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Lucrécia Bórgia
(ou pequeno poema sobre as desculpas para não amar)
Cleyton Boson

As más línguas das boas gentes espalham,
pelas ruas e pelo vento, que misturado à sua saliva
existe arsênico.
Espalham também que, no dia em que ela nasceu,
seu pai, Alexandre VI, a prometeu a Nosferatu em troca de poder supremo.
Porém, quando os hormônios de fêmea humana redesenharam o corpo dela,
ele gritou duas maldições: uma contra si próprio, por a ter prometido ao Príncipe das Trevas e; outra contra Deus, por ela ter nascido sua filha.
Não satisfeita em seduzir o próprio pai, continuam as más línguas,
fez cair de amores seus irmãos. Tornou-se, assim, filha, esposa e nora do Papa.
O veneno dos Bórgia: assim você me foi apresentada e, por isso,
tive medo de mirar seus olhos quando nos conhecemos.
Como Ulisses, antes de ouvir sua voz, me agarrei com força em algum ponto bem firme no solo, porque tinha medo que me arrastasse para o fundo do mar,
ou roubasse minha alma e a trancafiasse nalgum sótão escuro.
Desta maneira, cego e surdo, pude enfrentar-lhe
e fiquei orgulhoso de minha prudência,
de minha capacidade de calcular os riscos e evitá-los.
Mas ontem, descuidado, vi você descendo as escadas da estação Barra Funda.
Os cabelos presos deixavam seus olhos à solta
e eles fitavam o mundo como uma canção ainda não decorada.
Um pouco abaixo, sua boca em arco ensaiava um bico
e prometia um sorriso e, nele, a imortalidade.
Parado ao pé da escada, acompanhei suas pernas até a entrada do trem
e fiquei olhando sua nuca através do vidro da porta fechada.
No outro trem, espremido entre pessoas sem rosto,
percebi que a prudência está há um passo da covardia.
Percebi, também, que, se é a morte o que me espera no seu corpo,
não há nada no mundo que eu queira mais do que morrer.


Biografia:
Nasci numa cidade grande. Goiânia, em 1974, já contava com cerca de 800 mil habitantes e polarizava outros 600 mil moradores e trabalhadores das cidades vizinhas. O bairro onde eu cresci ficava na periferia da cidade e eram necessários dois ônibus para almoçar com minha avó, aos domingos. Eu ficava impressionado com a capacidade de meu pai de não se perder naquele emaranhado de ruas e prédios e acreditava que jamais iria conseguir me guiar sozinho naquele espaço. Os pais de meus pais eram oriundos do campo e haviam migrado para Goiânia na década de 60, com a finalidade fazer fortuna. A construção civil lhes havia dado emprego, luz elétrica, água encanada e meus pais puderam freqüentar a escola. Contudo, tanto meus avós maternos quanto os paternos, bem como seus irmãos, eram saudosos dos tempos da roça: lá, pensavam, havia fartura de alimentos, as pessoas eram mais unidas, não vivíamos trancafiados em nossas próprias casas. Prometiam a si mesmos, e proclamavam aos quatro ventos, que um dia voltariam a viver no campo, trazendo assim sua felicidade de volta. Nunca cumpriram a promessa, nem quando possibilidades concretas se apresentavam diante de seus olhos. Aos 14 anos fui para Brasília, uma cidade que me espantava mais que Goiânia por ser incrivelmente veloz, populosa e solitária. Goiânia passou a representar meu paraíso perdido: um local em que os vizinhos se conhecem pelo nome e se ajudam mutuamente; joga-se bola na rua até altas horas da noite; a vizinhança se compromete com a proteção das crianças, independendo se são ou não seus filhos; e o trânsito é menos agressivo. Mas não voltei a morar em Goiânia e minhas visitas se tornam cada vez mais curtas. Os paraísos perdidos e os novos paraísos que produzimos baseados nas representações que temos da modernidade contemporânea (urbana, fragmentada, multifacetada, impessoal, instável) e das comunidades tradicionais (rurais, baseadas em laços de afetividade e solidariedade mútuas, estável, mesmo que estas características estejam em transformação) são a origem das inquietações de meus trabalhos
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