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Triste lira dos 20 anos
Flora Fernweh

Chove lá fora, e aqui dentro meu coração se encontra em prantos pela austeridade do destino. O arrependimento está me corroendo e o frenesi da vida está diluindo minha sensibilidade. Desde a sua partida, minha inspiração se encontra suspensa, porque minha inspiração é o amor, e esse é o sentimento que sempre existiu entre nós. Minhas noites, antes serenas, têm sido povoadas pelos pesadelos de uma mente inconformada com o que nos ocorreu, e tudo o que me habita sente o peso da culpa que carrego ao pôr termo em uma história que sei que jamais se repetirá da mesma maneira.

Eu preciso tanto explicar as minhas razões, por mais que hoje elas já sejam destituídas de sentido, diante de uma possível conversa capaz de resolver tudo e que nunca aconteceu. Aliás, reconheço que carecemos de diálogos mais profundos, embora fosse quase inacessível a expressão dos seus sentimentos, quase sempre tão contidos. Mas tudo o que digo aqui reflete apenas a minha versão dos fatos.

Após dois anos juntos, foram raras as vezes em que conversamos de forma séria sobre o nosso futuro, e isso me preocupava. Não falávamos em casamento, filhos ou sobre constituir uma família, dois anos se passaram e eu, de minha parte, não sentia que tínhamos avançado nesses aspectos sociais do amor. Talvez fosse pela nossa significativa diferença de idades e pelos tempos distintos que estávamos vivendo, o que me exigia tomar como certos em minha vida alguns pontos muito importantes e que ainda eram difusos para uma jovem de 20 anos de idade, como o fato de que ao seu lado, eu dificilmente seria mãe.

Pode ser uma conclusão muito precipitada, mas não tenho tanto tempo a perder, e ouso dizer que disso decorria a minha aversão de até então às mulheres grávidas ou com filhos na primeira infância. Hoje, estou diferente em pensamento e espírito, o tempo ao seu lado me mostrou que posso ser uma mulher livre e determinada, porque seu amor não me prendia, ele apenas realçava o que havia de melhor em mim.

A um só tempo, eu era muito insegura sobre a possibilidade de distanciamento físico entre nós diante da sua aspiração em se tornar professor em uma universidade pública, ainda que a quilômetros de distância de mim. O que me angustiava, na verdade, era ver que eu não era incluída em sua equação nesse planejamento, e que por vezes, eu tinha a impressão de que o que você mais queria era algo que te tornasse profissionalmente realizado, independentemente de minha presença ou de minha ausência. Isso pode soar como imaturo e egoísta, mas tamanho seria o meu sofrimento em prosseguir com um relacionamento à distância.

Lembro muito nitidamente de uma frase dita por R., seu amigo, que disse que não conseguiria viver longe da mulher e da filha, e que elas já estavam se organizando para se mudarem com ele também, isso me entristeceu ao comparar com a sua opinião sobre o isolamento geográfico entre um casal, que está longe de ser natural. Bem no fundo, eu sabia que sua passagem pela ilha seria passageira, porque aqui é um lugar muito distinto de sua origem, e o ser humano busca, invariavelmente, retornar às suas raízes, então no canto mais íntimo de mim, eu sabia que você iria partir, mais cedo ou mais tarde.

E não sei como posso te dizer exatamente o que eu lhe direi agora, mas penso que há fatores de um relacionamento que vão ganhando e perdendo relevância conforme cada etapa da vida. E para mim, neste momento, longe de qualquer futilidade ou superficialismo, mas pensando em uma questão biológica e natural, a sexualidade é um ponto bastante considerável aos 20 anos. Não posso negar que por vezes eu me sentia frustrada e insatisfeita, mas eu não sabia como dizer isso sem que minhas palavras te ferissem em um ponto que costuma ser sensível para os homens, especialmente por uma ideia de masculinidade que disseminam por aí e que nada tem de real. Infelizmente, posso contar em uma mão as vezes em que vivemos alguma experiência erótica pouco mais quente que o sexo em si, destituído de qualquer ato preliminar, tão curto e tradicional, ainda que nossa conexão fosse única e embora eu soubesse que os anos dissiparão esses descontroles do corpo e aumentarão ainda mais o meu arrependimento pela perda de um parceiro de vida.

Preciso te dizer que já dormi ao seu lado sonhando com outro, preciso te dizer, porque você tem o direito de saber, que meu antigo vizinho mexia demais com meus sentidos e que já me peguei fazendo a loucura de bater na porta dele de camisola de madrugada, embora ele não estivesse em casa nesse dia… ainda bem! Mas saiba que eu fui sua e apenas sua durante o tempo em que estivemos juntos, não posso dizer que eu já não sou mais, porque meu sentimento por você remanesce intocado e é somente seu para sempre. Mais do que nunca, estou sentindo na pele essa dualidade entre corpo e espírito de uma forma dolorosa, quase insuportável.

Preciso te contar desde o início sobre como as coisas se deram, para que ao menos eu possa me livrar do peso de você não ter tomado ciência: em março do ano passado, esse meu vizinho havia me convidado para assistir à premiação do Oscar no apartamento dele junto com uma amiga e um amigo. Eu decidi ir. Nesta ocasião, conheci C., uma menina muito simpática e também estudante de Direito, um pouco mais avançada no curso em relação a mim. Percebi que ela e meu vizinho trocavam de forma sutil algumas carícias, o que limitou minha obstinação simples e meramente carnal por ele.

Cerca de um ano depois, soube que C. havia contado sobre minha pessoa para um amigo e disse que gostaria de nos apresentar um ao outro. Na época, esse amigo não demonstrou tanto interesse, pelo o que vim a saber posteriormente, quando de nossos primeiros encontros. Na época, ele não estava em uma fase propícia às aventuras românticas até me conhecer melhor. Hoje, até podemos estar juntos, mas me falta um preenchimento primordial, que a alma reconhece de longe e sente uma falta imensurável.

De você, sempre senti muitos ciúmes, de um jeito que nunca senti por ninguém mais, e penso que o estopim se deu ao final do ano passado, quando eu soube que você havia conhecido uma menina que estaria ingressando no mestrado em sua área de estudos. Me doeu saber que vocês estavam saindo juntos, mas do que sinto mais dor e pena foi pelo fato de você, com seu jeito mais recluso, não ter me contado sobre isso. Nunca esqueço do que senti ao chegar naquela sala, na universidade e encontrá-los juntos, e nunca pensei que eu faria algo que até então me era impensável: checar as mensagens em seu celular, o ápice de minha desconfiança motivada. Eu, diferentemente de você, não tinha coragem nem interesse em tomar atitudes como essas. Para mim, o que fosse exterior a nós não passava de elucubração e mera imaginação de vez em quando, por isso o meu atordoamento.

Tínhamos tudo o que um casal precisa para contar uma linda história às novas gerações, e eu ainda acredito que a vida irá nos presentear com o que há de melhor nela, estejamos juntos ou não. Mas eu não gostaria de saber que perdi um grande amigo, porque sei da fraternidade séria de como você encara as relações de amizade, e eu não gostaria de ser para você apenas mais uma namorada que passou pela sua vida ou a representação de uma mulher comum, igual a todas as outras. Você foi o meu compromisso mais duradouro e por algum tempo, a minha certeza mais sólida, sou grata pela marca indelével deixada em minha vida, e por ter sido um divisor de águas nessa minha juventude errante... a chuva cessou por um breve momento, mas voltou a chover.

Para: J. D. A. S.


Biografia:
Sobre minha pessoa, pouco sei, mas posso dizer que sou aquela que na vida anda só, que faz da escrita sua amante, que desvenda as veredas mais profundas do deserto que nela existe, que transborda suas paixões do modo mais feroz, que nunca está em lugar algum, mas que jamais deixará de ser um mistério a ser desvendado pelas ventanias. 
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