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O EU-LÍRICO MULTIFACETADO DE BISHOP E NERUDA
Capítulo 1 de dissertação de mestrado
VERA LÍGIA MOJAES MIGLIANO GONZAGA

Resumo:
Segundo a crítica temática de Gastón Bachelard é possível entender que existem diferenças entre os poetas que nascem a partir do elemento fundamental aplicado em cada poema (terra, ar. água ou fogo). Assim embora Bishop e Neruda possuam em seus poemas o mesmo tipo de eu-lírico multifacetado, este se manifesta de maneira diversa na poesia de cada um.

O EU-LÍRICO MULTIFACETADO DE BISHOP E NERUDA

Para a crítica temática um poema não é o produto de um autor, mas sim de um “eu criador” (um ser diverso daquele que é conhecido pela sociedade onde vive o autor). O “eu criador” é desenvolvido no movimento do poema através do qual ele se comunica. Seguindo este princípio da crítica temática, podemos dizer que o “eu criador” (eu-lírico) é uma entidade inventada, criada dentro do poema. Por isso, a crítica temática recusa a concepção clássica do escritor totalmente senhor do seu plano de escritura. Ao analisar um poema, o estudioso que aplica os pressupostos da crítica temática deve lembrar que o poema tem uma função tanto de criação, quanto de desvendamento do “eu” que escreve. Uma das tarefas da crítica temática é tentar captar o eu-lírico em suas múltiplas manifestações – tarefa que assumimos, neste capítulo de nosso estudo.
Na obra de Bishop e de Neruda, ocorre uma grande semelhança entre os dois “eus-líricos”. O eu-lírico da obra de Bishop como também o eu-lírico da obra de Neruda são multifacetados, como veremos. Para mostrá-los existem muitos poemas. No entanto, dois deles possuem em comum o resgate da infância e revelam-se adequados para a análise proposta. São eles os poemas: “In the waiting room” (“Na sala de espera”) de Bishop e “El niño perdido” (“O menino perdido”) de Neruda.
No poema “In the waiting room”, o eu-lírico (com sete anos de idade) acompanha uma tia ao dentista e permanece na sala de espera, enquanto a tia se submete ao tratamento dentário. “Na Sala de Espera”, o eu-lírico se desdobra para realizar duas viagens. A primeira, uma viagem através da leitura da revista National Geographic. A segunda, uma viagem muito mais simbólica, na qual o eu-lírico assume a identidade de sua tia, de todas as pessoas da sala de espera e das gravuras que viu na revista, e, finalmente, reconhece sua individualidade: an Elizabeth. Há uma coincidência entre um núcleo narrativo retomado pela lembrança de um passado e a emoção estética do poeta. Deste modo, embora o texto possua um enredo narrativo (contado de maneira poética), ele é marcado pelo lirismo tanto na forma, quanto no conteúdo. As ações narradas são desenvolvidas, no interior do fenômeno poético, e não na ação concreta de uma história real. Embora o poema apresente uma fusão entre o enredo e o lirismo, é um poema porque não se trata de uma narração de fatos, mas de flagrantes de uma ebulição interior, como veremos.


IN THE WAITING ROOM

In Worcester, Massachusetts,
I went with Aunt Consuelo
to keep her dentist’s appointment
and sat and waited for her
5. in the dentist’s waiting room.
It was winter. It got dark
early. The waiting room
was full of grown-up people
arctics and overcoats,
10. lamps and magazines.
My aunt was inside
what seemed like a long time
and while I waited I read
the National Geographic
15.(I could read) and carefully
studied the photographs:
the inside of a volcano,
black, and full of ashes;
then it was spilling over
20. in rivulets of fire.
Osa and Martin Johnson
dressed in riding breeches,
laced boots, and pith helmets.
A dead man slung on a pole
25. –“Long Pig”, the caption said.
Babies with pointed heads
wound round and round with string;
black, naked women with necks
wound round and round with wire
30. like the necks of light bulbs.
Their breasts were horrifying.
I read it right straight through.
I was too shy to stop.
And then I looked at the cover:
35. the yellow margins, the date.
Suddenly, from inside,
came an oh! of pain
– Aunt Consuelo’s voice –
not very loud or long.
40. I wasn’t at all surprise;
even then I knew she was
a foolish, timid woman.
I might have been embarrassed,
but wasn’t. What took me
45. completely by surprise
was that was me:
my voice, in my mouth.
Without thinking at all
I was my foolish aunt,
50. I – we – were falling, falling,
our eyes glued to the cover
of the National Geographic,
February, 1918.

I said to myself: three days
55. and you’ll be seven years old.
I was saying it to stop
the sensation of falling off
the round, turning world
into cold, blue-black space.
60. But I felt: you are an I
you are an Elizabeth,
you are one of them.
Why should you be one, too?
I scarcely dared to look
65. to see what it was I was.
I gave a sidelong glance
– I couldn’t look any higher –
at shadowy gray knees,
trousers and skirts and boots
70. and different pairs of hands
lying under the lamps.
I knew that nothing stranger
had ever happened, that nothing
stranger could ever happen.
75. Why should I be my aunt,
or me, or anyone?
What similarities –
boots, hands, the family voice
I felt in my throat, or even
80. the National Geographic
and those awful hanging breasts –
held us all together
or made us all just one?
How – I didn’t know any
85. word for it – how “unlikely”…
How had I come to be here,
like them, and overhear
a cry of pain that could have
got loud and worse but hadn’t?

90. The waiting room was bright
and too hot. It was sliding
beneath a big dark wave,
another, and another.

Then I was back in it.
95. The War was on. Outside,
In Worcester, Massachusetts,
were night and slush and cold,
and it was still the fifth     
of February, 1918.     


NA SALA DE ESPERA

Em Worcester, Massachusetts,
fui com tia Consuelo
ao dentista, acompanhá-la,
e fiquei na sala de espera,
sentada, esperando por ela.
Era inverno. Escurecia
bem cedo. A sala de espera
estava cheia de adultos
de galocha e sobretudo,
abajures e revistas.
Minha tia parecia
que nunca mais ia sair,
e enquanto esperava eu lia
a National Geographic
(pois já sabia ler)
e olhava as fotografias:
um vulcão visto por dentro,
negro e cheio de cinzas;
depois ele aparecia
jorrando riachos de fogo.
Osa e Martin Johnson
com trajes de montaria,
com botas e capacetes.
Um homem morto no espeto
– “Antropófagos”, a legenda,
Bebês com cabeças pontudas
com espirais de barbante;
mulheres negra nuas
com espirais no pescoço
tal como se fossem lâmpadas.
Seus peitos eram medonhos.
Li a revista todinha.
sem coragem de parar.
Então olhei para a capa:
a borda amarela, a data.
De repente, lá de dentro
veio um grito, ai!, de dor
– voz da tia Consuelo –
não muito alto, nem prolongado.
Eu não me surpreendi:
já sabia que ela era
uma mulher boba e medrosa.
Não senti vergonha alguma,
embora tivesse motivo.
O que me espantou por completo
foi sentir que era eu:
minha voz, na minha boca.
Sem pensar, eu era agora
a boboca da minha tia,
eu – nós – caíamos, olhando
a capa da National Geographic
de fevereiro de mil
novecentos e dezoito.

Eu pensei: daqui a três dias
você vai fazer sete anos –
pra afastar a sensação
de estar caindo, caindo
do mundo redondo, a rodar
no espaço escuro e gelado.
Mas pensei: você é um eu,
você é uma Elizabeth,
você é uma delas, também.
Mas por quê, por quê? Eu mal
tinha coragem de olhar
para ver o que eu era, mesmo.
Dei uma olhada de esguelha
não dava pra ver mais de cima –
naqueles joelhos cinzentos,
calças e saias e botas
e pares de mão diferentes
pousadas sob os abajures.
Eu sabia: nada tão estranho
jamais acontecera, e nunca
voltaria a acontecer.
Por que eu era minha tia,
ou eu, ou quem quer que fosse?
Que semelhanças – as botas,
as mãos, a voz de família
que eu sentia na garganta,
ou a National Geographic
e os peitos caídos horrendos –
nos mantinham todas juntas
ou nos tornavam uma só?
Que coisa – eu não conhecia
a palavra – mais “improvável”...
Como eu fora parar ali,
como elas, pra escutar
um grito de dor que podia
ter sido maior, mas não foi?

A sala de espera era clara
e quente demais. Deslizava
sob uma onda grande e negra,
e outra, e outra, e mais outra.

E voltei à sala. Era tempo
de guerra. Lá fora, em Worcester,
Massachusetts, estava úmido,
escuro e frio, e ainda era cinco
de fevereiro de mil
novecentos e dezoito.

Elizabeth Bishop

O iceberg imaginário e outros poemas. Trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 263-269.

“In the waiting room” é um poema narrativo (que traz uma lembrança da infância) formado por quatro estrofes: a primeira muito longa de 53 versos, a segunda de 35 versos e duas estrofes curtas, uma com 4 versos e outra com 6 versos. A estrofe mais longa apresenta o relato de um estranho fato ocorrido com o eu-lírico do poema. A penúltima estrofe marca a localização espacial do eu-lírico, ou seja, a volta do eu-lírico à sala de espera, após ter passado por um momento de devaneio introspectivo. A última estrofe marca a localização temporal do eu-lírico – ainda era dia 5 de fevereiro de 1918.
No poema, o eu-lírico desenvolvido por Bishop revive, intensamente, todas as estranhas sensações que experimentou aos sete anos de idade. Com isso, “In the waiting room” possui marcas profundas de narratividade.
De uma maneira um tanto arbitrária (“In the waiting room” é um poema e não uma narrativa!) podemos dividir o poema em segmentos narrativos:
•     A introdutória localização temporal e espacial – In Worcester, Massachusetts, / I went with Aunt Consuelo / to keep her dentist’s appointment /and sat and waited for her / in the dentist’s waiting room. / It was winter. It got dark / early. The waiting room / was full of grown-up people / arctics and overcoats, /lamps and magazines (versos 1-9).
•     A etapa de desenvolvimento das ações narrativas – mais ou menos entre os versos 11 e 35.
•     A complicação – provavelmente representada nestes versos: Suddenly, from inside, / came an oh! of pain /– Aunt Consuelo’s voice –/ not very loud or long.
•     O segmento que poderíamos classificar como sendo o anti-clímax => I wasn’t at all surprise / even then I knew she was / a foolish, timid woman. / I might have been embarrassed, / but wasn’t. What took me / completely by surprise / was that was me: / my voice, in my mouth (versos 40-44).
•     O clímax, que talvez estivesse representado nos versos – Without thinking at all / I was my foolish aunt, / I – we – were falling, falling, / our eyes glued to the cover / of the National Geographic, /February, 1918 (versos 48-53).
•     A volta ao equilíbrio inicial – Then I was back in it. / The War was on. Outside, / In Worcester, Massachusetts, / were night and slush and cold, / and it was still the fifth / of February, 1918 (versos 94-99).
Há, inclusive, o momento de revelação (epifania) do poema narrativo de Bishop, marcado pelos versos que demonstram que o eu-lírico encontrou sua própria identidade: I said to myself: three days / and you’ll be seven years old. / I was saying it to stop / the sensation of falling off / the round, turning world / into cold, blue-black space. /But I felt: you are an I / you are an Elizabeth, / you are one of them./ Why should you be one, too? (versos 54-63).
Tantas marcas de narratividade no texto de Bishop poderiam levar à hipótese de que “In the waiting room” é apenas uma prosa escrita em forma de versos (uma prosa-poética). Todavia é importante lembrar que a distinção entre poesia e prosa ultrapassa o aspecto formal. O que torna “In the waiting room” um poema, e não apenas uma prosa-poética, é o fato de que o texto é resultado da expressão de um “eu”. Além disso, este “eu” se expressa artisticamente, por intermédio de palavras polivalentes. Assim, apesar do clima narrativo de “In the waiting room”, o nexo ordenador dos versos é de natureza psicológica, de natureza subjetiva e manifesta a expressão de um “eu”, o que destitui a cena descrita no interior dos versos de uma ordem histórica ou lógica. Como disse T. S. Eliot (1972, p.109): um verso
“[...] não será sempre poesia. Só será poesia quando a situação dramática já tenha chegado a um ponto de intensidade tal que a poesia se torne a fala natural, porque nesse momento a poesia é a única linguagem em que as emoções podem totalmente ser expressas”.
Ao examinarmos mais atentamente o poema, podemos dizer que, na primeira estrofe, o lirismo se funde e confunde com uma estrutura narrativa e produz uma invariável distorção que enfatiza o clima de fantástico e de mistério do poema narrativo, no qual um “eu” se expressa. Deste modo, as duas estrofes finais que focalizam espaço e tempo (focalização dispensável para um poema), se tornam necessárias para dar um sentido de verossimilhança aos fatos fantásticos e misteriosos narrados anteriormente.
É importante enfatizar que esta verossimilhança, no poema, também é arbitrária (é uma escolha de seu autor).Em primeira instância, um poema, enquanto obra de arte, enquanto criação estética, assim como um quadro ou ainda uma escultura, não possui nenhum compromisso, nem com a verossimilhança, nem com a verdade, muito menos, com a realidade.    
A proposta de formulação de um enredo dentro do poema (o que subentende uma unidade semântica) e a escolha de utilizar versos livres levam ao emprego de muitos versos corridos ou enjambements recurso usado como apoio rítmico eficaz para criar uma unidade melódico-emotiva semântica mais extensa, pois o enjambement, alongando o verso em que ocorre, cria uma unidade com o verso seguinte. Em contrapartida, o uso de enjambements e de versos livres favorecem o fluxo interior do eu-lírico e, portanto, promovem o uso de amplos recursos expressivos. Um dos recursos expressivos utilizados em “In the waiting room” consiste em oferecer ao leitor imagens em séries visualizadas pelo eu-lírico na revista, em vez de limitar-se apenas a narração das ações e acontecimentos.
Apesar de existir a tendência de se interpretar “In the waiting room” como um poema que manifesta a descoberta da sexualidade da autora, melhor do que fazer esta ponte entre a vida real de Bishop e o eu-lírico do poema, é considerar a busca da própria identidade deste eu-lírico que nos fala: Why should I be my aunt, / or me, or anyone? (versos 75-76).
Notamos que esta busca de identidade ocorre através de uma espécie de devaneio, no qual o eu-lírico se sente caindo e rodando: I – we – were falling, falling, / our eyes glued to the cover / of the National Geographic. Se levarmos em consideração que a escolha sonora das palavras é fundamental para um poema, ou em outras palavras, que no interior de um poema os sons significam, podemos apreciar quão significativa é a escolha das palavras que iniciam esse segmento, no qual o eu-lírico principia a sua queda. O aumento do número de letras mostra a precipitação e a aceleração do ser que cai. O verso 50 (I – we – were falling, falling) é constituído por I (uma palavra de uma sílaba e uma letra), we (uma palavra de uma sílaba de duas letras), were (uma palavra de duas sílabas e quatro letras) falling, seguida da repetição – falling (uma palavra de duas sílabas e sete letras). Isso, sem levar em conta que o verbo no gerúndio e o uso de nasais, por si só, já marcam o alongamento da queda e da rotação de quem cai.
O deslocamento, em espiral, vivenciado pelo eu-lírico, materializa um provável movimento de rodamoinho de águas expresso nos versos 90-93 The waiting room was bright /and too hot. It was sliding /beneath a big dark wave, / another, and another.
Talvez as águas estivessem em forma de rodamoinho espiral, repetindo as fotos da revista: Babies with pointed heads /wound round and round with string; / black, naked women with necks /wound round and round with wire / like the necks of light bulbs (versos 25-30).
Nesses versos, observamos a materialização sonora do movimento circular em espiral, dada pela escolha das palavras de sons semelhantes – wound round (paronomásia) e pela anáfora da expressão – wound round and round (verso 27)– retomada no verso 29.   
Esse movimento de ondas (expresso não só através de imagens visuais, mas também através de imagens sonoras) mistura as múltiplas faces do eu-lírico – a sua própria imagem, a voz de sua tia, as fotos que o eu-lírico havia acabado de ver na revista: What similarities – /boots, hands, the family voice /I felt in my throat, or even /the National Geographic / and those awful hanging breasts – /held us all together /or made us all just one? (versos 77-83). Podemos inferir que a espiral delineia um labirinto que expressa o tumulto da mente do eu-lírico. Segundo Bachelard, o labirinto apresenta os “sonhos mais tumultuosos, mais tortuosos, menos tranqüilos, que dialetizam o sonho dos refúgios mais espaçosos. [...] O labirinto repõe o sonhador em movimento” (BACHELARD, 2001, p.11). Entretanto, o refúgio das lembranças da infância expresso em “In the waiting room” recupera o movimento de regressão da mente do eu-lírico que focaliza, no passado, as mais tumultuosas, tortuosas e intranqüilas imagens visuais.
Uma das imagens visuais mais fortes que revelam o eu multifacetado do poema, também nos é dada pela presença de líquido, um líquido de fogo: (I could read) and carefully /studied the photographs: / the inside of a volcano, / black, and full of ashes; / then it was spilling over / in rivulets of fire (versos 15-20). Nesses versos, o eu-lírico apresenta-se como um vulcão pronto a entrar em erupção e revelar suas múltiplas faces, representadas por riachos de fogo.
Por outro lado, a presença da aliteração provocada pela repetição dos sons /s/ (alveolar fricativa surda), /f/ (labiodental fricativa surda) e /r/ (alveolar vibrante sonora) configura o som de um vulcão já em erupção, o que nos leva a crer que o eu-lírico do poema já está passando pelo processo de erupção vulcânica e, por isso, ele faz transbordar de seu interior riachos de fogo que representam seus sentimentos mais profundos.
Para Bachelard, a simples presença de um vulcão na poesia de Bishop revela um eu-lírico com um complexo – o de Empédocles (filósofo grego que se suicidou em 430 a.C., projetando-se na cratera do Etna, e que concebeu uma teoria da formação do universo fundada nos quatro elementos, cujas relações são regidas pelo Amor – Eros – e pelo Ódio – Pólemon). Um complexo configura o desejo mais íntimo do ser que o possui. Segundo Bachelard (1953, p. 41, tradução nossa):
“Empédocles representa o homem íntegro, o herói mítico da antiguidade, sábio e seguro de si mesmo, para quem a morte voluntária é um ato de fé que prova a força de sua sabedoria. A morte nas chamas é a menos solitária das mortes, uma morte cósmica, na qual com o pensador todo um universo se aniquila. A fogueira é uma companheira da evolução”.
Pode-se inferir que o desejo mais íntimo do eu-lírico de “In the waiting room” é ser “seguro de si mesmo e sábio” como Empédocles. O vulcão no texto é um índice da evolução do eu-lírico que se torna apto a descobrir sua própria identidade.
No poema, o eu-lírico não passa pelo processo de morte, como Empédocles, mas pelo processo de evolução.
Por outro lado, a lava do vulcão representa a combinação de dois elementos: a água e o fogo. De acordo com Bachelard (1998, p. 104):
“Quando a imaginação sonha com a união duradoura da água e do fogo, ela forma uma imagem material mista com um poder singular. É a imagem material da umidade quente. Para muitos devaneios cosmogônicos, é a umidade quente que constitui o princípio fundamental. É ela que dará vida à terra inerte e dela fará surgir todas as formas vivas”.
Aliás, a sensação de umidade quente, além da lava vulcânica (rivulets of fire), está expressa no poema, na penúltima estrofe: The waiting room was bright / and too hot. It was sliding / beneath a big dark wave, /another, and another (versos 90-93). E também nos “horríveis peitos caídos”, que materializam a idéia de umidade quente do verso 81: those awful hanging breasts.
As fotos da revista, observadas pelo eu-lírico, revelam as múltiplas facetas negativas do ser humano que o eu-lírico passa a encontrar em si mesmo, pois ele diz para si próprio – you are one of them. Por meio das gravuras, que o eu-lírico estuda cuidadosamente (and carefully / studied the photographs – versos 15-16) é possível perceber um processo metonímico que revela o abstrato (características negativas humanas) através do concreto (a própria gravura):
•     A impotência do homem, que apesar de toda sua ciência não pode controlar a erupção de um vulcão: the inside of a volcano,/ black, and full of ashes;/ then it was spilling over in rivulets of fire (versos 17-20).
•     A dominação exercida pelo homem sobre os animais, através do ato de montar cavalos – versos 21-23: Osa and Martin Johnson / dressed in riding breeches /lanced boots, and pith helmets. (Nota-se o uso de nasais que prolongam a sonoridade, prolongando a duração da cena descrita – uma cena de dominação do homem sobre a natureza animal. Além disso, ocorre a assonância pela repetição de /e/). De acordo com Biedermann, ser cavaleiro (membro de uma classe guerreira e de uma ordem nobre) significava, desde a antiguidade, ter um código de honra especial. Além disso, “a partir de 1186 a ordem dos cavaleiros começou a ser transmitida por herança. A formação dos cavaleiros se iniciava na idade de sete anos” (BIEDERMANN: 1994, p. 78); exatamente a idade que o eu-lírico afirma possuir no poema.
•     A crueldade humana, pois o homem é capaz de matar, colocar em um espeto e comer um outro ser humano: A dead man slung on a pole / –“Long Pig”, the caption said (versos 24-25).
•     A variável noção que o ser humano possui acerca do “belo”, pois embora o eu-lírico acredite ser horrível as mulheres com anéis no pescoço – black, naked women with necks /wound round and round with wire /like the necks of light bulbs / Their breasts were horrifying (versos 28-31) – em determinadas tribos asiáticas e africanas, as mulheres de seios caídos e pescoço alongados (por essa espécie de anéis em espiral)   são   um   padrão   de   beleza   buscado.   
A escolha sonora da aliteração de /k/ (oclusiva velar surda) pode estar ligada à dificuldade que o eu-lírico pensa existir com relação à respiração das mulheres que apresentam esses anéis no pescoço.
Que consolo teria um poeta perante a constatação de que ele também é um ser humano (dominador dos animais, com código de honra, impotente apesar de sua ciência, com variáveis noções acerca do “belo”)? O único consolo do poeta é a sua própria voz. A voz com a qual ele pode denunciar as mazelas e os erros de sua própria sociedade.
Por isso, o nome da tia com a qual o eu-lírico possui a identidade de voz é Consuelo. A origem do nome Consuelo é espanhola e significa “consolo”. A voz do eu-lírico, a voz do poeta, é o seu consolo.
Conforme as notas de Paulo Henriques Brito, tradutor do poema: “o nome verdadeiro da ‘tia Consuelo’ era Florence. Osa e Martim Johnson eram exploradores famosos na época por suas viagens à África, à Nova Guiné e a Bornéu” (BISHOP, 2000, p. 349).
A data, apresentada no poema, 1918 retoma o final da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A guerra é outra atrocidade humana que o eu-lírico rechaçaria, contudo a pequena Elizabeth reinventada no poema não sentia, diretamente, os efeitos da guerra, como mostram os versos: The War was on. Outside, / In Worcester, Massachusetts, / were night and slush and cold, /and it was still the fifth / of February, 1918. A guerra interior que ela trava consigo mesma, na sala de espera do dentista, adquiriu proporções muito maiores do que a guerra “lá fora”. A batalha interior descrita fez com que o eu-lírico sentisse a necessidade de datar o seu momento de retorno à sala de espera, pois ao retornar teve a impressão de que nem era mais o mesmo dia. A intensidade da emoção sentida fez com que o eu-lírico perdesse, momentaneamente, a noção de tempo.
Por outro lado, é interessante notar que “In the waiting room” foi publicado em 1976, no livro Geography III, cinqüenta e oito anos depois da data retomada no poema. Provavelmente, Bishop com sua obsessão pela reescritura, não escreveu este poema no mesmo ano no qual o publicou.
De qualquer forma, “In the waiting room”, certamente, foi baseado em uma lembrança de infância. Os biógrafos de Bishop chamam a atenção para o fato de que, aos sete anos, Bishop, contra sua própria vontade, foi levada de volta a Worcester por seus avós paternos, que pretendiam garantir à neta uma educação melhor do que aquela que podia ser oferecida pelos avós maternos, residentes em Great Village. O deslocamento físico que a pequena Elizabeth realizou, do Canadá para os Estados Unidos, trouxe como conseqüência grandes transformações para a vida de Bishop e para o desenvolvimento de sua identidade. David Thoreen (1999, p. 45) comenta que Worcester era a capital do arame e que a identificação do eu-lírico com as mulheres que usavam os estranhos anéis para alargar o pescoço é o reconhecimento de Bishop de seu próprio status na economia material internacional.
Se levarmos em consideração a vida pessoal de Bishop, podemos dizer que o eu-lírico inventado no poema mantém características pessoais de seu inventor. Mas sabemos que um poema significa muito mais do que um autor pode dar de seu mundo pessoal. Por isso, a influência da vida pessoal é, para nosso estudo, menos relevante do que a influência cultural proveniente das diversas técnicas literárias que os poetas da época de Bishop tinham a seu dispor. Notamos, por exemplo, que “In the waiting room” possui muitas característica da escola literária simbolista.
O simbolismo, escola literária que propunha trabalhar com símbolos (e isso Bishop faz de maneira extenuante em seu poema), surgiu a partir do decadentismo francês. É fundamental ter em mente que trabalhar com símbolos não é privilégio, nem exclusividade, da escola literária simbolista, pois todo texto literário é um conjunto estruturado de orações fixado por símbolos. Entretanto, trabalhar com correspondências simbólicas foi uma das técnicas profundamente desenvolvida a partir do movimento, que por este motivo passou a ser designado “simbolismo”.
O movimento simbolista ocorreu mais ou menos entre 1885 e 1895, na França, e entre 1893 e 1902, no Brasil. O francês, Jean Moreas, apesar de ter assinado o manifesto do simbolismo, acabou se afastando. Stéphane Mallarmé assumiu, então, a liderança do movimento.
Os poetas simbolistas, como os decadentistas, romperam com o parnasianismo. Ao contrário dos poetas parnasianos que buscavam a perfeição na forma poética e tentavam ser objetivos, claros, precisos, técnicos ao fazer seus poemas, os simbolistas buscavam a perfeição no conteúdo, no modo de expressar os sentimentos. Por isso, “In the waiting room” nos parece subjetivo, obscuro, questionável, artificioso, porque aproveita algumas técnicas simbolistas.
O simbolismo aproximava-se do romantismo, mas não se contentava com uma emoção superficial. Podemos dizer que o simbolismo buscava o aprofundamento das emoções, como faz o eu-lírico de “In the waiting room” o qual mergulha em cada emoção sentida ao observar, atentamente, uma a uma, as gravuras da revista. Aliás, a maneira com a qual o eu-lírico nos proporciona o relato da visualização das gravuras, aponta outras três técnicas divulgadas pelo simbolismo: oferecer imagens em séries, partir de percepções exteriores para explicar percepções interiores e promover a mistura entre o concreto e o abstrato. As técnicas simbolistas de escritura de poesia buscavam atingir o íntimo do ser humano e faziam estes sentimentos íntimos irromper, abruptamente, no poema como a erupção do magma de um vulcão.
Resumidamente, podemos dizer que quanto ao contexto histórico, o simbolismo e o decadentismo nasceram como frutos da Segunda Revolução Industrial, que havia gerado um sistema econômico fundamentado nos monopólios, nos trustes e nos cartéis. Na última década do século XIX, a sociedade da época passava por uma profunda intranqüilidade quanto aos rumos da economia, que começava a ficar estagnada, depois de um triunfal progresso. Baseados na teoria marxista surgiram os partidos socialistas, que pregavam o fim do capitalismo, atraindo para as suas organizações o proletariado enfraquecido, depois de um século de industrialização. O materialismo, que havia prometido a felicidade para todos, passou a ser questionado. Desse questionamento, valores artísticos esquecidos durante as correntes literárias – realismo, naturalismo e parnasianismo – foram retomados. Novamente, o misticismo, o sonho, a fé, a religião, passaram a ser valorizados.
Mas naquele momento, esses valores tinham o apoio de uma nova corrente de pensamento – a psicanálise freudiana. Com isso, o misticismo, o sonho, a fé e a religião (valores do romantismo) são aperfeiçoados com a análise do subconsciente e do inconsciente. Aliás, “In the waiting room” recupera imagens oriundas do inconsciente do eu-lírico, pois todo ser humano, inconscientemente, conhece suas características negativas resgatadas no poema (dominação, crueldade, impotência, mutável noção de beleza, a brutalidade da guerra, a suscetibilidade quanto à dor do outro – Suddenly, from inside, /came an oh! of pain – versos 36-37).
Se, por um lado, o eu-lírico em “In the waiting room” tem sua identidade fragmentada revelada no decorrer do poema, porque é um poeta que possui o consolo e o fortalecimento de sua própria voz, por outro lado, o eu-lírico de “El niño perdido” (de Pablo Neruda) constata que perdeu a parte pura de sua identidade (também fragmentada), e se transforma em um ser que se deixa levar através do rio da vida. “El niño perdido” foi publicado, pela primeira vez, no livro Memorial de Isla Negra (1964), quando Neruda tinha 60 anos de idade.


EL NIÑO PERDIDO

1. Lenta infancia de donde
como de un pasto largo
crece el duro pistilo,
la madera del hombre.

5. ¿Quién fui? ¿Qué fui? ¿Qué fuimos?

No hay respuesta. Pasamos.
No fuimos. Éramos. Otros pies,
otras manos, otros ojos.
Todo se fue mudando hoja por hoja
10. en él árbol. Y en ti? Cambió tu piel,
tu pelo, tu memoria. Aquél no fuiste.

Aquél fue un niño que pasó corriendo
detrás de un río, de una bicicleta,
y con el movimiento
15. se fue tu vida con aquel minuto.
La falsa identidad siguió tus pasos.
Día a día las horas se amarraron,
pero tú ya no fuiste, vino el otro,
el otro tú, y el otro hasta que fuiste,
20. hasta que te sacaste
del propio pasajero,
del tren, de los vagones de la vida,
de la substitución, del caminante.
La máscara del niño fue cambiando,
25. adelgazó su condición doliente,
aquietó su cambiante poderío:
el esqueleto se mantuvo firme,
la construcción del hueso se mantuvo,
la sonrisa,
30. el paso, un gesto volador, el eco
de aquel niño desnudo
que salió de un relámpago,
pero fue el crecimiento como un traje!
Era otro el hombre y lo llevó prestado.
35. Así pasó conmigo.

De silvestre
llegué a ciudad, a gas, a rostros crueles
que midieron mi luz y mi estatura,
llegué a mujeres que en mí se buscaron
40. como si a mí se me hubieron perdido,
y así fue sucediendo
el hombre impuro,
hijo del hijo puro,
hasta que nada fue como había sido,
45. y de repente apareció en mi rostro
un rostro de extranjero
y era también yo mismo:
era yo que crecía,
eras tú que crecías,
50. era todo
y cambiamos
y nunca más supimos quiénes éramos,
y a veces recordamos
al que vivió en nosotros
55. y le pedimos algo tal vez que nos recuerde,
que sepa por lo menos que fuimos él, que hablamos
con su lengua,
pero desde las horas consumidas
aquél nos mira y no nos reconoce.     


O MENINO PERDIDO

Lenta infância de onde
como de um pasto comprido
cresce o duro pistilo,
a madeira do homem.

Quem fui? O que fui? O que fomos?

Não há resposta. Passamos.
Não fomos. Éramos. Outros pés,
outras mãos, outros olhos.
Tudo foi mudando, folha por folha
na árvore. E em ti? Mudou a tua pele,
o teu cabelo, a tua memória. Aquele não foste.

Aquele foi um menino que passou correndo
atrás de um rio, de uma bicicleta,
e com o movimento
foi-se a tua vida com aquele minuto.
A falsa identidade seguiu os teus passos.
Dia a dia as horas se amarraram,
mas tu já não foste, veio o outro,
o outro tu, e o outro até que foste,
até que te arrancaste
do próprio passageiro,
do trem, dos vagões da vida,
da substituição, do caminhante.
A máscara do menino foi mudando,
emagreceu a sua condição enfermiça,
aquietou-se o seu volúvel poderio:
o esqueleto se manteve firme,
a constituição do osso se manteve,
o sorriso,
o passo, um gesto voador, o eco
daquele menino nu
que saiu de um relâmpago,
mas foi o crescimento como um traje!
Era outro o homem e o levou emprestado.

Assim aconteceu comigo.

De silvestre
cheguei a cidade, a gás, a rostos cruéis
que mediram a minha luz e a minha estatura,
cheguei a mulheres que em mim se procuraram
como se a mim tivessem perdido,
e assim foi sucedendo
o homem impuro,
filho do filho puro,
até que nada foi como tinha sido,
e de repente apareceu no meu rosto
um rosto de estrangeiro
e era também eu mesmo:
era eu que crescia,
eras tu que crescias,
era tudo
e mudamos
e nunca mais soubemos quem éramos,
e as vezes recordamos
aquele que viveu em nós
e lhe pedimos algo, talvez que se recorde de nós,
que saiba pelo menos que fomos ele, que falamos
com a sua língua,
mas das horas consumidas
aquele nos olha e não nos reconhece.

Pablo Neruda

Antologia Poética. Trad. Eliane Zagury. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, p. 225-227.

Como se pode ver, “El niño perdido”, tanto quanto “In the waiting room”, pode ser considerado um poema com influências simbolistas.O eu-lírico busca a si mesmo, busca o seu “eu-profundo”, escondido nas camadas do inconsciente. É um poema que mostra o aprofundamento das emoções, pois para buscar seu “eu-profundo”, o eu-lírico retrocede até seu período de infância, onde ele próprio se encontraria em estado puro, não contaminado pela sociedade e pela vida.
Nesse poema, o ser infantil buscado pelo eu-lírico é “O menino perdido” dentro de si mesmo. Um ser ingênuo que simboliza a pureza, virtude geralmente perdida pelos adultos. Nesse sentido, podemos dizer que “El niño perdido” mostra um eu-lírico mais romântico, mais saudosista do que o eu-lírico de “In the waiting room”. Quanto à estrutura de “El niño perdido”, há trechos narrativos, mas estes aparecem com menos freqüência do que em “In the waiting room”. A estruturação de “El niño perdido” apresenta seis estrofes, constituídas de versos livres e que também apresentam alguns enjambements, porém estes surgem em menor número do que em “In the waiting room”.
Na primeira estrofe de “El niño perdido” (composta de 4 versos), há uma evocação ao passado da infância e a materialização visual do crescimento de um ser humano realizada através de um processo metafórico-metonímico, pois o homem é uma simples “semente” que cresce em um “pasto comprido” – o mundo: Lenta infancia de donde / como de un pasto largo / crece el duro pistilo, / la madera del hombre (versos 1-4 O som das alveolares sonoras /l/ e /n/ fazem com que a pronúncia das palavras realize uma vibração na parte mais profunda da garganta de quem as profere, como se as palavras saíssem do íntimo do eu-lírico que nos fala.
Em seguida, temos uma proposição isolada, na segunda estrofe, composta de um único verso. Essa proposição é colocada em forma de um questionamento em torno do qual se desenvolve todo o poema – ¿Quién fui? ¿Qué fui? ¿Qué fuimos? A proposição funciona como um mote a ser desenvolvido nas duas estrofes seguintes. É interessante a maneira de colocar estas questões: parece que uma pergunta é reformulação da anterior. Assim, primeiramente, o eu-lírico dá a si mesmo uma marca de humanização, através do uso do pronome “quem”. Em seguida, ele próprio se auto-coisifica, quando pergunta “que fui?”. E, finalmente, ele se auto-pluraliza ao questionar: “quem fomos?”. As perguntas também formam uma melopéia, pois repetem e alternam o som de /k/ (velar oclusiva surda) e /f/ (labiodental fricativa surda) o que faz parecer que ao formular, oralmente, suas questões o eu-lírico manifesta uma espécie de bloqueio, pois as consoantes surdas não produzem vibração das cordas vocais.
A seguir, ocorrem duas estrofes que tentam responder à questão proposta na estrofe anterior. É como se a terceira e a quarta estrofes, repetindo a estrutura de uma trova, funcionassem como voltas, desenvolvendo o mote, proposto na segunda estrofe. Depois ocorre uma nova proposição isolada, novo mote – Así pasó conmigo (verso 35, quinta estrofe) e a última estrofe (versos 36-59) que desenvolve a afirmação da estrofe anterior (verso 35). Só que a trova, neste contexto, não subentende um segundo trovador que não seja o próprio eu-lírico que se desdobra em um outro “eu”.
A terceira estrofe do poema é composta por 6 versos que, de maneira direta, negam a existência de uma solução para a questão proposta (versos 6-11):

No hay respuesta. Pasamos.
No fuimos. Éramos. Otros pies,
otras manos, otros ojos.
Todo se fue mudando hoja por hoja
10. en él árbol. Y en ti? Cambió tu piel,
    tu pelo, tu memoria. Aquél no fuiste.     


Não há resposta. Passamos.
Não fomos. Éramos. Outros pés,
outras mãos, outros olhos.
Tudo foi mudando, folha por folha
na árvore. E em ti? Mudou a tua pele,
o teu cabelo, a tua memória. Aquele não foste.

Essa estrofe iniciada com sons sibilantes (como se o eu-lírico sussurrasse um segredo), termina com oclusivas – /t/, /p/, /b/ (como se o eu-lírico martelasse, enfaticamente, as palavras na cabeça da pessoa com quem dialoga, que na verdade é um “tú” que é ele mesmo). É extraordinária a sensibilidade na escolha das palavras dos últimos dois versos dessa estrofe. Elas representam metonímias que materializam a evolução do ser humano. O poder de síntese destas três palavras é recuperado: “pies” – “pés” – o que cresce na infância e adolescência, “pelo” – “cabelo” – o que se perde quando adulto, “memoria” – “memória” – o que se perde na velhice. De acordo com Anna Balakian, temos nesses versos: “a técnica simbolista de focalizar a parte em vez do todo” (BALAKIAN, 2000, p. 130).
A quarta estrofe, composta por 23 versos, é mais introspectiva que a anterior e mostra como o eu-lírico guarda em sua mente as imagens do “menino perdido” que se transformou em um “outro homem”. Na verdade, o conteúdo da estrofe é uma auto-descrição do processo de transformação, e não uma narração de fatos (versos 12-34):

Aquél fue un niño que pasó corriendo
detrás de un río, de una bicicleta,
y con el movimiento
15. se fue tu vida con aquel minuto.
La falsa identidad siguió tus pasos.
Día a día las horas se amarraron,
pero tú ya no fuiste, vino el otro,
el otro tú, y el otro hasta que fuiste,
20. hasta que te sacaste
del propio pasajero,
del tren, de los vagones de la vida,
de la substitución, del caminante.
La máscara del niño fue cambiando,
25. adelgazó su condición doliente,
aquietó su cambiante poderío:
el esqueleto se mantuvo firme,
la construcción del hueso se mantuvo,
la sonrisa,
30. el paso, un gesto volador, el eco
de aquel niño desnudo
que salió de un relámpago,
pero fue el crecimiento como un traje!
    Era otro el hombre y lo llevó prestado.     


Aquele foi um menino que passou correndo
atrás de um rio, de uma bicicleta,
e com o movimento
foi-se a tua vida com aquele minuto.
A falsa identidade seguiu os teus passos.
Dia a dia as horas se amarraram,
mas tu já não foste, veio o outro,
o outro tu, e o outro até que foste,
até que te arrancaste
do próprio passageiro,
do trem, dos vagões da vida,
da substituição, do caminhante.
A máscara do menino foi mudando,
emagreceu a sua condição enfermiça,
aquietou-se o seu volúvel poderio:
o esqueleto se manteve firme,
a constituição do osso se manteve,
o sorriso,
o passo, um gesto voador, o eco
daquele menino nu
que saiu de um relâmpago,
mas foi o crescimento como um traje!
Era outro o homem e o levou emprestado.


Para marcar as mudanças e transformações do eu-lírico ocorridas em “El niño perdido”, é utilizada a relação entre percepções exteriores e interiores. Assim, temos imagens visuais exteriores que projetam o eu-lírico em movimento e materializam a velocidade acelerada da passagem do tempo e da vida (percepções interiores), através da locomoção do eu-lírico em meios de transporte:
•     bicicleta – Aquél fue un niño que pasó corriendo /detrás de un río, de una bicicleta, /y con el movimiento /se fue tu vida con aquel minuto (versos 12-15).
•     trem – pero tú ya no fuiste, vino el otro, / el otro tú, y el otro hasta que fuiste, / hasta que te sacaste / del propio pasajero, /del tren, de los vagones de la vida (versos 18-22).
O gesto voador, o eco e o relâmpago também são imagens oferecidas em série (técnica simbolista) que marcam a velocidade acelerada da passagem do tempo e do rápido fluir da vida – el paso, un gesto volador, el eco / de aquel niño desnudo / que salió de un relámpago (versos 30-32). É interessante notar que a descrição do menino é realizada através de suas partes que representam o todo (metonímia).
O relâmpago resgatado em “El niño perdido” e a lava vulcânica, retomada em “In the waiting room” simbolizam o elemento fogo negativamente. Segundo Biedermann, eles representam “o aspecto negativo do fogo do inferno, do incêndio aniquilador e da destruição que vem do fogo do céu, isto é do raio, assim como do fogo vulcânico que vem do interior da Terra” (BIEDERMANN, 1994, p. 162).
A máscara do poema “El niño perdido” é um índice da negação de si mesmo por parte do eu-lírico, enfatizada pela presença de muitas nasais nos versos: La máscara del niño fue cambiando, / adelgazó su condición doliente, / aquietó su cambiante poderío (versos 24-26). De acordo com Bachelard (1991 p. 164, 166):

“Parece que a máscara realiza, de imediato, a dissimulação. [...] Se o ser mascarado pode entrar de novo na vida, se quer assumir a vida de sua própria máscara, ele se confere facilmente a habilidade da mistificação. Acaba por acreditar que a outra pessoa toma sua máscara por um rosto. Crê simular ativamente, após ter-se dissimulado facilmente. A máscara é, assim, uma síntese ingênua de dois contrários muito próximos: a dissimulação e a simulação[...]”.
“O ser sob uma máscara real não se engaja verdadeiramente num processo de dissimulação. A fenomenologia do ser efetivamente mascarado, inteiramente travestido, é então pura negatividade de seu próprio ser. Pode adormecer nessa negatividade e mesmo perder a consciência de sua vontade de máscara”
.
O eu-lírico de “El niño perdido” esboça no poema o momento em que despertado por sua consciência, percebe sua própria máscara, e nega a si mesmo e a todos os outros “eus” fragmentados que formam seu “eu” total. Isto está demonstrado na quinta e última estrofe do poema composta por 25 versos. Esta última estrofe guarda uma solução imprevista para a questão, pois, nos versos finais do poema, o eu-lírico nega o reconhecimento de si mesmo (versos 52-59):

y nunca más supimos quiénes éramos,
y a veces recordamos
al que vivió en nosotros
55. y le pedimos algo tal vez que nos recuerde,
   que sepa por lo menos que fuimos él, que hablamos
con su lengua,
pero desde las horas consumidas
aquél nos mira y no nos reconoce.     

e nunca mais soubemos quem éramos,
e as vezes recordamos
aquele que viveu em nós
e lhe pedimos algo, talvez que se recorde de nós,
que saiba pelo menos que fomos ele, que falamos
com a sua língua,
mas das horas consumidas
aquele nos olha e não nos reconhece.

O desdobramento do eu-lírico em vários outros, que em princípio poderia parecer difícil de entender, fica evidente nos versos da última estrofe, permeados de sons vibrantes e sibilantes que conferem maior sonoridade aos versos (distorcendo a regularidade sonora anterior) e materializam, sonoramente, o ser distorcido que nos fala: y de repente apareció en mi rostro / un rostro de extranjero / y era también yo mismo: / era yo que crecía, / eras tu que crecías, /era todo / y cambiamos / y nunca más supimos quiénes éramos (versos 45-52). Nesses versos, a fragmentação é marcada pela representação da parte (rosto de estrangeiro) pelo todo (outro “eu”).
A materialização da imagem de fragmentação é belíssima, mas talvez a imagem mais bela do poema seja o paralelo estabelecido entre a árvore e o ser humano, logo no início do poema. Temos com este paralelo uma imagem muito bem construída, oferecida por uma metáfora comparativa entre o crescimento de uma árvore e o crescimento de um ser humano (semente = menino, madeira = homem, folhas = pluralidade do homem, árvore = totalidade do homem) nos versos: Lenta infancia de donde / como de un pasto largo /crece el duro pistilo, / la madera del hombre. [...] Todo fue mudando, hoja por hoja / en el árbol (versos 1-4 e 9-10) Aqui temos outra técnica simbolista: o uso de correspondências simbólicas para promover um processo de meditação. O eu-lírico medita acerca do seu desenvolvimento como ser humano, rememorando as diversas etapas pelas quais passou (menino, homem, homem plural, homem total). Portanto a metonímia (partes do desenvolvimento humano para resgatar o todo) engloba as metáforas que estabeleceram a relação de semelhança entre homem e árvore.
Esses versos iniciais (1-4 e 9-10) nos dão uma pista para buscarmos resgatar o elemento fundamental que, conforme a filosofia bachelardiana, seria o tema responsável por todas as demais imagens do poema. Em “El niño perdido” a água aparece misturada com a terra para gerar a vida do menino-semente que se desenvolverá em homem-árvore. Sem água e sem terra, não existe contexto para o desenvolvimento (nem da semente, nem do homem).
Deste modo, teríamos no poema o elemento fundamental que Bachelard chama de “águas compostas”, no caso a água misturada com a terra. De acordo com Bachelard: “a união da água e da terra dá a massa. A massa é um dos esquemas fundamentais do materialismo. [...] A massa nos parece ser o esquema fundamental do materialismo realmente íntimo em que a forma é excluída, apagada, dissolvida” (BACHELARD, 1998, p. 109).
A metáfora, formada entre nascimento e crescimento do homem e da árvore, pressupõe a presença de raízes que ligam a planta-homem com a terra. Podemos associar a raiz com o pesadelo labiríntico, pois conforme diz Bachelard, “[...] com a raiz – labirinto vegetal – encontramos todas as imagens dinâmicas do movimento retorcido” (BACHELARD, 2001 p. 11)
Enquanto a raiz confirma a presença da terra como elemento fundamental do devaneio nerudiano, o rio no poema de Neruda (un niño que pasó corriendo /detrás de un río), não só confirma a presença da água como elemento fundamental, mas também revela a busca do eu-lírico por suas origens, a vontade do eu-lírico de reencontrar o menino perdido.

“O rio, malgrado seus mil rostos, recebe um destino único; sua fonte tem a responsabilidade e o mérito de todo o curso. A força vem da fonte. A imaginação quase não leva em conta os afluentes. Ela quer que uma geografia seja a história de um rei. O sonhador que vê passar a água evoca a origem lendária do rio, sua fonte longínqua” (BACHELARD, 1998, p. 159).

Assim sendo, podemos entender que o eu-lírico que busca “El niño perdido” procura não só a sua origem (a origem do rio), mas também a sua própria força (a força da fonte) mantida por características que o eu-lírico ainda sustenta, oriundas de sua infância: la construcción del hueso se mantuvo, /la sonrisa, /el paso, un gesto volador [...] hablamos con su lengua (versos 27-30 e 56-57).
Como vemos, o uso de símbolos como imagens físicas nos versos de “El niño perdido” de Neruda, poeta chileno é tão abundante quanto nos versos de “In the waiting room” de Bishop, poeta norte-americana. Além disso, nos dois poemas encontramos muitas outras características do simbolismo, como por exemplo: a busca do “eu profundo”, a relação entre percepções exteriores e interiores, as imagens oferecidas em série, o uso do concreto para resgatar o abstrato, o uso da parte para retomar o todo, o uso de correspondências simbólicas para promover um processo de meditação.
Por todas essas características que encontramos em “In the waiting room” e em “El niño perdido”, podemos afirmar que os dois autores, nos poemas estudados, demonstram ser verdadeiros herdeiros do simbolismo. Segundo Anna Balakian (2000, p. 12, 15, 16):

“O fato é que os herdeiros do simbolismo são atualmente muito mais proeminentes nos anais da história literária do que os fundadores. [...] Mas na Paris da década de 1890, os poetas perderam sua identidade nacional, pelo menos temporariamente, numa atitude esotérica da arte; rejeitavam a sociedade e, longe de se tornarem os porta-vozes oficiais de seus países, moveram-se em círculos fechados, comunicando-se apenas com seus próprios pares. [...]”
“A visão artística, livre dos ideais nacionais, concentrou-se na relação entre o mundo pessoal do artista, puramente subjetivo, e sua projeção objetiva. [...]”
“Com o simbolismo, a arte deixou realmente de ser nacional e assumiu as premissas da cultura ocidental. Sua preocupação maior era o problema não-temporal, não-sectário, não-geográfico e não-racional da condição humana: o confronto entre a mortalidade humana com o poder de sobrevivência, através da preservação das sensibilidades humanas nas formas artísticas”.

No interior dos poemas “In the waiting room” e “El niño perdido”, notamos a preocupação de preservar a sensibilidade humana em todos os seus aspectos: espiritual, emocional e material. Além disso, as combinações – entre a água e o fogo e entre a água e a terra – fazem com que apareçam nos poemas muitos traços sensoriais, marcas da sensibilidade humana material. Tentamos diagramar esses traços sensitivos (ou sensoriais) que cobrem ambos os textos estudados em um quadro. É importante lembrar que, muitas vezes, os traços sensitivos promovem a mistura de sensações. Nos casos em que a mistura ocorre, teríamos a figura chamada de sinestesia, técnica muito utilizada pelos autores simbolistas. No quadro a seguir, assinalamos os casos de sinestesia com um sublinhado.
Bishop e Neruda não trabalharam sensações gustativas e odoríferas nos poemas estudados. Por outro lado, o trabalho com sensações espaciais, visuais, auditivas e táteis e, também, a mistura destas sensações mostra a grande sensibilidade e a intensa percepção primária do mundo material por parte dos dois poetas, herdeiros de técnicas simbolistas, entre outras. Tanto Bishop quanto Neruda trabalham as oposições espaciais – aberto X fechado. O eu-lírico de Bishop se fecha na sala de espera e se fecha nas gravuras da revista; mas as revistas abrem outras possibilidades espaciais através de suas gravuras. O eu-lírico de Neruda se fecha quando sai da amplidão do campo e vai para o espaço restrito da cidade.Depois se fecha em seu próprio interior onde o menino perdido dentro de si mesmo não mais o reconhece. Enquanto Bishop explora melhor as oposições claridade X escuridão, construindo imagens contrastantes entre o interior e o exterior da sala de espera, Neruda usa mais as oposições luz brilhante e luz opaca para caracterizar, respectivamente, o menino perdido no passado e o seu “eu” desconstruído no presente. A oposição bonito X feio aparece em igual proporção nos dois poemas. O eu-lírico de Bishop vê imagens que considera feias e outras que considera bonitas na revista. O eu-lírico de Neruda trabalha mais acentuadamente com imagens que revelam o lado feio que lhe foi imposto através do crescimento.“In the waiting room” os traços sensoriais de sonoridade e de dor parecem ser mais abundantes do que em “El niño perdido”. Entretanto, o crescimento em si do menino perdido representa um processo doloroso que envolve as sensações de lentidão X dureza (pasto X cidade, semente X madeira) uma vez que o crescimento se impôs – pero fue el crecimiento como un traje! (verso 33).
Mas se os eu-líricos de “In the waiting room” e de “El niño perdido” mantêm suas respectivas sensibilidades ativas, possuem, por outro lado, sérios problemas em definir suas respectivas identidades. Em busca de entender o valor de suas identidades o eu-lírico de Bishop e o de Neruda utilizam como motivo poético a infância que serve para ambos de ponto de referência. Entretanto, enquanto o eu-lírico de Neruda busca sua própria força e pureza através de pequenas características que ele ainda mantém de seu eu-menino (el esqueleto se mantuvo firme,/ la construcción del hueso se mantuvo, / la sonrisa, / el paso, un gesto volador, el eco / de aquel niño desnudo – versos 27-31), o eu-lírico de Bishop realiza uma volta total ao passado e revive as sensações que experimentou em Worcester, quando tinha sete anos de idade (I said to myself: three days /and you’ll be seven years old – versos 54-55).
Enquanto o eu-lírico nerudiano busca se aprofundar em seu próprio eu (ou “eus”) para resgatar “El niño perdido”, o eu-lírico bishopiano passa por um processo mais intenso, como se estivesse realizando uma regressão de uma sessão de psicanálise em “In the waiting room”.
Quanto às imagens materiais bachelardianas que funcionam como tema fundamental em ambos os poemas, vimos que prevalece o elemento que Bachelard chama de “águas compostas”. No poema de Bishop perduram elementos compostos formados pela água e pelo fogo; em contrapartida, no poema de Neruda perduram elementos compostos formados pela água e pela terra. Segundo Bachelard, a combinação da água e do fogo, existente em “In the waiting room”, mostra um eu-lírico contraditório, marcado pelo casamento de elementos contrários:

“Esse devaneio essencial é precisamente o casamento dos contrários. A água apaga o fogo, apaga o ardor. No reino das matérias, nada encontraremos de mais contraditório que a água e o fogo. A água e o fogo proporcionam talvez a única contradição realmente substancial” (BACHELARD, 1998, p. 102).

Embora para nosso estudo a vida pessoal do autor não seja algo relevante, temos que considerar que sempre haverá uma relação entre o “eu criador” e o mundo real que o cerca. Por isso, é importante ressaltar que Elizabeth Bishop foi uma pessoa cuja relação com o mundo estava repleta de contradições. Desde sua infância, Bishop se viu dividida entre duas classes sociais distintas: os parentes da mãe tinham uma vida mais simples, enquanto os parentes do pai pertenciam a uma classe mais abastada. Bishop também presenciou, ainda na infância, as contradições impostas por duas culturas diferentes: a americana e a canadense. Mais tarde entraria em contacto com a cultura brasileira. Além de tudo isso, Bishop enfrentou outras grandes contradições: a primeira, entre a vida regrada de poeta (seu ofício) e o alcoolismo (seu vício) e, a segunda, entre dois sexos, devido ao lesbianismo que vivenciou plenamente.
Por outro lado, a combinação da água e da terra, manifestada em “El niño perdido”, mostra um eu-lírico que mesmo tendo os pés na terra, abandonou seu rumo ao fluxo do rio da vida.
Levando em conta a vida pessoal de Neruda, sabemos que ele sempre foi diplomata e que não tinha, pelo menos no início de sua carreira, muito controle sobre sua vida. Ele transferia sua residência quando, e para onde, o governo chileno solicitasse seus serviços. Pelas metáforas delineadas no início do poema que relacionam o crescimento humano com o crescimento da árvore, chegamos à relação entre a água e a terra, pois uma árvore natural não existe sem terra e água. Aliás, a criação do homem a partir do barro (mistura de água e terra) é uma imagem bíblica: “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gênesis: 2, 7). O homem no momento de sua criação estava destituído de seu pecado original, e portanto, era um homem puro. Esta busca da pureza em si mesmo é, como já vimos, a busca do eu-lírico de “El niño perdido” (o menino perdido dentro de si mesmo).
Outro ponto importante sobre a questão da mistura da água com a terra é a problemática do olhar. O ser imaginante vê com a imaginação do elemento terra ou com a imaginação da água? Bachelard responde a esta pergunta com a seguinte proposta:

“Se o olhar das coisas for um tanto suave, um tanto grave, um tanto pensativo, é o olhar da água. O exame da imaginação conduz-nos a este paradoxo: na imaginação da visão generalizada a água desempenha papel inesperado. O verdadeiro olho da terra é a água” (BACHELARD, 1998, p. 33).

Por isso, existe a busca da pureza em “El niño perdido”, devido à supremacia da água, que é o elemento material da valorização da pureza: y así fue sucediendo/ el hombre impuro, / hijo del hijo puro, / hasta que nada fue como había sido (versos 41-44).
Nas imaginações provenientes da mistura dos elementos água e fogo, o olhar da água não prevalece, ao contrário, conforme Bachelard, neste caso teríamos um olhar ambivalente:

“Unidos, esses dois elementos criam tudo. [...] A imaginação sonha a Criação como uma união íntima do duplo poder do fogo e da água. [...] É a imaginação material da umidade quente. [...] A noção de umidade quente é ensejo para uma ambivalência incrivelmente poderosa. Já não se trata de uma ambivalência que joga com qualidades superficiais e cambiantes. Trata-se verdadeiramente de matéria. A umidade quente é a matéria tornada ambivalente, ou seja, a ambivalência materializada” (BACHELARD, 1998, p. 104, 105).

Conseqüentemente, o eu-lírico de “In the waiting room” é ele mesmo, é a tia Consuelo, é também todos os outros. Assim as semelhanças que o eu-lírico vê entre os demais e ele mesmo, inclusive os peitos caídos horrendos que são também índices de uma umidade quente, mantêm o eu-lírico do poema e os demais todos juntos: What similarities – boots, hands, [...] and those awful hanging breasts – held us all together or made us all just one (versos 72-83).
Assim sendo, podemos dizer que os dois poemas estudados, a despeito da convergência do motivo poético “infância” e do processo metonímico de construção de imagens que é recorrente nos dois textos, possuem muitas características divergentes. Ademais da distinção entre o tema – água e fogo X água e terra – as múltiplas faces do eu-lírico nerudiano, por exemplo, representam aspectos negativos (a perda da pureza, a auto negação, o não reconhecimento de si mesmo), o eu-lírico multifacetado bishopiano, ao contrário, representa aspectos positivos: ele encontra sua identidade: é – an Elizabeth e, ao mesmo tempo, ele é todos os outros, tem uma identidade plural.
A mistura entre água e fogo, está presente em muitos poemas de Bishop. Um que nos chama, particularmente, a atenção é “Casa Bianca”, devido às imagens que revelam a associação que Bishop faz entre amor e dor. O amor é representado pela figura de um menino que se queima (fogo) em um navio que navega (água). Bachelard, certamente, diria que o amor é purificado pela ação do fogo e dissolvido pela ação da água, pois é exatamente o que se sente nestes versos:

CASA BIANCA

Love’s the boy stood on the burning deck
trying to recite “The boy stood on the
burning deck”. Love’s the son
stood stammering elocution
while the poor ship in flames went down.

Love’s the obstinate boy, the ship,
even the swimming sailors, who
would like a schoolroom platform, too,
or an excuse to stay
on deck. And love’s the burning boy.     

CASA BRANCA

O amor é o menino no tombadilho em chamas
tentando recitar “O menino estático
no tombadilho em chamas”. O amor é o filho
de pé, gaguejando estilo
enquanto o pobre navio incendiando vai a pique.

O amor é o menino obstinado, o navio,
mesmo os marinheiros nadadores, que
também prefeririam um pódio de sala de aula,
ou uma desculpa para ficar
no tombadilho. E o amor é o menino que se queima.

Elizabeth Bishop

Poemas. Tradução de Horácio Costa. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.24-25

Mas temas que combinam água e fogo também são recorrentes na poesia nerudiana, muitos poemas nascem dessa mistura, como por exemplo, o poema “Nasce”, no qual a imagem do nascimento do dia é formada pela combinação de água e fogo:

NACE

Yo aquí vine, a los límites
en donde no hay que decir nada,
todo se aprende con tiempo y océano,
y volvía la luna,
sus líneas plateadas
y cada vez se rompían la sombra
con un golpe de ola
y cada día en el balcón del mar
abre las alas, nace el fuego
y todo surge azul como mañana.     

NASCE

Aqui cheguei, aos limites
onde não é preciso falar,
tudo se aprende com o tempo e o oceano,
a lua aparecia,
com as suas linhas prateadas
e aos poucos desfazia-se a sombra
com golpe de onda
e na varanda do mar o dia
abre as asas, nasce o fogo
e tudo continua azul como amanhã.

Pablo Neruda

Plenos Poderes. Tradução de Luís Pignatelli. Lisboa: Dom Quixote, 1977, p.22-23.

“Nasce” é a representação da imagem de um novo dia, formado pelo tempo e pelo oceano (movimento). O dia é materializado através das asas e é, ao mesmo tempo, formado por fogo e águas – con un golpe de ola/ y cada día en el balcón del mar/ abre las alas, nace el fuego.
Em “Casabianca” o motivo poético é o amor e o tema bachelardiano é o das águas compostas ao fogo. Já em “Nasce” o motivo poético é o nascer de um novo dia tratado sob o influxo temático também das águas compostas (água X fogo). “In the waiting room” e “El niño perdido” o motivo poético é o mesmo – a busca da identidade do eu-lírico através da infância, mas os temas bachelardianos são diferentes, pois no primeiro temos a água composta ao fogo e no segundo a água composta à terra. Isso mostra que motivos poéticos semelhantes podem ser tratados através de temas distintos, e também um mesmo tema, uma mesma imagem inicial pode gerar poemas com motivos poéticos totalmente diferentes (“El niño perdido”, “Casabianca” e “Nasce” possuem o tema águas compostas ao fogo mas seus motivos poéticos são totalmente distintos). Sendo assim podemos concluir que não existem regras fixas, entre a relação tema e motivo poético, esta relação depende de cada poema.
De qualquer maneira, a busca da identidade do eu-lírico através da infância, promove o desdobramento do eu que nos fala tanto em “In the waiting room” como em “El niño perdido”. O desdobramento do eu-lírico, encontrado em ambos os poemas, liga-se também a técnicas de escritura de outra escola literária, além do simbolismo: o cubismo, que pretendia mostrar o objeto de arte em todas as suas dimensões.
O movimento cubista foi fundado por Pablo Picasso (1881-1973) e por Georges Braque (1882-1963). Entretanto, o movimento nasceu na pintura francesa e tem Cézanne como precursor, pois em uma das suas cartas – “Carta a Émile Bernard” (1907) – afirmava ele que, em princípio, tudo podia ser representado sob formas geométricas. O cubismo foi lançado com o quadro “Les Demoiselles d’Avignon” de Pablo Picasso, exposto pela primeira vez em 1907. Foi um movimento que se prolongou até 1914 (Cf. TRINGALI, 1994, p. 174-180).
Picasso, além de pintor era também poeta, portanto foi o grande propagador das idéias cubistas que, na literatura, teve em Wilhelm Apolliaris de Kostrowitzky (poeta francês, conhecido por Guillaume Apollinaire – 1880-1918) seu líder. O livro de Appolinaire, Pintores Cubistas, publicado (1913) possuiu o valor de manifesto da escola.
Dentre os poetas cubistas destacam-se os franceses: Max Jacob (pintor e escritor cubista 1876-1944), Jean Cocteau (poeta, romancista e cineasta – 1889-1963), Pierre Reverdy (1889-1960), Blaise Cendras (poeta e romancista – 1887-1961). Entre 1910 e 1924, a presença do cubismo manifestou-se também na narrativa sob liderança de Gertrude Stein (1874-1946) escritora judia norte-americana, que influenciou a (denominada por ela) “geração perdida”, da qual faziam parte: Ernest Miller Hemingway (1898-1966), Sherwood Anderson (1876-1941), Ezra Loomis Pound (1885-1972), John dos Passos (1896-1970), entre outros. Estes escritores norte-americanos viviam afastados da terra natal, perdidos no mundo, por isso o nome geração perdida.
Na Rússia, a partir de 1913, formou-se um grupo dissidente do futurismo que se auto-denominou: cubofuturista. Este grupo, formado por poetas e pintores, planejava criar uma arte formalista, reduzida à realidade gráfica e sonora. Para eles, as palavras eram consideradas formas, e por isso podiam ser decompostas e rearranjadas. O movimento cubofuturista teve como participante – Vladimir Maiakóvski (1894-1930).
Com o advento do cubismo, foi desenvolvida a técnica da simultaneidade. Através do estilo cubista, o poeta podia se desdobrar em um outro e dialogar consigo mesmo, como Guillermo de Torre.(v. 2, 1972, p. 109) diz:

“O poema passa a reduzir-se a uma sucessão de anotações, uma apresentação de estados de alma, que não apresentam entre si uma relação causal. Produz-se ainda uma alteração correlativa do sujeito: o poeta desdobra-se num outro, interpelando-se a si mesmo; nesses poemas confessionais, o eu surge-nos refletido no espelho do tu”.

Esse diálogo entre as múltiplas faces de um mesmo eu-lírico ocorre nos dois poemas analisados. Entretanto, “El niño perdido” é a demonstração das várias dimensões e faces do eu-lírico que subentende vários “tus” e ao mesmo tempo vários “eus” no poema (simultaneidade). O eu-lírico de “El niño perdido” é desconstruído e, ao mesmo tempo, reconstruído no poema e no final nega o reconhecimento de si mesmo.
A mesma desconstrução e reconstrução ocorre com o eu-lírico de “In the waiting room”, mas ele se auto-reconhece no final do poema, não mais na instância de um “eu” ou de um “tu”, mas na instância de todos, equivalente a um “nós”. Outra técnica do cubismo que pode ser observada nos dois poemas é a supressão da continuidade cronológica. Segundo Torre, “uma vez que a continuidade cronológica é suprimida, as sensações e as recordações entrecruzam-se do presente para o passado, confundindo os seus itinerários” (p.111). É o que acontece, principalmente em “El niño perdido”, no qual o eu-lírico resgata momentos diferentes da sua existência.



Biografia:
Com mestrado e doutorado em Estudos Literários, professora de espanhol e LTT do Colégio Industrial de Araraquara (ETEC - Anna de Oliveira Ferraz - Centro Paula Souza), e eterna estudante da UNESP - FCLcar, Vera Gonzaga é uma apaixonada por poesia. Estuda a fundo o poeta chileno Pablo Neruda (Nobel 1971), mas ama a poesia em todos os idiomas e em todos os estilos.
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Outros títulos do mesmo autor

Poesias O EU-LÍRICO MULTIFACETADO DE BISHOP E NERUDA VERA LÍGIA MOJAES MIGLIANO GONZAGA
Biografias UM DIÁLOGO ENTRE ELIZABETH BISHOP E PABLO NERUDA VERA LÍGIA MOJAES MIGLIANO GONZAGA


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