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A arte é sempre perigosa
(Velvet Buzzsaw e o mercado inescrupuloso das artes plásticas)
Roberto Queiroz

Arte e mercado, assim como água e óleo, não deveriam se misturar sob hipótese alguma. Infelizmente, graças a nossa malfadada e gananciosa humanidade esta é uma máxima que se recusa a ser seguida. E por conta disso, volta e meia nos deparamos com deslizes e abusos frequentes cometidos neste setor. O que é uma pena, tanto para fãs de artes plásticas (caso específico deste filme que mexeu profundamente com a minha cabeça), quanto para os artistas, que deveriam pensar mais em produzir um legado cultural significativo.

Com Velvet Buzzsaw o diretor Dan Gilroy se propõe a realizar uma sátira sobre o mundo das artes plásticas e seus caminhos perniciosos. Na verdade, o diretor gosta de mostrar o lado B de segmentos conturbados de nossa sociedade. Ele já havia feito o mesmo quando denunciou os abusos praticados pela imprensa sensacionalista em O Abutre. Porém aqui ele reduz o tom, insere um senso de humor um tanto negro nas entrelinhas do roteiro (que somente os espectadores mais inteligentes e refinados de fato perceberão!) e não aponta seu dedo acusador para uma pessoa em especial.

Aqui, todos têm a sua parcela de culpa no que tange a transformar a arte numa reles mercadoria milionária. Seja o crítico de arte - figura que nos últimos anos ganhou uma conotação exagerada de astro pop - Morf Vanderwalt (Jake Gyllenhaal), sejam os pintores "de vanguarda" Piers (John Malkovich) e Damrish (Daveed Diggs), seja a galerista e cafajeste de carteirinha Rhodora Haze (Rene Russo), dentre tantos outros oportunistas.

Neste mundo cinza e cruel, ávido por dinheiro, todos traem todos, todos vão para cama com todos, todos fazem de tudo para arrancar até o último centavo uns dos outros. E isso é encarado com a maior naturalidade. Sob certo prisma esta atitude é até louvável. Tolo é quem trabalha honestamente nesse meio e visto como "alguém que nunca irá de fato subir na vida". E essa é a única prerrogativa válida dentro do jogo de gato e rato a que se propõem os personagens.

O surgimento de uma vasta obra visionária e perturbadora, produzida por um pintor desconhecido que acaba de aparecer morto no prédio onde mora é o mote necessário para que esses abutres (sim, eles também estão por aqui e não somente produzindo notícias falaciosas) disputem a dedo suas telas. Porém, esse reles resumo não é suficiente para explicar a sanha por poder desses homens e mulheres que se vendem como descobridores de talentos.

Talvez os crimes de cunho sobrenatural que pairam sobre todos aqueles que tentaram transformar a obra vanguardista achada em mero produto ofusquem à primeira vista a intenção dos espectadores de procurarem uma razão para tanto oportunismo e tantos seres humanos obcecados por fama e poder. Contudo, veja a questão da sobrenaturalidade aqui proposta como um grande disfarce ou cortina de fumaça para que não vejamos as reais intenções da película (e do discurso ácido de seu diretor).

Assim como vi em Mera Coincidência, de Barry Levinson, a guerra ser transformada numa grande fábula para atender às necessidades de uma classe política cínica e de moral deturpada, vejo em Velvet Buzzsaw uma forma de seu realizador mostrar que a arte como a conhecemos até então (e tornada magnífica por nomes como Van Gogh, Picasso, Cézanne, Da Vinci, etc) está com os dias contados porque perdeu espaço para um discurso midiático que torna tudo reles, banal, efêmero. E o resultado disso é que a arte pura, fidedigna, voltada ao engrandecimento cultural, dá lugar a uma mentira, a um "Era uma vez.." sem sentido, a um desejo de chocar, aplaudir ou detestar (como se esses fossem os únicos sentimentos possíveis a qualquer pessoa que se deparasse com uma tela).

Entre disputas sexistas, o rancor e a inveja produzidos por artistas que não estão mais no auge de sua capacidade criativa e não admitem serem superados por uma nova voz ou talento e a eterna correria por audiência, exclusividade e originalidade (algo que, honestamente, eu não tenho mais presenciado tanto assim nos últimos anos) há a velha máxima de que o poder não deve ser questionado de forma alguma. A própria galerista Rhodora avisa a seu rival, o crítico, que "a arte sempre foi perigosa" e tal aviso é fundamental para que possamos entender este universo sórdido, baseado única e exclusivamente em números.

Em outras palavras: o que vale é chamar a atenção e produzir cifras exorbitantes. Talento é coisa do passado, de quando a arte estava servida de bons artistas, homens de real visão, dispostos a dedicarem uma vida a seus trabalhos.

As últimas cenas do longametragem parecem deixam claro ao espectador a ideia de que o lugar da arte não é, necessariamente, nas galerias e nas mãos de marchands e críticos inescrupulosos. Pelo contrário... A verdadeira arte acontece em pequenos gestos, está sendo vendida nas ruas a preço de banana e talvez nunca cheguemos a dimensionar o seu real valor monetário. Até porque não acredito no artista quando seu trabalho está relacionado à expressão "eu quero ficar rico e famoso". E provavelmente este é o grande legado proposto por Dan Gilroy com seu filme.

P.S: e teve gente na internet chamando esta película de brega. Ah Esses espectadores de meia tigela que só aplaudem e acham sensacional blockbusters de heróis, zumbis e criaturas fantásticas! Nunca fugirão de suas zonas de conforto, de seus gostos repetitivos e de sua cultura deficitária.


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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