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CARTAS DO ZÉ
Voltando para a Luz
Mario Carvalho

Resumo:
“Certa vez conheci um garotinho que adorava ouvir estórias. Sempre que ele me via em silêncio, ia se chegando, sentava do meu lado, puxava um assunto qual-quer e tascava o pedido: — Me conta uma estória! E pedia com tanto encanto, seus pequenos olhos negros brilhavam tão intensamente, que seria impossível deixar de atendê-lo." É assim que começa um dos primeiros textos deste pequeno livro. Minha expectativa é poder aqui tratar de assuntos muito mais relevantes que os referentes à mesmice cotidiana, à luta pela sobrevivência e ainda sobre desejos a serem realizados ou não satisfeitos. Não, viver é mais do que isto. Do fundo de mim mesmo vem uma imensa certeza de que cada um de nós nasceu para algo nobre e único. Que o objetivo inicial de cada um bem poderia ser buscar tomar consciência de qual é esta meta e, posteriormente, dedicar toda a existência a realizá-la. É neste espírito que entrego ao leitor um dos textos do livro “CARTAS DO ZÉ”.

O TEMPLO

Eu sou um homem velho, um antigo pescador e vivo sozinho num casebre na beira da praia.
Certa vez conheci um garotinho que adorava ouvir estórias. Sempre que ele me via em silêncio, ia se chegando, sentava do meu lado, puxava um assunto qualquer e tascava o pedido: — Me conta uma estória! E pedia com tanto encanto, seus pequenos olhos negros brilhavam tão intensamente, que seria impossível deixar de atendê-lo.
A princípio eu buscava lá no fundo do baú da memória velhas estórias que tinha ouvido no decorrer da vida. E, atento, o pequeno garoto ouvia cada palavra como que querendo apreender todas as imagens que seguramente se formavam dentro de sua cabeça miúda.
No entanto, depois de algum tempo senti, pelos comentários que fazia, que meu espectador esperava algo mais. Alguma coisa me dizia que aquela alma buscava ouvir qualquer coisa diferente dos assuntos de sempre. Era como se me dissesse:
“— Olha, gosto de ouvi-lo contar suas estórias, mas preciso de certas indicações que me levem a mundos distantes e verdadeiros. Mundos que sei existirem mas que no entanto não sei como alcançá-los.
Sentindo isto, e principalmente por seguir uma forte intuição, resolvi ler para ele algumas cartas de um amigo muito especial que periodicamente me escrevia.
Foi assim que certa manhã de primavera, enquanto eu lia um livro na varanda, o meu pequeno amigo chegou e eu disse a ele:
— Tenho estórias novas para você. São cartas de um amigo de muito tempo, que eu não sei por onde anda. Só sei que ele é como você e por isso vou lê-las. Deixe-me dizer que até agora ninguém sabia da existência dessas cartas porque de alguma maneira elas foram escritas para alguém assim como você, que busca algo mais da vida. Gente assim é muito rara mas quando aparece sempre tem um bom propósito e merece todo apoio.
Quanto ao meu amigo, eu o chamo de Zé. Não sei o nome dele, nunca perguntei e ele também nunca me disse. Quando ele apareceu era uma tarde de primavera. Parece que as melhores coisas da vida acontecem na primavera! Caminhava a passo lento, no entanto firme, e seguia em direção à praia.
Chamou-me a atenção porque chovia forte e ele parecia não se importar pois continuava a caminhar bem devagar.
Era um rapaz maduro, bonito, suave, de cabelos longos e fala mansa. Tinha uma presença marcante mas seus olhos tinham aquela expressão de quem está sempre esperando saber algo inédito.
— Hei moço, chamei, venha abrigar-se ou então vai ficar encharcado.
Calmamente ele chegou, sentou-se a meu lado, pousou a sacola no chão e agradeceu-me. Puxei um assunto qualquer e suavemente ele falou:
— Que bom que deu tempo de encontrá-lo. Está pronto?
— Para quê? perguntei sem obter resposta.
— Finalmente estou voltando.
— Para onde?
— Para casa, de onde nunca deveria ter saído. Todos sempre falaram da necessidade do regresso e de como seria o encontro. Mas do sofrimento e dos perigos que existem no caminho, disto ninguém falou. Por favor, faça isto.
— Porque você mesmo não diz? Eu não sei do que você está falando.
— Saberá.
Ficou algum tempo em silêncio olhando para o vazio e depois continuou:
— Estou muito atrasado e a porta pode fechar-se a qualquer momento.
— Que porta? perguntei. Ele apenas sorriu.
Aquele sorriso era muito estranho e me deixou extremamente curioso, por isso insisti:
— O que atrasou você? E para onde vai?
Sem me responder, ele levantou-se, pegou sua sacola e olhando bem nos meus olhos, falou:
— Agora preciso ir. Vou te mandar algumas cartas e peço por favor que faça o que te pedi. Para saber como e quando fazer alguma coisa, não se aflija; deixe apenas que a natureza siga seu curso. Esteja em paz.
Ainda chovia quando ele se foi. Nunca mais o vi, mas estranhamente ele está sempre aqui. Como agora.
Algum tempo depois começaram a chegar as cartas e eu fui guardando-as.
— E o que ele diz nessas cartas? perguntou o garoto.
— Ele descreve várias situações mas sempre sobre o mesmo assunto, respondi.
— Sobre o que? insistiu o garoto
— Vou ler uma delas para você, encerrei.
Os pequenos olhos negros brilharam mais intensamente e rapidamente o garoto se acomodou melhor junto a uma das pilastras da varanda.
Achei graça de sua ansiedade e abri a primeira carta. Ela dizia:

Caro amigo,

Recentemente num pequeno lugar a beira-mar recolhi-me para um repouso. Lembro-me que era uma tarde fresca e o aposento que eu ocupava estava com uma temperatura muito agradável.
Deitei-me e depois de alguns instantes, já com os olhos cerrados, senti uma súbita elevação da temperatura no ambiente. Abri os olhos e vi uma claridade que tornava tudo em volta estranhamente iluminado. Percebi então nos pés da cama que eu ocupava uma presença, e antes de ser possível qualquer reação de minha parte, aquela pessoa falou:
— Não tenha medo; não lhe farei nenhum mal.
De alguma forma eu sabia que aquele ser falava a verdade pois sentia em sua voz uma grande bondade.
Levantei-me, e quando ia perguntar quem era ele, como entrou ali, o que queria, ele começou a falar.
— Desejo-lhe aquela paz! Vim, atendendo determinações superiores, para conduzi-lo à presença de alguém muito importante e que quer vê-lo. Está pronto?
— Não sei, respondi. Olha, eu estou muito confuso com tudo isso. O que está acontecendo? Quem é esta pessoa que quer me ver? Quem é você? E além disso preciso arrumar-me melhor.
Calmamente aquele ser de beleza magnífica do qual não se pode dizer se era homem, mulher ou anjo, abriu um largo sorriso e demonstrando extrema compreensão disse-me suavemente.
— Amigo, e chamo-o assim pois o somos de há muito tempo, não se aflija; está tudo bem. Não é preciso tanta reserva. Observe bem o seu coração, veja como ele está calmo. Interiormente você me reconhece e sabe perfeitamente que comigo estará seguro.
“Quem me enviou previu esta sua reação e pediu-me para dizer-lhe que neste instante algumas de suas preces estão sendo atendidas. Portanto, abandone esse comportamento humano comum e venha comigo. Tenho certeza que nossa viagem será muito agradável e que você não irá se arrepender.”
Disse e foi saindo. Não sei bem porque eu confiava naquele ser e resolvi segui-lo.
Já na rua caminhamos em direção à praia e, pisando na areia branca e fofa, percebi em mim uma sensação muito agradável de paz e felicidade. Lembro-me de ter pensado em quanto tempo fazia que eu não me sentia tão bem. Caminhávamos em silêncio mas tranquilos; sentia que meu companheiro também estava feliz e assim estava bom.
O cenário e o terreno foram mudando e daí a instantes percorríamos uma estrada estreita, florida e um tanto íngreme. Caminhamos por ela por um tempo que, para a minha percepção, pareceu breve até que em determinado momento a estrada fazia uma curva suave para a esquerda e lá, bem diante de meus olhos, surgiu a mais bela construção que já tinha visto na vida.
Era uma belíssima catedral no estilo gótico, de cor azulada bem suave, com vitrais coloridos em toda a sua volta; e sustentando a parte frontal daquele monumento haviam duas imensas colunas de puro mármore que ladeavam uma escadaria primorosamente trabalhada.
Fiquei ali na frente parado, de boca aberta não acreditando que no mundo ainda pudesse haver espaço para tanta beleza e majestade. Contemplava extasiado toda aquela magnificência quando meu amigo, já no alto da escadaria, me chamou.
Subi degrau por degrau, bem devagar, vivenciando docemente aquele momento. Já no alto da escadaria percebi que haviam, postados diante de cada uma das enormes pilastras, dois seres de expressão serena mas muito firme, deixando claro no meu íntimo que ali havia vigilância constante.
Dirigi-me ao interior da catedral, onde já se encontrava meu guia, percebendo um ligeiro cumprimento por parte daqueles dois seres quando passei por eles.
Entrei, e lá dentro meu deslumbramento aumentou. Havia, logo depois da enorme porta de madeira nobre, um pequeno átrio com algumas mesas e cadeiras que eu não sei a que se destinavam. Na parte mais interna dispunham-se várias carreiras de bancos, todos voltados para o altar. Este, situado alguns degraus acima do chão da nave central, possuía uma imensa mesa coberta com uma toalha muito alva; e atrás da mesa, dispostos de forma harmoniosa sobre o que me pareceu serem armários de madeira, encontravam-se diversos objetos, os quais imaginei serem usados em atos devocionais.
Sentia-me tão completamente feliz, tranqüilo, seguro e em paz naquele lugar repleto de beleza e com uma atmosfera religiosa totalmente nova para mim, que não percebi antes, no alto à minha esquerda, o que me pareceu ser uma imensa poltrona parecida com um trono e na qual encontrava-se uma pessoa ricamente vestida, mas que eu não conseguia ver o rosto.
Suavemente ele chegou mais perto e sua presença causou em mim uma forte emoção que não consigo explicar. Neste instante aquele que me guiou até esse lugar já se encontrava a meu lado postando-se de tal forma como a querer transmitir-me maior paz e mais segurança.
Sinto dentro de meu coração que aquele ser era alguém de grande poder e enorme sabedoria e que ele disse-me coisas de suma importância. No entanto, por mais que me esforce, não consigo lembrar-me mentalmente de nada do que ele disse ou fez, e muito menos do que aconteceu depois disso.
Quando dei por mim novamente estava sentado no quarto. Levantei, tomei um pouco de água e fiquei lembrando de tudo o que tinha visto. Então, de bem fundo em mim, veio uma enorme certeza de que tudo o que eu havia vivido era verdadeiro; e que, a depender de como me conduzisse na vida, eu poderia ir sentindo aos poucos os reflexos de uma enorme possibilidade que se abriu para mim. Essa certeza encheu-me de uma grande alegria.
Lembro-me que perguntei mentalmente como poderia voltar àquela catedral e ouvi então dentro de minha cabeça a seguinte recomendação: “Mantenha-se fiel à imagem que sempre te surge na tela mental; vá, dia-a-dia, esvaziando sua sacola; devolva ao mundo tudo de bom que ele amorosamente te entregou; conserve tua ves-te tão clara como a luz da vida; e, principalmente, não desvie nenhum ser de seu caminho. Viva assim e brevemente estará novamente no templo.”
Neste instante o vento agitou as cortinas na janela e eu entendi que era hora de viajar.


Biografia:
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Artigos BUSCANDO SENTIDO Mario Carvalho
Artigos APOLOGIA A HEDONÊ Mario Carvalho
Contos OLHOS FRIOS Mario Carvalho
Contos CARTAS DO ZÉ Mario Carvalho


Publicações de número 1 até 4 de um total de 4.


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