Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
O Pecado do Soldado
Leticia Ferreira

Resumo:
Conto sobre Duque de Caxias e sua paixão fictícia por Elisa.

Antes de começar, acho definitivo contar o que vi desde o início, ao invés de desatar roubando as palavras que me foram expostas à mente cansada de quem acabou de presenciar ocorridos que, mais tarde, soube que se tornaram históricos. Luís Alves de Lima e Silva estava ensandecido e da vida era um nobre empregado, marchando sem dó ou expressão de encontro ao desconhecido. Há quanto tempo o vinha fazendo? Já nem sabia. Desde os primeiros passos, sentia que fora impulsionado a esse balé sem graça de homens de cara fechada e bigode tipo serra. Pela primeira vez estava livre da academia, livre dos calouros, dos trotes de iniciantes, das toalhas molhadas e do cheiro de suor viril que emanava de corpos como o dele. Era bom estar limpo, quero dizer, livre novamente.
Há quem diga que o sol brilha para todos. Se fossem perguntar ao jovem Luís a razão que levaria a um pobre coitado acreditar que o maior dos astros pereceria em bondade ao doar sua preciosa luz a nós, meros mortais, ele diria que não passava de um bastardo prepotente. Todavia, não sejamos duros demais com o popularismo. Muitas vezes, até mesmo o filho do Barão de Barra Grande viria a concordar que um amanhecer qualquer daqueles fora desenhado especialmente para ele. A boa sensação ia até o infeliz afundar as botas em esterco de cavalo por estar distraído demais encarando o horizonte enquanto andava. Lição aprendida.

Não havia espaço para pessimismo.
Não havia lugar para nostalgia.
Era a hora de servir ao Príncipe.
E pode-se dizer que o jogo de gato e rato com os portugueses (ou devia dizer, gato e bacalhau?) ia de bom a melhor. Três grandes ataques pelo estado da Bahia, todos bem sucedidos. Ainda que houvessem gotículas rubras ornamentando de morte sua farda, ele tinha a glória de ser nomeado capitão do Batalhão do Imperador ao delírio de seus 21 anos. Tudo estava perfeito. Haviam insígnias espetadas no peito, pinturas feitas em sua homenagem, as pessoas batiam continência e se curvavam ao mero som de seus passos e ainda existia a amizade profunda com o Imperador.

Todavia, desde o momento em que os olhos pousaram sobre a figura de Elisa há duas semanas, nada podia fazer além de remoer a si próprio num mar de torpor e fúria sem fim. Por quem? Ah, por ele, quem mais? Como pudera ser tão estúpido a ponto de deixar-se levar num contato tão ímpar e insignificante para ela como a troca de juras de amor que ficaram presas em sua mente, sem jamais escapar pela boca?
Ela era empregada da casa, dama de companhia da Imperatriz. E fosse ou não pecado comentar, aquela que não tinha sobrenome poderoso e passava horas carregando vestidos e acessórios para sua senhora, conseguia guardar muito mais beleza e encanto aos olhos do fraco capitão do que Maria Leopoldina. Ficava então em silêncio pelo pátio, observando Elisa sair para tomar sol com as outras, escondido por entre arbustos como um gatuno desleal faz antes de atacar sua vítima.

Sim, ele não confessara sequer uma simples e pequena palavra. Talvez ela nem o tivesse visto, muito provavelmente só estava observando as nuvens, tentando compreender porque sua linda mãe a deixara ali pelo Rio de Janeiro quando, na verdade, a menina queria estar no céu, bailando com suas irmãs, fazendo a alegria de tolos como ele.

Sem poder mais resistir àquela agonia suprema, o moreno fez o que qualquer homem insensato faria num momento de igual desespero: Pegou um pedaço amassado de papel que havia em cima da mesa, uma caneta velha e um tinteiro quase vazio, mas que dariam conta do recado. Sendo assim, passou a deslizar a ponta do objeto na superfície quase lisa e de lá, brotaram apenas as seguintes frases:
"E ai de mim, observador triste da noite,
Ter apaixonado pelo brilho da mais bela filha do luar
Que com sua atenção voltada à mãe, ignorou-me no açoite
Mas, sem perceber, tomou-me o coração antes que pudesse virar
E ir.
Encontra-me oh, destino cruel!
Faz de mim teu servo leal
Mesmo que pereça com os lábios em fel
Que ela seja meu rito sepulcral.
Fada da noite, tenha pena de mim.
Olhai para este homem e assim diga
Se estais ou não tão louca quanto eu
Que nessa fadiga infinita
Pago o pato de Romeu?”

Ao terminar, as mãos nem conseguiam suportar mais a pena que fora jogada de lado num só movimento. Ele levaria o bilhete até a porta do quarto de sua amada ao anoitecer, quando as demais damas de companhia já estivessem submersas no mais profundo dos sonhos e, então, passaria o papel por debaixo do batente para que, com louvor, Elisa se deliciasse das palavras de um estranho. Desta forma, sofreria como ele, arderia a seu lado e seriam amantes calados um do outro.

Ah, Elisa.

Ela gostava de passar os minutos que lhe sobravam entre uma lição e outra ali, bem debaixo da amendoeira mais débil e comum de todo o Brasil. Talvez fosse pela altura do morrinho elevado de terra e gramado verde no qual ela se encontrava, muito embora a moça não fosse grande apreciadora das alturas, ou fosse somente pela brisa fraca do vento fresco de verão combinado àquela vista maravilhosa dos vinhedos de seu pai. A verdade é que, em seu âmago, a jovem criada ansiava por paz e sossego.
Sabia que era um desejo egoísta, principalmente enquanto encarava o suor reluzir em gotas e escorrer pelos rostos dos demais empregados enquanto empenhavam todo o ardor ao Imperador brasileiro. Olhando por este ângulo, cavalgar e estudar inglês e italiano, além de conversar com a madame e lhe fazer rir, mais parecia um pedaço de bolo. Claro que se comparado às lições de álgebra, a moça bem que ia preferir esmagar alguns crânios inimigos e empunhar armas.

Foi num desses dias gostosos nos quais se esquece da vida, que o livro sobre bravos duelos de espadas e donzelas em perigo que estava bem seguro nas mãos de Elisa, escorregou por um momento e foi rolando ladeira abaixo. Aflita com a possibilidade de ser descoberta, desatou a correr atrás do objeto aos tropeços, pois não era muito habilidosa em corridas. Lá de baixo, observando na penumbra segura de um arbusto, jazia Luís que ainda não tivera coragem de dirigir a palavra à serviçal do palácio.

Podem imaginar, então, o quão grandioso se sucedeu quando, com os dedos trêmulos, foi ele quem devolveu o precioso livro à sua dona. Aquela era a primeira vez em que os olhos de ambos conseguiam se conectar e, após tamanha e sufocante espera, não era de se duvidar que a eletricidade trazida pelas orbes cor de âmbar dela fizessem com que as dele suplicassem por contato. Ali aconteceram o primeiro dar de mãos, o mais singelo e inocente tocar dos lábios e a primeira troca de juras de amor.
Luís e Elisa, juntos na amendoeira.
- Por que você tem medo de borboletas? - Ele perguntou.

- Eu não sei... - Em sua miséria existencial, a menina deixou escapar um longo suspiro ao ponderar sobre o assunto. - Acho que é devido ao fato de que uma vez eu li que elas não vivem mais do que vinte e quatro horas.

Sorrindo de um jeito maroto, o capitão jogou a cabeça para trás, encarando o sol que vibrava sobre suas cabeças. - E isso lá é motivo para desgostar do pobre animal?

- É claro que é! – Elisa pareceu ofendida, mas perdoou-o sem que ele se desse conta. Não devia culpar alguém por seus próprios devaneios confusos sobre a vida. - Imagine que as pessoas fossem como borboletas. Eu odiaria ver você estar aqui num dia e no outro não mais. Sempre espero ver aqueles a quem amo do meu lado em todos os dias, enquanto possível. Por qual razão, pergunto eu, algo tão encantador quanto as borboletas deve existir apenas por um período tão curto de tempo?

- Você tem mesmo que pensar na vida de forma tão deprimente?

- Como se você já não estivesse acostumado.

O menino assentiu, caindo em si. Não havia maneira que já não tivesse tentado para fazer aquela cabeça-oca mudar de ideia sem muitas lágrimas e frases mal-entendidas pela frente. E ele não queria brigar, portanto, apenas deixou o corpo pesar para trás contra o tronco de sabugueiro e espichou o máximo que pôde as duas pernas. Aquele seria um dia longo, com ou sem borboletas.

Eles estavam acomodados, afinal. Fizeram amor por horas a fio numa tenda improvisada com lençóis de seda que ela havia roubado do armário do quarto da madame, bem ali, onde os olhares bisbilhoteiros do palácio não poderiam encontrá-los, debaixo da acolhedora amendoeira que, após meses e meses, se tornou madrinha do casal.

Elisa, de apenas dezesseis anos, parecia tão quieta que Luís teve de cutucá-la com o cotovelo levemente algumas vezes para se certificar de que a menina estava viva. Ela não era das mais sérias que conhecera, de fato, às vezes parecia uma explosão de fogos de artifício rodando pelos céus. Naquele fim de tarde, todavia, os olhinhos de âmbar jaziam apertados, como se, internamente, uma batalha se travasse na cabecinha de alabastro da moça.

- E se não formos perdoados? - De repente, como um tsunami gigantesco atingindo a costa, a bela castanha se contorce de forma suave e passa a encarar o moreno com aquelas orbes reluzentes de um dourado faiscante. Estava nítido que o homem não havia compreendido o todo da questão, nesse caso, a jovem Elisa se viu obrigada a enriquecer o questionamento. - Deus irá nos punir por isso, não vai?

Por um segundo, a visão de Luís vagueou nas curvas do corpo adolescente escondido por um mar de cobertores alvos. Nem em um milhão de anos de trabalho árduo ou tortura pesada, ele conseguiria enxergar aquele amor tórrido e proibido como uma coisa suja, amaldiçoada, tampouco impura ou digna de punição. O rapaz sabia muito pouco sobre Deus, afinal, quando se cresce no campo de batalha, tudo o que é aprendido sobre Ele é que não aparecia pela Terra há alguns séculos, dando lembranças apenas aos mais afortunados. Não era assim que queria imaginar o Criador. Gostava de pensar numa figura imensamente bonita e gloriosa, repleta de paixão pela cria e dotada de compaixão infinita. Esse era o seu Deus.

- O quão errados estamos por este pecado, Luís? - Piedosamente, ele cerrou os lábios enquanto assistia a ela escondendo o rostinho esculpido entre as mãos, toda chorosa. Sentia o coração partir ao meio por ter de encarar sua musa dessa forma sem nada o que fazer. Ele tinha de pedir a mão dela ao Imperador que, querendo ou não, era o seu senhor, ainda mais depois de - mesmo com todos os esforços, noites em claro e banhos frios - ter tomado Elisa para si como mulher.

Era esperado que o capitão tivesse uma posição, portanto, com firmeza, afastou os membros dela da face e massageou os pulsos finos com os polegares, numa tentativa desesperada por acalmar sua bela e jovem amada. - Gostaria de ter todas as respostas, princesa. Saber o que é bom ou ruim, salvar-nos dessa incógnita... - Lentamente, aproximou os lábios da testa dela e ali pregou um beijo suave e longo. - Ainda assim, eu devo confessar, estou apaixonado por meu próprio pecado.

Limitou-se a sorrir, sendo retribuído por um outro, vindo dela, tão radiante quanto poderia parecer a mais magnífica das mulheres da Terra. E como Deus, seja lá onde estivesse, poderia punir o amor, ainda mais vindo de uma alma tão pura quanto a de Elisa?


Biografia:
Pisciana, devoradora de livros, chocolates e Froot Loops. Ainda acho que Estrelitas foi o melhor cereal já feito e lamento que tenham fabricado tão pouco do Guaraná Antártica Ice. Formada precocemente no ensino médio e mais ainda na faculdade de Comunicação Social. Só existem três paixões absurdamente claras na minha vida e elas se resumem em: Literatura, teatro e música. Estou tentanto achar um sentido mais claro na vida do que apenas existir, no entanto, fazer isso me basta por enquanto. Complicada, persistente, imatura e apaixonada por travesseiros de penas, papel higiênico de folha dupla, iogurte grego de frutas vermelhas e torradas com nutella. Ladra de bibliotecas, caçadora de obras antigas e verdadeira apaixonada pelo cheiro das páginas velhas. Minha mente é somente violável através do que me permito escrever. Muitas vezes, a coisa foge de controle e as palavras se sobrepõem à vontade, porém, acredito que saberão lidar com isso. Sem mais, Au Revoir.
Número de vezes que este texto foi lido: 52918


Outros títulos do mesmo autor

Contos O Pecado do Soldado Leticia Ferreira
Poesias O Farol de Almas Leticia Ferreira
Roteiros Não se Apaixone por Veronica Prestor Leticia Ferreira
Poesias Lágrimas de Meretriz Leticia Ferreira
Poesias Holofotes em Asas de Anjos Morenos Leticia Ferreira
Poesias Estátua Leticia Ferreira
Poesias No Escuro da Noite Leticia Ferreira
Poesias Cansei de não morrer Leticia Ferreira
Poesias O Louco na Árvore das Amêndoas Leticia Ferreira
Poesias Servo de coração Leticia Ferreira

Páginas: Próxima Última

Publicações de número 1 até 10 de um total de 13.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
JASMIM - evandro baptista de araujo 69005 Visitas
ANOITECIMENTOS - Edmir Carvalho 57915 Visitas
Contraportada de la novela Obscuro sueño de Jesús - udonge 56752 Visitas
Camden: O Avivamento Que Mudou O Movimento Evangélico - Eliel dos santos silva 55826 Visitas
URBE - Darwin Ferraretto 55090 Visitas
Entrevista com Larissa Gomes – autora de Cidadolls - Caliel Alves dos Santos 55030 Visitas
Caçando demónios por aí - Caliel Alves dos Santos 54916 Visitas
Sobrenatural: A Vida de William Branham - Owen Jorgensen 54880 Visitas
ENCONTRO DE ALMAS GENTIS - Eliana da Silva 54798 Visitas
Coisas - Rogério Freitas 54773 Visitas

Páginas: Próxima Última