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Brincadeira tem hora
Cláudio Thomás Bornstein


     Faz parte da velhice não ser mais capaz de andar em linha reta. Outro dia, um jovem, que devia vir atrás de mim já há algum tempo, finalmente conseguiu me ultrapassar. E para que ficasse bem explícito o seu descontentamento virou-se e resmungou: “Bebeu?”
     Em função destas e de outras resolvi consultar minha fisioterapeuta. E ela prontamente me recomendou dois exercícios. Um consiste em andar levantando bem os joelhos à altura da cintura e o outro, traçar linha imaginária no chão e andar em cima dela pé ante pé, um exatamente na frente do outro.
     Resolvi praticar os exercícios no supermercado. É que, esperando a minha mulher, meio entediado entre tomates e alfaces, achei que era uma ótima oportunidade de aproveitar o tempo. Um corredor longo e largo, como eu não tenho no meu apartamento e linhas demarcando o piso, tudo convidava à prática. Estava eu nesta atividade, achando até bom o emprego do tempo perdido, quando parou ao meu lado um homem corpulento e forte. Olhou para minha cara, e como eu estava com a vista abaixada, seguiu o meu olhar. Mirava agora os meus pés, me acompanhando, pé ante pé, bem devagarinho.
A brincadeira até que estava engraçada e eu até que estava começando a gostar. Imaginava, pouco a pouco, todo o supermercado, compradores e empregados, me seguindo e eu, que poucas vezes na vida tive condições de ser líder e dar o exemplo, ia ser o guru de um novo movimento, mostrando na prática e não na teoria, no que consiste uma vida regrada e equilibrada, a retidão da trajetória dando testemunho da retidão de caráter, lisura, probidade, equidade e integridade.
     Mas possivelmente o troncudo não pensava da mesma maneira, ou então, a minha prática não era a dele. Aquilo estava indo longe demais, prejudicando a sua reputação e principalmente o seu salário e a sua promoção. Interrompeu o meu sonho de uma forma um tanto abrupta e me perguntou, em tom forçadamente cortês, de forma a deixar bem clara a sua desaprovação: “Se o amigo permite, posso ajudar em alguma coisa?”
     Como eu gosto de teatro eu ia aproveitar a deixa para uma troca de papel. Ao invés de líder e guru eu ia fazer papel de louco e desvairado, falar coisas desencontradas, mencionar uma conspiração da terra contra os céus. Eu estava ali só para aplacar a ira divina, pisando devagarinho, tentando conter a revolta dos de baixo.
     Agora sim eu estava falando a linguagem dele, mas o problema é que ele podia não me entender, ou, até mesmo, entender o contrário. Podia achar que tudo não passava de maluquice, insanidade mental. Tratava-se de um surto, perigoso porque contagiante. Todo mundo com a cabeça a mil, problema em casa, problema no trabalho, grana curta e vinha um maluco destes ostentar a maluquice? E se a onda pegasse e se espraiasse?
O segurança podia chamar a ambulância e como é que eu ia ficar depois de vestir a camisa-de-força? Resolvi terminar a brincadeira, e em tom pausado, didático e absolutamente sóbrio, expliquei para ele, tintim por tintim, todo o sentido do meu procedimento. Pus a culpa toda na medicina, em particular, na minha fisioterapeuta. Eu estava ali seguindo ordens. A minha fisioterapeuta tinha recomendado fazer os exercícios em um corredor longo e largo, com as linhas bem demarcadas e eu estava tão somente seguindo as suas instruções. E para deixar bem claro qual era a minha linha ideológica ainda declarei com o dedo em riste que a obediência vinha em primeiro lugar.
     Imagina se o segurança ia pregar a desobediência civil ou a sublevação contra a autoridade? Mas o mais provável mesmo é que ele estivesse pensando em coisas mais prosaicas. Faltava pouco para a hora do almoço, ou talvez estivesse se lembrando da namorada, ou as duas coisas juntas. Almoçava a namorada, ou convidava a sua namorada para um almoço? De qualquer maneira, deve ter passado pela cabeça dele que ali estava um louco manso, um maluco beleza, destes que têm muitos por aí. Não oferecia maior perigo e o patrão não ia poder dizer nada, pois continuava tudo na maior normalidade, os tomates e alfaces a luzir sua resplandescência artificial, transudando hormônios e defensivos. Se ele se incomodasse com todo tipo de maluco que aparecia por ali, ia ser um problema atrás do outro. Sacudindo os ombros em sinal de conformismo, e abrindo os braços em sinal de concordância, ele se afastou a passos largos. Eu, evidentemente parei com a brincadeira. Brincadeira tem hora e, principalmente, tem lugar.


Biografia:
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