, refletida pela bola amarela que pairava no céu, brincava com esta sensação expondo as muralhas verde cinzentas como um sinal de mau agouro, esmagando qualquer sentimento de que eles fossem bemvindos.
O outro deixou Kalib ficar diante do quadro ameaçador um pouco mais, permitindo-lhe lidar com seus medos, antes de empurra-lo com suavidade, impelindo-o a seguir em frente.
Kalib, sem voltar o rosto, ergueu as sobrancelhas, colocou a mão direita por sobre a espada que mantinha na cintura e evitando soltar um gemido de preocupação ou argumentar, fingiu estar cheio de coragem, endireitou o corpo e seguiu caminho.
O outro, mantendo-se um passo atrás, recitava misteriosas palavras, parecendo estar falando diretamente com o coração de Kalib, apertando-o, recheando-o de bravura.
Antes de chegarem a entrada do castelo, o outro parou e indicou a Kalib que esperasse, então mostrando os olhos de fogo na face endurecida, ele fez um gesto amplo com o braço e como se as paredes tivessem sido engolidas pelo movimento, eles puderam ver a parte do castelo onde a menina era mantida prisioneira.
Kalib sentiu uma raiva descomunal crescer dentro de si, seu coração começou a martelar impiedosamente e seus olhos de alegres tornaram-se temerosos.
Assim como uma noite sentira o cheiro da chuva, neste momento ele sentia o cheiro da morte e o tremor, cortante como o fio da espada que carregava, fez o medo voltar ao seu rosto.
Ele sentiu a mão do outro sobre seu ombro, como a tranquiliza-lo.
Então engolindo em seco, tentando fazer com que o medo descesse junto, concentrou-se na imagem do castelo á sua frente, comprimiu os lábios, arrancou a espada que mantinha na cintura e a seguir arqueando o corpo e brandindo a lâmina no ar, fez seu grito de lamento ser ouvido pela imensidão vazia do deserto, ecoando pelas paredes frias do castelo, chocando-se contra os ouvidos de seus inimigos, congelando o sangue em suas veias.
Assim que o último eco de seu brado de guerra cessou, avançando com toda a força de suas pernas, ele correu em busca de seu destino.
Seu rosto era o semblante de um soldado, carregando fúria nos olhos.
O outro, limitando-se a observar, de forma lenta balançou a cabeça para frente e para trás, em muda concordância.
Nenhum soldado teria mostrado mais valentia ou determinação do que Kalib naquele momento e somente os olhos do outro foram capazes de decifrar os sentimentos que percorriam o cérebro e o coração daquele destemido homem.
Kalib queria sua filha de volta e conta a lenda que os corpos que caiam trespassados por sua espada ou os que eram jogados a distância sob a fúria de seus punhos ouviam nada mais do que seus gritos lancinantes e o brilho enlouquecido de seus olhos, mas os poucos sobreviventes daquela batalha sob o sol forte e generoso juravam ter visto a imagem de uma figura com vestes muito brancas que pairava no ar ás suas costas que executava gestos estranhos e palavras impossiveis de serm entendidas, enquanto ele lutava, como se estivesse protegendo-o.

Ele acariciou de leve a maçã do rosto da filha com os dedos fortes e viu que seus olhos se enchiam de lágrimas. Então, abaixou a mão, dizendo:
“E esta é uma lenda que tem sido contada atráves das gerações de nossa familia, minha filha.”
“Ele foi meu tataravô?”; perguntou a menina de olhos amendoados e pele escura
“Sim. A lenda se refere ao tempo de seu tataravô”
“Eu acredito, e você?”; ela fez a pergunta com os olhos sorrindo
“Eu também”; respondeu seu pai
“Agora durma, porque você tem escola amanhã.”; complementou ele
“Boa noite papai”
“Boa noite minha filha”

Ao canto, no quarto grande e confortável, uma figura, estranhamente invisivel para os olhos de ambos, inteiramente vestida de branco, balançou a cabeça para cima e para baixo, em sinal de aprovação.
Ele também acreditava.


Este texto é administrado por: luis carlos binotto leal
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