Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
Segundos no farol e a vida
Gladyston costa

16 de abril de 2020, seis e pouco da manhã, o farol fechado e os carros parados no cruzamento da Avenida Cruzeiro do Sul com a Zaki Narchi, corre acima da avenida a linha do metrô, estende-se entre a zona norte e a zona sul da capital. As altas pilastras que sustentam os trilhos estão decoradas com grafites coloridos de diversas tendências. O canteiro central sob o elevado divide a avenida ao meio, é entremeado por uma extensa ciclovia e há tempos se tornou o abrigo de destelhados.

Ali, indiferente ao movimento dos carros ao redor, pessoas dormindo ao relento debaixo de barracas de lona, trapos e papelão, em meio a baratas e ratos.

Como para todos os mortais desse mundo, o dia também começa para um grupo de sem tetos logo no cruzamento, pelo para brisa do carro dá pra ver um senhor idoso se levantar com dificuldade, ele é assistido por duas moças jovens e uma mulher, ao lado quatro crianças pequenas brincam pulando sobre um colchão velho.

Qual será o café da manhã?

Horas antes, na véspera, essa família já estava ali se preparando para o anoitecer. O jantar preparado no chão de cimento em latas velhas carbonizadas. No mesmo horário nas salas de estar, as TVs exibem o telejornal e trazem noticias sobre o crescente número de mortos por uma virose assassina.
A tela de plasma vende mercadorias, enquanto os miseráveis, pretos, piolhentos e desalmados lá fora, são apenas adjetivos pronunciados pela indiferença e miséria social.

Nos diversos canais as noticias são entremeadas por novelas idiotas e por charlatões neopentecostais que cobram o dízimo. Produtos e marcas são oferecidos como sinônimo de felicidade, enquanto a moça com top de grife faz ginástica solitária, é o comportamento da moda.

O mundo vive a quarentena da COVID 19 e impõe restrições, exige isolamento social. Sim, os terraplanistas com uniforme da CBF não acreditam na doença, relincham e apontam raivosos para a distante China.

O farol permanece fechado e do carro dá pra ver as crianças em meio à ruidosa indiferença da avenida, brincam e exalam a mais pura inocência de um serzinho humano. Segundos são horas e estáticos os automóveis decoram a caótica paisagem, enquanto seus ocupantes seguem apartados do mundo lá fora.

Vai longe o pensamento quando se observa a cena sob o metrô, em meio à arquitetura urbana há Marias e josés morando nas ruas. Gente cuja sala de estar é a calçada encardida da avenida. Não há sofá, não há cama, não há fogão e mesa de jantar, nem tão pouco uma porta que se abra para um mundo de esperanças, pois onde vivem não há porta.

Não é preciso muito para perceber que há algo de muito errado com este mundo, o mundo maravilhoso das novelas e das promessas dos falsos profetas não existe de fato, é apenas uma mentira e a grande massa de miseráveis segue sobrevivendo de migalhas.

A lógica por traz da matemática é a de que para que alguns poucos vivam de forma abastada no topo da pirâmide econômica, é necessário que o sistema político sustente a lógica da horizontalidade social, se não é assim, então como migrar do leito sob o viaduto para o quarto de luxo ilustrado na novela das oito?

É crescente a miséria e está esta estampada nas ruas, de um lado a especulação imobiliária e do outro um mar de gente sem teto.

O semáforo abre, os carros seguem, e pelo retrovisor as crianças e sua família vão ficando para traz, diluem-se em meio aos trapos. Com a distância cresce um misto de desesperança e indignação. Fica a certeza de que para que haja um mundo mais justo e harmonioso, é necessário desconstruir o atual.
Gladyston Costa


Biografia:
-
Número de vezes que este texto foi lido: 52908


Outros títulos do mesmo autor

Crônicas Nós Gladyston costa
Poesias Solstício Gladyston costa
Poesias Taxonomia do choro Gladyston costa
Poesias Mormente Gladyston costa
Poesias Propriedade do mindinho Gladyston costa
Poesias Bicho de goiba Gladyston costa
Poesias Corre sapato Gladyston costa
Crônicas Nas asas da monarca Gladyston costa
Poesias Voo de palavras Gladyston costa
Poesias Lua e cidadeII "Lua de Sangue" Gladyston costa

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última

Publicações de número 31 até 40 de um total de 48.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
FLORES E ESPINHOS - Tércio Sthal 53811 Visitas
Viver! - Machado de Assis 53809 Visitas
O Movimento - Marco Mendes 53809 Visitas
eu sei quem sou - 53797 Visitas
O pseudodemocrático prêmio literário Portugal Telecom - R.Roldan-Roldan 53794 Visitas
Escuridão - Anitteli Poestista 53790 Visitas
Vivo com.. - 53776 Visitas
Mulher de Amor - José Ernesto Kappel 53772 Visitas
viramundo vai a frança - 53760 Visitas
OS ANIMAIS E A SABEDORIA POPULAR - Orlando Batista dos Santos 53754 Visitas

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última