Geraldo Vandré entoava os primeiros acordes de sua canção e o Maracanãzinho transformava-se numa só voz . Eram milhares as gargantas reprimidas que emocionadas soltavam seu brado de protesto nos acordes de “Pra não dizer que não falei de flores”. Não demorou muito para que a onda nascida num festival de música alcançasse as ruas do Rio de Janeiro e se cristalizasse nos movimentos de protesto que atingiria seu ponto culminante com a famosa marcha dos cem mil. Pela primeira vez, desde o golpe de 64 que a ditadura era desafiada abertamente por um grande movimento popular contestador. A resposta não demorou muito e lançou o país num dos piores atoleiros de sua história, ao rasgarem o que restava da combalida Constituição imposta no ano anterior. Foi a época da vigência do AI5 que trouxe em seu bojo os anos de chumbo, ou melhor dizendo, os anos das torturas, das prisões clandestinas, das execuções sumárias e outras mazelas próprias de um estado totalitário.
Foi nesse contexto que num certo dia do início da década de 70, cheguei ao Quartel da Polícia do Exército no, Rio de Janeiro, local onde também funcionava uma das dependências do DOI-CODI, o mais temido órgão militar direcionado à repressão. Minha missão de advogado criminalista não me parecia das mais complicadas, pois ali comparecia para conversar com um cliente que se encontrava preso, porém por fatos que não tinham qualquer motivação política. Aguardei numa pequena sala junto à carceragem e enquanto esperava, fiz algumas observações que bem demonstravam o difícil momento em que vivíamos. O militar que me atendeu, um sargento louro de aspecto e nome que demonstrava sua origem germânica, tinha uma fita crepe cobrindo sua identificação. Lembro-me de ter vislumbrado pela janela basculante que dava para um pátio interno, vários presos encapuzados. Chegando o prisioneiro, sentamos num surrado sofá e durante a conversa notei que ele aparentava um certo nervosismo, até que me entregou um pequeno bilhete que escondia em suas vestes. Terminada a entrevista saí e ,já na rua, li o seu conteúdo . Era de um prisioneiro político pedindo que avisasse a sua família que estava preso naquele local e pedia que providenciasse um advogado.
Telefonei para os familiares do tal prisioneiro e no dia seguinte retornei ao referido quartel com a incumbência de tentar avistar-me com o mencionado prisioneiro. Mas dessa vez minha missão já não foi tranqüila. De início a informação que eu obtinha era a de que não havia nenhum preso com o nome que eu declinara. Depois de várias insistências, em que eu exibia uma cópia do bilhete e invocava preceitos legais relativos às prerrogativas do advogado, fui levado à presença de um oficial que quase aos berros proferiu mais ou menos essas palavras: “Este negócio de constituição, de lei, pode até funcionar daquela porta pra fora. Aqui dentro é Exército e se você não sair daqui agora, vai fazer companhia ao seu cliente. E vá se queixar ao Papa.” Saí, mas não fui me queixar ao Papa e sim ao Juízo competente, no caso, a Auditoria do Exército. Não adiantou muito em relação à minha pretensão de avistar-me com o referido prisioneiro, pois o Poder Judiciário, principalmente o militar, muitas vezes, era até conivente com os desmandos que se praticavam naqueles tempos. No entanto, pelo menos, o nome do prisioneiro passou a constar na relação dos que se encontravam naquela dependência militar, o que já significava muito, num tempo de barbárie em que era comum presos desaparecerem ou “suicidarem”.
Apesar das crises, como a que estamos vivenciando no atual momento, é bem melhor viver num estado de direito e poder dizer o que se pensa, como faço agora. A crônica de hoje é “Só para dizer que não falei das flores.”.
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