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O seu grito ecoou pela galeria. Um reboliço em suas emoções, aquele comichão..., estava soando frio, era totalmente inexperiente em se relacionar com pessoas. Sua capacidade de sentir o outro e deixar-se sentir estava paralisada e aquele livro estava a despertando.
-Não estou pronta pra isto.
Fechou o livro e saiu a procura de ar, de espaço, aquele banheiro que no inicio parecia enorme, agora a sufocava. Ele estava impregnado pelas emoções de Rodrigo.
“Preciso de um ambiente neutro.”
Saiu correndo pela galeria.
Olhou por todos os lugares, foi até a entrada, tudo estava como antes, luzes acesas, mas...
“Cadê as pessoas?”
A galeria estava fechada. Todos tinham ido embora.
Julia continuou andando sem se preocupar com aquela situação. Estava meio anestesiada.
Sempre pensou que sua personalidade era bege, o perfume suave, a textura a menos contrastante. Mas naquele livro se identificou com uma personalidade forte, um perfume marcante, com um vermelho sensual, uma textura ousada... estava amedrontada, não sabia como lidar com tudo aquilo, parecia outra pessoa.
Tentou focar na galeria, que agora vazia destacava ainda mais os detalhes, pensado um a um para despertar emoções.
Decidiu fazer dali sua casa por uma noite.
Foi até o restaurante, preparou uma comida, comeu e continuou andando. Entrou numa loja de roupas. Se sentiu livre para escolher, desfilar, fazer caras, bocas e poses. Uma Julia destravada bem diferente daquela que ela conhecia.
Escolheu figurinos, usando seus conhecimentos de vendedora de roupas, que aliás nunca aplicava em si mesmo e desfilava usando charme, elegância que ela mesma desconhecia. Era com certeza a primeira vez que ficava mais de um minuto na frente do espelho.
Pra passar o tempo começou a brincar de montar personagens. Descrevia num papel os traços daquela mulher que via no espelho, dava-lhe um nome, e desfilava usando daquela personalidade e suas histórias inventadas.
Vozes começaram a ficar mais altas indicando que pessoas se aproximavam.
“Devo estar sonhando.”
Ela olhou ao redor, estava deitada no meio de papeis, vestida como madame...
“Eu dormi aqui...”
Foi o tempo de juntar os papéis, e se esconder. Os funcionários já estavam chegando.
Esperou um tempo até entrar pessoas na galeria e depois saiu andando como se fosse uma cliente acabando de chegar.
Voltou para pegar suas roupas no provador e devolver as da loja, mas elas não estavam mais lá.
Foi até o banheiro para decidir o que fazer.
E parada diante do espelho, lembrou novamente de Rodrigo, se imaginou sendo observada por ele vestida daquele jeito.
Quando se deu conta já estava com o foco totalmente mudado e vivendo e desfilando aquela personagem pela galeria.
Já sabia que andar ali dentro com as roupas não dava problemas, só não poderia sair. A funcionária explicou quando chegou à galeria que o sensor anti roubo seria desligado automaticamente quando o pagamento fosse realizado num dos terminais pelo próprio cliente. Ou seja, enquanto não pagasse as roupas estaria presa ali, mas livre para viver aquela aventura.
Estava com fome, mas não podia sair gastando porque sabia que seu dinheiro era pouco, até tinha umas economias, mas não que estivesse a altura daquele lugar requintado. Foi até à máquina de café para os clientes, tomou um capuccino e comeu uns biscoitinhos chiques oferecidos pela galeria e continuou caminhando e apresentando a nova pessoa que tomou conta daquele corpo.
A noite continuou ali, tomou banho, jantou, escolheu outro personagem dos muitos que estavam na sua cabeça, tirou fotos, escreveu estória, dormiu, mas com o celular programado para despertar.
E no dia seguinte ela era outra personalidade, com perfil, histórias, fotos... experiências, conhecendo pessoas novas...
E quando terminava o dia novamente preparava todos os traços da pessoa que tomaria conta daquele corpo no dia seguinte.
Nesta rotina passou duas semanas, ela não estava se reconhecendo, aquele lugar despertou uma Julia livre, solta, talentosa, ousada que ela jamais sonhara ser.
E sempre tirava um tempinho para lembrar e sonhar um pouco com Rodrigo,aquele que despertara tantas emoções.
No trabalho disse que precisou viajar as pressas, e mesmo não tendo pessoas para dar satisfação, já estava querendo voltar à sua vida, apesar de estar gostando daquilo tudo.
Pela primeira vez na vida estava saindo da linha, correndo riscos. Sentia um frio na barriga, tanto pelo risco, mas também pela ansiedade de saber quem ela seria no dia seguinte.
Naquele dia ela não estava de nenhum personagem. Era bom voltar a ser Julia. Passou tantos dias incorporando estórias que já estava com saudades dela mesma. Mas, enquanto assumia a vida de outras pessoas acabou criando autonomia pra olhar pra si mesmo.
Tinha criado lá na infância um projeto de vida, o que lhe foi possível, mas ela cresceu e não se reciclou. A vida até que deu oportunidades, mas ela nem olhava, porque estava presa lá atrás.
Todos aqueles personagens, eram possibilidades, ela podia ser o que quisesse, desde que criado a partir de sua história. E mais, tinha descoberto um talento, criar e dar vida a personagens, neles ela colocava toda a sua emoção ao invés de tentar reprimi-la.
Seu próximo e último personagem ali dentro seria Julia, mais numa nova versão, com auto estima, decidida, aberta a possibilidades. Naqueles dias ali, teve a oportunidade de sentir seu coração e descobriu que estava vivo, pulsando, capaz de viver intensamente. A sua vida podia ter sim textura, cor, cheiro e gosto, e não precisava ser nude e ruim, pelo contrário, poderia ser intenso e apaixonante.
Precisou de três dias para organizar todo o seu trabalho, estórias, fotos, figurinos, experiências, os personagens compartilhando suas estórias, que eram muitas,...
Deu um livro.
Criou um perfil online com sua nova versão, divulgou seu trabalho e o colocou para venda online.
Aproveitou seu conhecimento ali dentro e publicou tudo nas redes sociais da galeria, além de mandar por e-mail para os clientes. Disponibilizou uma das estórias gratuitamente e anunciou uma futura tarde de autógrafos. Milhares de clientes. Depois colocou no mural eletrônico e físico da galeria uma divulgação de seu trabalho. Tudo assinado por Andreia Vicentinni.
Seu último personagem enfim estava concluído, naquele ela não podia falhar.
Estava arriscando, quem sabe seu talento não era real, se não desse em nada os frutos ela já estava colhendo, era uma nova mulher capaz, segura e determinada. Iria correr atrás de seus sonhos.
Era sua última noite ali. Tomou banho, jantou, pegou os dois figurinos que havia preparado. Foi até o sistema da loja, pagou as roupas, dividindo no cartão em dez vezes. Agora estava livre para ir onde quisesse.
Foi até a agenda de Andrea Vicentini e agendou um encontro com a autora daquele livro:
Julia Aredes.
Logo que a galeria abriu, foi até um dos funcionários e se apresentou.
- Você é a escritora Júlia Aredes? Mandamos várias mensagens para você. Os nossos telefones não param de tocar, todos querem saber quando será a tarde de autógrafos com você. Seu livro é um sucesso.
Julia sorriu, meio sem entender.
“Tarde de autógrafos?”
“Seu livro é um sucesso?”
Agradeceu, e foi para um canto e entrou no seu e-mail, a caixa de mensagem estava cheia. O seu livro era o mais vendido do momento.
“Usei uma mentirinha, mas eu sou de verdade, as pessoas estão encantadas com minha obra.”
Pensou Julia enquanto olhava desesperada pra multidão que se formava ao seu redor pedindo autógrafos.
A prima, como ela esperava, era antipática e prepotente, mas recebeu Julia muito bem, porque afinal, era a escritora do momento.
Marcaram alguns eventos na galeria, inclusive o lançamento de seu livro físico, mas Julia preferiu restringir a relação a profissional. Talvez um dia resolvesse lhe dizer que era sua prima.
Agora precisava arrumar um hotel pra ir, pelo menos até disfarçar os fotógrafos e poder voltar para o puxadinho, não ia ser fácil acostumar em ser tão conhecida. Mas pra começar, ligou pra Anna e disse baixinho:
-Anna, reserva um quarto num hotel em meu nome, pega um taxi e vem pra cá. Se apresenta como minha assistente, depois te explico tudo. Ah e é muito bom ter você por perto.
Anna sem entender nada fez o que a amiga pediu, entrou na galeria pegou seus pertences e a ajudou chegar até o táxi.
Mas não pode deixar de perguntar entre dentes, enquanto fingia sorrir para a multidão:
- Você disse que é bom me ter por perto? Você tá bem estranha.
Julia sorriu pra si mesmo.
“Fiquei rica e famosa de um dia para o outro e o que a amiga achou mais estranho foi a minha expressão de afeto.”
***
Julia estava tentando descansar um pouco, sua agenda estava lotada e amava tanto o seu trabalho, que aproveitava as horas vagas preparando o próximo livro. A porta se abriu e pela batida na parede só podia ser a espalhafatosa Anna. E antes que pensasse mais alguma coisa o grito ecoou pela casa:
- Julia trouxe uma surpresa pra você.
Levantou, sabia que espaçosa como era Anna, seria perda de tempo tentar explicar que veria a surpresa depois. Saiu do quarto e ...
A surpresa estava ali, lindo, charmoso, olhar provocante...
... o Rodrigo do livro e de seus sonhos...
-Este é meu irmão, está trabalhando na cidade a um mês e só agora nos encontramos.
-Oi, te conheço de algum lugar?
“Dos meus sonhos”
Pensou, enquanto estendia as mãos para cumprimentá-lo. Ele ignorou aquele gesto e aproximou seu corpo dela dando-lhe um beijo na bochecha.
Uma enxurrada de sensações tomou conta de Julia, um odor hipnotizante encheu a sala e ela foi transportada para um ambiente texturizado, onde só existia ela e ele.
Aquela sensação a jogou nos braços de Rodrigo e seus lábios se encontraram num beijo sedoso e intenso.
-Ei, vocês se conhecem?
A voz de Anna interrompeu os seus sonhos. Abriu os olhos e...
Estava ali, corpo colado, respiração ofegante, coração palpitante, recém saídos de uma experiência de tirar o fôlego. Ela e aquele desconhecido.
Ela se afastou dele sem graça.
“Que vergonha!”
-Muito prazer, Rodrigo.
Ela respirou fundo para conter a excitação e pertubação. A Anna tinha um irmão que se chamava Rodrigo.
Ela os olhava perplexa, sem entender nada.
-Eu perdi alguma coisa?
Sorriram, sem falar nada porque na verdade não havia palavras que explicasse tamanha loucura.
Ela já estava ficando experiente em fazer loucuras. Ficou olhando para aquele olhar livre e sorriso encantador. Talvez ele fosse príncipe só a seus olhos, mas se desse certo ou errado, não teria nenhum problema, mas estava decidida a se jogar na vida de cabeça e viver fortes emoções.
Aproveitou a tarde para ler o livro que causou todo aquele reboliço.
“Acho que estou preparada para esta experiência.”
Ela rasgou o pacote, o livro não parecia tão mágico, mas ela se sentou na cama, se preparou e o abriu.
Era um estudo detalhado sobre os cinco sentidos. Julia passou as páginas rapidamente, e nada, nenhuma textura, cheiro, cor,... era um livro quase científico.
“Não é possível!”
Ela ficou em silencio por um longo tempo, tentando encontrar uma explicação para tudo aquilo.
Mas de toda aquela experiência, o saldo certo era, ela tinha muitos potenciais e agora estava decidida a desenvolvê-los. Pegou a jaqueta e fechou a porta atrás de si para encontrar Rodrigo, Anna e seu namorado e viver as sensações de sua primeira balada, primeiro encontro, primeiro namorado... e tantas outras experiências que a tornava viva.
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