"Porque, se há verdades que, tendo sido bem demonstradas, não deixam lugar às dúvidas, quantas não serão — pergunto — as que perturbam a tranqüilidade e os prazeres da vida?"
Erasmo de Rotterdam (1465-1536) in “O Elogio da Loucura”
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Lembro como se tivesse ocorrido agora pouco, da minha impressão ao assistir o filme “Matrix” de 1999. O que me chamou muito a atenção no filme foi seu aspecto filosófico bem distribuído entre várias correntes do Pensamento Idealista, aquele que diz ser a idéia o primado da realidade.
Repassando mentalmente os eventos do filme enquanto o ônibus trepidava pelas ruas, parava nesta ou naquela cena, mas uma em especial me chamou a atenção. A cena em questão foi a de que os despertos da Matrix, durante uma missão, foram descobertos dentro da rede. “Neo”, o herói, percebe antes dos companheiros de que havia algo errado, por causa de um fato singular. O gato que por ali passava repete de igual forma seu comportamento, como se um bug no sistema houvesse ocorrido. Ou seja, a ilusão se mostrou claramente pela repetição ilógica do comportamento do gato dentro da percepção de Neo. Para outro, este “sinal” sem importância poderia passar despercebido. Sorte para os despertos, a sacada de Neo.
Estranhamente as modificações do pensamento são de natureza anormal. Geralmente a satisfação faz com que vejamos a situação da maneira que queremos. Muitas vezes ela pede mais, um olhar mais refinado, um sentido paralelo. Um exemplo de como nosso senso comum falha são os Koans do Zen, que buscam dentro da lógica ir além da lógica. O mais famoso é aquele que diz para batermos palmas com apenas uma mão. Difícil imaginar, não?
Há também para essa busca de aperfeiçoamento da percepção, uma metodologia denominada Pensamento Lateral, Lateral Thinking. Ela se utiliza de vários ângulos para atingir um só problema, utilizando as bordas e indiretamente atacando. O resultado é um melhor aparelhamento de recursos para a criatividade. Foi metodizada pelo britânico Edward de Bono (1933- ). Para os fãs da série “Sherlock Holmes” de Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930), os nove livros estão repletos de dicas sobre o Pensamento Lateral. De Bono considera o primeiro livro da série, “Um Estudo em Vermelho” um tratado sobre o tema.
A discordância que fazemos entre o hábito (repetição) e a percepção (campo do novo), relacionando um conjunto de idéias outras que aparentemente são de áreas diferentes, de natureza ilógica...; possivelmente refrescam o entendimento e a memória.
Quantas vezes abrimos e fechamos a geladeira sem lembrarmos o que estávamos buscando? Ou olhamos vezes para o espelho na ânsia de certificarmos que nós, somos nós mesmos? Ou escrevemos nosso nome sem necessidade? Ou olhamos para uma foto tirada de nós junto com outras pessoas, e a primeira pessoa que vemos somos nós mesmos?
Estamos a serviço dos sentidos e das flutuações de seus significados. Uma coisa tem um valor hoje, amanhã outro. Uma pessoa é maravilhosa hoje, amanhã nem lembramos mais...
Os hinduistas têm uma concepção disso, assaz interessante. Para esses pensadores tudo que é transitório, que tem fim, é também Maya. Assim, quando pensamos em nossa interação com o meio como uma realidade, atribuímos uma força de permanência às coisas perecíveis. Como é Lei do universo o permanente estado de mudança, acabamos iludidos.
Quanto aos seres, vamos com o passar nos modificando e o que projetamos sobre os outros (nossa ilusão) vai se desfazendo da mesma maneira. Formado um vínculo de sentimento positivo (unidade), este poderá se transformar numa espécie de “anti-Maya”. Reforçado mais e mais com o passar do tempo. Dando origem ao afeto incondicional, raríssimo de se ver.
Maya é pensar que tudo continuará da mesma forma, ou torcer para sempre ser assim. Daí tanta Arte e Filosofia sobre a desilusão. Mesmo a desilusão é uma ilusão. A permanência, segundo alguns, não pode se desiludir, pois não se ilude, não está no mundo dos fenômenos (dos trânsitos).
Perceber é uma aposta, dizia o filósofo Edmund Husserl (1859-1938). É certo que é real o que sentimos. Sim, é real. Talvez percebamos somente o que sentimos; daí ser tão inusitado costumes fora de nossas apostas. É tão similar um sentimento alheio pelo que estamos sentindo/ouvindo... Certa imagem diz tanto sobre nós... Um perfume é nossa “essência”...
Matrix é uma excelente metáfora de Maya. Onde pousamos nossa percepção, lá estaremos. Até seguirmos outras percepções a convite da mutabilidade de nosso roteiro.
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