A jurisdição consiste na função do Estado em pacificar conflitos mediante atuação da vontade do direito a casos concretos. Em matéria penal, a jurisdição é ainda uma garantia do cidadão acusado (nulla poena sine iudicio). A jurisdição é uma só e não pode ser dividida (una e indivisível) - é expressão de soberania do Estado em seu território. O que se divide entre os órgãos é a competência, que é o âmbito legítimo de exercício da jurisdição conferido a cada órgão jurisdicional, é a medida da jurisdição e indica qual órgão jurisdicional é responsável por determinado caso.
O juiz natural (juiz legal) é aquele que detém a competência preestabelecida pela Constituição e pelas outras leis. Deve haver a definição prévia dos órgãos jurisdicionais e das regras de competência, e é necessário à manutenção da imparcialidade objetiva do julgador. São órgãos institucionais somente os instituídos pela CF (art. 92). Cumpre ressaltar que ninguém pode ser julgado por tribunal instituído após o fato a ser julgado (não haverá juízo/tribunal de exceção).
A competência dos tribunais deve ser preestabelecida na CF e nas leis, de forma que no CPP, o regramento sobre a competência se encontra no art. 69, que está sujeito a críticas por se tratar de uma classificação confusa e que mistura uma série de categorias distintas, sendo que a doutrina tenta fazer classificações mais racionais dos critérios para fixação da competência.
• Competência objetiva/material - critério de distribuição de competência entre órgãos de diferentes espécies (não pertencem a mesma justiça nem à mesma hierarquia). Essa competência pode ser em razão da matéria (ratione materiae), cujo critério de definição da competência é dado pela qualidade da matéria julgada (ex: júri), ou em razão da pessoa (ratione personae), cujo critério de definição de competência é dado pela qualidade da pessoa julgada/da função exercida pela pessoa (ex: foro por prerrogativa de função).
• Competência territorial: distribuição entre órgãos de mesma espécie (mesma justiça e mesma hierarquia). O critério é dado por alguma característica territorial do fato a ser julgado (ex: consumação da infração, local da prática do último ato).
• Competência funcional: critério de distribuição entre órgãos que atuam em um mesmo processo mas em fases/momentos distintos (ex: na persecução penal, em uma primeira fase atua o juiz de garantias (inquérito), e depois, na fase processual penal, o juiz da instrução e julgamento. Pode ainda haver um terceiro juízo competente se o processo for remetido ao TJ em razão de interposição de recurso). Trata-se de competência que pressupõe a definição das competências material e territorial. Per relationem - definido o órgão competente para iniciar o julgamento, sabe-se que outros órgãos atuarão ao longo do processo. Há um procedimento prático para se chegar à definição da competência, que vale principalmente para o órgão de acusação (MP), em relação à competência para o oferecimento da denúncia:
I - Qual a justiça competente? Qual a matéria analisada? (competência objetiva em razão da matéria).
II - Qual o órgão competente? Há prerrogativa de função/órgão especializado? (ex: jecrim, júri). Trata-se da competência objetiva em razão da pessoa/função e em razão da matéria).
III - Qual é o foro competente? Onde será julgado o caso? (competência territorial)
IV - Qual é a vara/juízo competente? (distribuição dentro da comarca/subseção, pode ser por sorteio/especialização - competência objetiva).
1. Justiças com competência penal
Para estabelecer qual é a justiça competente, segue-se da mais especial para a mais residual. São justiças especiais a militar (da União ou estadual) e a eleitoral. E justiças comuns a federal e a estadual. Havia discussão sobre a competência criminal da justiça do trabalho, mas o STF na ADI 3.684/2020 firmou entendimento de que não possui competência.
1.1 Justiças especiais
• Competência da justiça militar da União
Tem por estrutura no primeiro grau de jurisdição as auditorias, conselhos permanentes de justiça e conselho especial de justiça, e no segundo grau o STM. A justiça militar da União julga militares pertencentes às forças armadas (exército, marinha, aeronáutica), em certas ocasiões pode julgar civis. O art. 124 da CF trata dos crimes militares, que também são definidos nos arts. 9o (tempos de paz) e 10 (tempos de guerra) do CPM.
Os crimes previstos no art. 9o do CPM são definidos de forma diversa na lei processual comum ou não estão nela previstos - praticados por qualquer agente (inc. I) - art. 136 do CPM. Há ainda os crimes previstos no CPM ou na legislação penal comum e praticados por militares em “situação de interesse militar” (inc. II), e crimes contra as instituições militares praticados por militar de reserva, ou reformados, ou por civil (inc. III).
A ideia de exigência de situação de interesse militar é um conceito de difícil determinação e foi construída jurisprudencialmente. A competência para julgar civis está prevista no art. 9, III, do CPM. No mesmo artigo se insere a competência em crimes dolosos contra a vida de civil. Ainda, o art. 124 da CF estabelece um critério objetivo que não exclui os civis da competência.
Importante mencionar que em casos de conexão e continência, os processos devem ser cindidos, nos termos do art. 79 do CPP, e no art. 102 do CPPM) - a justiça militar não julga crimes que não sejam militares. As demais justiças especiais atraem crimes de competência da justiça comum, mas a justiça militar é mais restrita.
• Competência da justiça militar dos estados
1° grau - crimes contra civis são julgados singularmente por juízes de direito do juízo militar.
2° grau - Tribunal de Justiça do Estado ou TJ militar (nos estados em que houver) - RS, SP, MG.
3° grau - STJ (O STM apenas tem competência em relação à justiça militar da União).
A justiça militar nos estados tem competência para julgar apenas militares estaduais (PM, bombeiros, polícia rodoviária estadual), não podendo julgar civis. “Pela prática de crimes militares” - art. 125, §4° (critérios subjetivos e objetivos), e conforme uma construção doutrinária, exige-se uma situação de interesse militar, cujo significado é indeterminado.
A competência em crimes dolosos contra a vida de civis é do tribunal do júri, diferentemente da Justiça Militar da União, que pode excepcionalmente julgar crimes dolosos contra a vida de civis praticados por militares. E em caso de conexão/continência com crimes de competência de outras justiças, os processos devem ser cindidos, pois a justiça militar não julga crime que não seja militar.
• Competência da Justiça Eleitoral
A Justiça Eleitoral julga crimes eleitorais, assim definidos no Código Eleitoral ou em outras leis com a expressa referência de que a competência é da Justiça Eleitoral. Estruturalmente é formada no primeiro grau por juízes eleitorais (juízes de direito temporariamente investidos - 2 anos), no segundo grau os TRE’s, e no terceiro grau o TSE, sendo instâncias que não possuem carreira própria.
Alguns exemplos de crimes eleitorais estão listados nos arts. 299, 301, 312, 323 e 348 do Código Eleitoral. O critério geral para analisar se é crime eleitoral é o seguinte: deve ser contra bem jurídico ligados às eleições (STJ). Em caso de conexão/continência com crimes de competência da justiça comum, compete à Justiça Eleitoral o julgamento de ambos.
Já em caso de conexão/continência com crime de competência do Tribunal do Júri, haverá cisão dos processos, de modo que o crime eleitoral será julgado pela justiça eleitoral e o crime doloso contra a vida será julgado pelo júri, que por ter competência constitucional, prevalecendo sobre o Código Eleitoral e sobre o CPP. No entanto, embora não acolhida pelos tribunais superiores, há posição doutrinária divergente de que a competência deveria ser da Justiça Eleitoral, porém sem formação de Tribunal do Júri.
1.2 Justiças comuns
• Justiça Federal
Tem competência residual em relação às justiças especiais. Sua competência é estabelecida expressa e taxativamente no art. 109 da CF.
Art. 109, IV - crimes políticos, dano à soberania, à democracia e aos interesses da União, trata-se de ressalva de competência.
Súmula 122 do STJ: prevalece em caso de conexão/continência com crime de competência da justiça estadual
Súmula 42 do STJ: sociedades de economia mista não são de competência da Justiça Federal. Mas empresas públicas se incluem no presente inciso, porque seu capital pertence à União.
Súmula 38 do STJ: a justiça federal não julga contravenções, apenas crimes - mesmo se a contravenção for conexa com crime federal, o processo será cindido e o julgamento será no Jecrim estadual, exceto se a contravenção for praticada por autoridade com prerrogativa de foro no TRE.
Art. 109, V - crimes previstos em tratado ou convenção internacional. O inciso estabelece 2 requisitos: existência de tratado/convenção e transnacionalidade do crime (inicia em um país e produz resultados em outro - ex: tráfico de drogas, armas, pessoas). Em crimes cometidos contra a honra na internet, há transnacionalidade mas não há tratado, de modo que não é de competência da JF, diferentemente de publicações racistas, pornografia infantil publicamente na internet - há tratado e transnacionalidade, portanto compete à JF (se em mensagensprivadas - não há transnacionalidade, embora haja tratado.
Art. 109, V-A - direitos humanos (originalmente era de competência estadual, mas por haver grave violação, a competência passou a ser da JF mediante Emenda Constitucional que deslocou a competência.
Art. 109 - VI - crimes contra a organização do trabalho (arts. 197-207 CP) e contra o sistema econômico-financeiro. Compete à JF somente os crimes de ofendem o sistema de preservação dos direitos dos trabalhadores, mas será de competência da justiça estadual se ofender direito individual do trabalhador (interpretação restritiva). Os crimes do art. 149 do CP (redução à condição análoga à de escravo) sempre são de competência da JF. Já para o sistema econômico-financeiro deve haver previsão expressa de que é de competência federal.
Art. 109, VII - habeas corpus em matéria criminal de sua competência ou se o constrangimento provier de autoridade cujos atos estejam sujeitos a outra jurisdição - autoridade federal: polícia federal, receita federal
Art. 109, VIII - mandado de segurança e HC contra ato de autoridade federal.
Art. 109, IX - crimes praticados a bordo de navios/aeronaves que tenham capacidade de transitar fora do território (conceito restritivo jurisprudencial)
Art. 109, X - crimes de ingresso/permanência irregular de estrangeiro no Brasil
Art. 109, XI - disputa sobre direitos indígenas - deve haver uma afetação ampla aos direitos dos indígenas, de modo que será de competência da justiça estadual em crimes em que o indígena seja autor/vítima mas não envolva disputa por direitos indígenas (súmula 140 STJ).
Estruturalmente é uma justiça formada em seu primeiro grau por juízes federais (há tribunal do júri e jecrim na justiça federal, embora não sejam julgadas contravenções), no segundo grau pelos TRF’s (6 regiões) e no terceiro grau pelo STJ.
A competência na execução penal não depende do crime, mas do responsável pela administração da penitenciária, não mantendo relação direta com a justiça que julgou o crime (súmula 192 STJ) - em regra, se a penitenciária é federal, a competência da execução é da JF.
• Justiça estadual
É residual em relação a todas as outras justiças. O primeiro grau é formado por juízes de direito (júri e jecrim - julga contravenções), no segundo grau estão os tribunais de justiça e no terceiro grau o STJ.
Quanto à competência em razão da matéria, definida a justiça competente, a matéria por vezes influencia a competência. Competirá ao Tribunal do Júri os crimes de homicídio doloso, instigação ou auxílio ao suicídio, infanticídio e aborto, e ao Jecrim os crimes de menor potencial ofensivo (crimes com pena máxima de até 2 anos + contravenção).
Competência objetiva por prerrogativa de função: diz respeito à qualidade da pessoa em razão de foros, sendo que o foro é uma prerrogativa de função, não da pessoa em si, funcionando como uma proteção ao exercício da função. Críticas: violação à igualdade e conduz à impunidade. Todavia, nem sempre é um benefício, em razão da supressão de graus de jurisdição.
Os crimes comuns (infrações penais) se distinguem lateralmente dos crimes de responsabilidade (infrações político-administrativas), de modo que a Constituição estabelece regras distintas para esses crimes, aplicando-se o processo penal de fato aos crimes comuns. A competência originária do STF está disposta no art. 102 da CF, enquanto que a competência originária do STJ está no art. 105 da CF. A competência originária dos tribunais de justiça está no art. 96, de modo que se cometem crimes eleitorais, a competência é do TRE, por uma ressalva expressa. Em caso de crime de competência da JF, a doutrina defende que a competência é do TRF, mas prevalece que mesmo assim é do TJ. A competência originária dos TRF’s está no art. 108, mas se cometem crime eleitoral, competirá ao TRE, e se cometem crime de competência da justiça estadual, a competência é do TRF.
Sobre a situação dos prefeitos, dispõe a súmula 702 do STF que serão julgados pelo TRF se cometerem crime federal e pelo TRE se cometerem crimes eleitorais. Deputados estaduais são julgados pelo TJ em caso de crimes comuns, pelo TRF em caso de crimes federais e pelo TRE em crimes eleitorais. Já sobre vereadores, delegados de polícia e defensores públicos, a competência para julgamento depende da Constituição estadual.
Requisitos para competência por prerrogativa de função (STF): crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas - propter officium. A prerrogativa subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício, mudando-se o entendimento anterior.
Sobre o conflito entre prerrogativa de função e competência do tribunal do júri, têm-se as disposições da súmula vinculante 45 do STF, de modo que se as prerrogativas são estabelecidas na CF, prevalece o foro por prerrogativa, mas se as prerrogativas são estabelecidas exclusivamente nas constituições estaduais, prevalece a competência do júri.
Quando há concurso com pessoa sem prerrogativa, em regra há cisão entre os processos (STF). Havia, no entanto, muita controvérsia, inclusive prevalecia a posição de julgamento conjunto. Excepcionalmente admite-se a atração da competência originária quando se verificar que a separação é apta a causar prejuízo relevante aferível no caso concreto. Crítica: não há critério objetivo quanto ao prejuízo, o que permite casuísmo pelo STF, mas havendo competências distintas fixadas na CF, a separação é obrigatória.
2. Foro competente
Não havendo prerrogativa de função após a definição da justiça competente, é preciso fixar o foro competente, o lugar em que será julgado o crime (comarca, subseção) - competência territorial (art. 70 CPP), que se rege pela teoria do resultado, e tem por justificativa a produção da prova e a prevenção geral. É importante não confundir tal artigo com o art. 6° do código penal, que trata da jurisdição penal, pautada na teoria da ubiquidade e estabelece um critério expansivo. Já o art. 70 do CPP trata da competência dentro do território, sob o viés da teoria do resultado, em um critério mais restrito. São, portanto, dispositivos que estabelecem critérios distintos.
O local do crime é o local do resultado (se consumado o crime) ou do local do último ato de execução (se tentado). Os parágrafos do art. 70 estabelecem regras especiais. No § 1°, tem-se como exemplo a exportação de drogas, cuja competência é da subseção federal de onde houver o envio; no § 2°, um exemplo é a carta com antrax enviada para o Brasil com o fim de matar alguém em Florianópolis, por exemplo (competência da subseção de Florianópolis) - Teoria do resultado projetado - onde o resultado deveria acontecer + Súmula 528 STJ. O § 3° do art. 70 estabelece o critério da prevenção, e o § 4°, por fim, se refere aos crimes de estelionato, e fixa a competência no local do domicílio da vítima (canceladas as súmulas 521 STF e 244 STJ).
O art. 71 também adotou o critério da prevenção para crimes continuados (ficção jurídica em que condutas distintas, praticadas nas mesmas circunstâncias são consideradas um só crime) e permanentes (consumação que se prolonga no tempo). O que significa que a primeira comarca competente tem competência para o restante. Há ainda regras especiais estabelecidas nos arts. 88-90 do CPP. O art. 73 apresenta exceções à regra do art. 70 e traz disposições sobre a ação penal exclusivamente privada, não se aplicando à ação privada subsidiária, de modo que cabe questionamento quanto à possível violação do princípio do juiz natural.
A teoria do resultado pode ser vista quando a conduta ocorre em um local, e sua consumação em outro, podendo-se considerar o local em que o resultado se projetou, se mais adequado à produção da prova (construção doutrinária e jurisprudencial) - STJ 169.792/2020. A crítica que se lança contra tal teoria é que ela contraria o critério do resultado estabelecido na lei (art. 70). O foro supletivo/subsidiário está previsto no art. 72 do CPP, que estabelece as regras para o caso de se desconhecer o local da infração.
Quanto à definição de juízo/vara, estabelecido o foro competente, é possível que nele haja mais de uma vara/juízo - necessário estabelecer qual deles é o competente. Para tanto, tem-se 3 critérios:
• Distribuição - normalmente realizado de modo aleatório por programas de computador (art. 75)
• Juízo ou vara especializada - normalmente há em comarcas com mais de uma vara ou juízo, algumas especializadas em certas matérias + Súmula 206 STJ
• Prevenção - juízo ao qual o processo foi previamente distribuído - art. 83 CPP - ato em qualquer momento + ato deve ser decisório.
Não fixam competência por prevenção os atos do juízo de plantão e a remissão pelo juiz de cópias dos autos ao MP em razão da verificação de crime - art. 40 CPP.
Disciplina: Processo Penal I
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