O despertador toca. São 07:00. A temperatura de 22 Cº é informada pelo celular escandaloso. Os olhos estão pesados, parecem estar grudados por uma camada grossa de supercola. Ele os esfrega com os dedos indicadores a fim de desobstrui-los. Inútil. Ergue seu tronco esguio com o apoio dos braços vacilantes. Finalmente consegue identificar a mensagem daquele alarme de usina nuclear, mais um dia se inicia. Imagina, assim como todos os outros dias, a cena em que o coelho gigante, cuja voz é fantasmagórica e fúnebre, convida Donnie Darko a acordar. “Wake up”. Ele teria de resistir a mais um dia. Mas hoje não será igual a ontem, dizia a si mesmo.
Ainda com os olhos entreabertos pôs os pés no chão, procurou por seus chinelos que deveriam estar posicionados ao lado de sua cama. Nunca estavam. Seguiu descalço até o banheiro, usando as mãos para identificar sua localização. Tropeça num pé de sapato usado no último dia como empregado, cujo par não se via há muito. Seu quarto era extremamente desorganizado e sujo, assim como seu apartamento e seu pensamento. Não tinha forças para organiza-lo, ainda que desejasse. Encontrou a maçaneta da porta, que se abriu com o ruído de dobradiças enferrujadas. Pôs-se a frente da pia, e lavou seu rosto. A água desobstruiu a sua visão.
Observou sua imagem refletida no espelho. O rosto estava pálido, olheiras marcantes e a barba desleixadamente grande. Ele não ligava para sua aparência, existiam outros problemas que o afetavam mais. As rotinas matinais foram cumpridas como de praxe. Saiu do cômodo após ter tomado um banho ainda mais frio que a temperatura informada pelo seu telefone. Estava acordado, realmente pronto para encarar um novo dia. Repetiu o pensamento “Hoje não será como ontem”. Fritou ovos e os colocou dentro de pães dormidos. Sentou em seu sofá rasgado e posicionado à frente da televisão.
Sem se dar conta, seu dia havia começado. Enquanto as horas corriam e a programação da TV se encaminhava ao jornal local ele ouvia os barulhos do mundo além de seu apartamento sujo. A cidade fervilhava, o planeta girava, assim como as pessoas, as lojas, as fábricas, a polícia, os hospitais. Ouvia-se sirenes, gritos, buzinas, publicidades. Aquilo tudo o assustava. Cada elemento que compunha aquela orquestra agoniante representava uma célula de um corpo no qual não estava inserido. Tinha medo de atravessar a porta de acesso à rua, era incapaz de encarar a vida. Algo o impedia. Mas ainda assim tinha esperança de que aquele dia seria diferente do anterior.
Havia pedido demissão há um mês, não suportava a vida sufocante de trabalhar, receber salário e comprar coisas. Era refém do que chamava ditadura Coca-Cola. Buscava algum sentido para sua vida. Não queria fazer parte daquele corpo que tanto temia. Contudo, de alguma forma não se sentia capaz de iniciar a sua busca pelo sentido da vida. Desde a sua demissão, as saídas eram limitadas ao mercado, e em horários de pouco movimento. Apesar de não ter prazer na vida buscava manter-se vivo, ainda havia esperança.
Sair de casa representava uma grande vitória para aquele homem. A vida não era colorida e cheia de possibilidades, as pessoas próximas pareciam não entende-lo, por isso se mantinha só. Os traumas da sua vida perturbada o visitava minuto a minuto, o passado o atormentava como se fosse presente. As lembranças eram claras. Queria substituir aqueles pensamentos negativos, mas sempre falhava em suas tentativas. O medo era seu fiel companheiro.
A programação matinal deu lugar ao noticiário local. O Sol estava a pino, e seu estômago deu sinais de existência. Não havia nenhuma lasanha ou hambúrguer congelado, deveria encarar as armadilhas de um passeio até o mercado. Parou diante da porta do seu apartamento, coberto dos pés à cabeça, retirou a mão da manga longa e dobrou a maçaneta. Naquele instante sentiu-se completamente vulnerável, como um cordeiro em meio aos lobos. Mas ainda assim acreditava que aquele dia seria diferente do anterior.
Desceu as escadas rapidamente, o olhar fixo nos degraus, queria passar desapercebido pelos moradores e o porteiro. Caminhava a passos largos, uma velocidade que o fazia ofegar, mas não diminuía os passos e o ritmo. Manteve-se constante até o mercado, de cabeça baixa e mãos nos bolsos. Saiu sem mencionar qualquer palavra ou fitar qualquer pessoa, e carregado de sacolas com comida congelada.
Almoçou uma lasanha ainda fria. Mas pouco importava, comer era uma questão de sobrevivência. Pegou seu celular pela segunda vez naquele dia, haviam ligações perdidas e diversas mensagens. Ignorou todas as ligações e negou todos os convites de seus amigos. Não havia clima para sair, se achava um lixo, por dentro e por fora. Algo sugava suas forças, sua esperança e vontade de viver. Sentia-se deslocado no mundo perfeito representado por canções e filmes. Seu mundo era sujo e desorganizado.
No fim da tarde, enquanto assistia programas sensacionalistas, planejou sair de casa à noite. A coragem que esperava durante o dia todo surgiu, o desejo de livrar-se dos traumas estava latente. Com o celular em mãos, cheio de mensagens não visualizadas, propôs o encontro num bar que frequentava antes da demissão. “Às 20:00 nos encontramos lá”, escreveu com ênfase o horário. A animação parecia verdadeira, até se aproximar da hora marcada.
Ao abrir o guarda-roupas teve noção do quão desordenada estavam suas coisas, assim como sua vida. Não havia sequer uma roupa limpa, todas estavam sobre os móveis e penduradas na bicicleta ergométrica pouco usada. Estava animado, iria vestido de qualquer jeito, ainda que as peças estivessem sujas. No banheiro, parou na frente do espelho embaçado. Tão subitamente quanto sua chegada, a coragem se foi. Ao ver seu reflexo perdeu a vontade de sair daquela fortaleza. Seria alvo de comentários com os quais não saberia lidar e de perguntas sem respostas. Não estava preparado, não queria que notasse sua decadência. “Nossa, você está magro e pálido”, “não tem dormido direito? ”, “como vão as coisas? ”.
Jogou-se na cama, o celular tocava repetidamente. Enquanto os toques ecoavam pelo quarto sua impotência aumentava, seus traumas se tornavam palpáveis. Incapaz de mexer um músculo sequer, se manteve parado, um peso morto sobre lençóis e roupas sujas, sem perspectiva e sem futuro. O sono finalmente chegou. Ele dormiu profundamente. Havia superado mais um dia de sua triste e trágica vida. Mas amanhã não será igual a hoje.
|