Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
O Banquete
Solidão mitológica 2
Anderson F. Morales

Vivi a infância e parte da adolescência dentro de uma taberna. Meus pais eram dono da taberna Gato Preto, localizada ao sul de Swdinck. Lá você poderia comer um belo pato assado com cerejas enquanto bebia um excelente gole da cerveja mais amarga do continente. Chegamos a fazer sucesso com tal bebida, o que atraiu uma certa quantidade de turistas de etnias e credos diferentes. Cada um que vinha trazia consigo, além do cansaço e poucas bagagens, muitas histórias. Cresci ouvindo muitas delas e mesmo quando criança, me divertia entre os adultos. A cada viajante novo, a cada palavra nova, a cada lugar desconhecido que passasse a ser descrito para mim, minha vontade de sair dali e me aventurar por um mundo todo novo crescia. E parecia que tudo estava ali, ao trespassar daquela pesada porta de carvalho. Eu só precisaria criar coragem para colocar o primeiro pé para fora.

      Eu havia completado 19 anos e não demorou muito para que as garras da desgraça batessem à porta. Os primeiros raios do sol já atravessavam a janela de meu quarto enquanto eu terminava de me vestir. Foi então que o barulho de cavalos vindos do oeste chamou a minha atenção e de minha janela vi uma nuvem de poeira que se levantava das bandas da cidade de Leiniv. Desci as escadas gritando para acordar a todos, pois pressenti que algo muito ruim iria acontecer. Era o ataque dos bárbaros do oeste que viria a dizimar todo o povoado no qual eu vivia, assassinando grande parte dos habitantes e entre eles o meu pai. Consegui fugir do ataque carregando minha mãe ferida. Corri até onde minhas pernas agüentaram nos levar. Próximo a um rio eu desabei, ainda a tempo de minha mãe pronunciar suas palavras. Desejou me sorte e me deu minha liberdade. Por 5 noites seguidas chorei à margem do Rio Pidoric, onde deixei meus laços familiares irem com a correnteza. Após a partida dos bárbaros fui até a taberna, organizei minhas poucas coisas que me restavam, amontoei-as em uma mochila que pus nas costas e parti para desbravar todo o mundo novo que me aguardava. Ainda consegui algumas pedras preciosas escondidas em um cofre secreto que meu pai guardava próximo à porta de entrada. Um local tão visível que ninguém suspeitava5. Aquilo me bastaria para me suster por algum tempo. Não temia nada, estava por mim mesmo e por fim estaria para realizar aquilo que tanto sonhava: desbravar o mundo. Eu tinha a habilidade necessária para cuidar de minha sobrevivência em um mundo perigoso, já que o manejo da espada foi me treinado por diversos viajantes que passaram pela taberna durante minha infância e adolescência. Conhecia muitos estilos e dominava vários. O Variante do sul, o qual utiliza não só a espada como instrumento de ataque, mas também os pés e as mãos; o Alvordem, que utilizava tudo a sua volta para ataque e defesa; o Relendário com o qual o desconhecido Jökseaum abateu o famigerado Triosdan que assolava as terras de Forgan. Não que meu intuito fosse guerrear com todos que cruzassem meu caminho, como um pirata qualquer. Pretendia utilizar minhas técnicas somente para minha defesa.

      Durante 28 meses vaguei sem rumo. Conheci uma infinidade de culturas diferentes. Amei as mulheres mais lindas com as quais jamais havia sonhado, duelei com uma diversidade inimaginável de rufiões, tipos dos quais povoavam as histórias dos freqüentadores da taberna e que me faziam recorrer ao colo de minha mãe quando criança. Descobri que não eram tão apavorantes agora quanto me pareciam antigamente. Ganhei experiências e comecei a ostentar minhas cicatrizes como medalhas. Cada marca em minha pele me trazia a lembrança de uma batalha e um lugar. Porém, comecei a esbanjar mais do que devia e a ganância foi o meu pecado. Minha boa criação me impedia de cometer qualquer crime, porém tive que passar quase que à mendicância, não fosse a minha habilidade na espada, a qual coloquei a serviço de alguns figurões de centros mercantis, os quais pediam proteções em viagens. Durante uma de minhas empreitadas tive que combater, ao lado de outros dois mercenários, um grupo de ladrões de estrada. Ao fim da luta, um deles, temendo pela vida, deu a indicação de terras ao norte as quais possuíam o maior tesouro já imaginado por qualquer ser vivo. Minha intenção, dando ele ou não a informação, era a de deixá-lo ir embora. Porém meus colegas pensavam diferente e o degolaram, antes mesmo de ele suplicar pela vida pela segunda vez. Rodjnic, o autor da degola decidiu não cumprir o seu serviço e partiu imediatamente para tais terras. Vranail ainda terminou a viagem, porém, partiu imediatamente atrás do tesouro. Rodjnic caiu nas desgraças dos figurões por ser mau cumpridor de obrigações e virou alvo de cárcere. Minha ganância, que havia sossegado ao ter conseguido tal emprego, reapareceu junto da época de vacas magras aliada aos boatos de minha brutalidade no cumprimento dos meus serviços, o que terminou por colocar-me no caminho da cidade de Pitriniac, onde, segundo aquele ladrão de estrada, repousava um grande tesouro.

      Não sem fadigas e trabalho, cheguei a Pitriniac, depois de um ano. Era noite; percebi que os homens que atravessavam meu caminho me olhavam com curiosidade e uma ou outra pedrada me atingiu. Era um povo rústico que desconhecia o uso da pena, do chifre de tinta e do pergaminho. Povo que morre de gripe e teme as tempestades. Cultuam deuses diferentes e ainda exercem a prática do sacrifício. Vi o resplendor de uma taberna e entrei. O taberneiro me ofereceu albergue para a noite. Sua língua era mais ou menos a minha. Trocamos algumas palavras. Soube que eram tempos difíceis para aquele povo, recém havia finalizado uma batalha. Para completar, seu rei, Goubort, estava doente e que costumavam crucificar os forasteiros caso eles não aceitassem sua proposta. Para evitar este destino, menos adequado a um homem que a um Deus, quando dois homens vieram pela manhã decidi aceitar que me conduzissem até à sua fortaleza, mas não lhes entreguei minha espada. Levaram-me até um rei moribundo o qual estava cercado por homens em suas barbas longas. Mandaram-me que me aproximasse, pois o rei tinha algumas palavras para me dizer. Ao aproximar-me do rosto dele, senti uma certa familiaridade, a qual não conseguia explicar. Seu rosto já me havia aparecido em sonhos.

      - Tu, forasteiro, que em minha porta bate, talvez enfeitiçado por lendas dos tesouros que aqui possuímos, ou em buscas das mais puras donzelas que sob meu teto guardo, tu, forasteiro, terás a partir de hoje uma única missão, a qual se for cumprida será recompensada com o maior tesouro que pode existir. Cura-me e não lhe serei injusto.

      Não tenho os dotes de curandeiros, mas durante as minhas andanças muito vi e muito me curei. O corpo do rei estava muito escamado e possuía algumas manchas violáceas próximas aos punhos e aos tornozelos. De imediato lembrei-me de minha cicatriz próxima ao mamilo esquerdo e visualizei a casa do curandeiro Horácio das bandas sulistas, na qual agonizei por algumas noites. Ao meu lado, se encontrava em recuperação um velho que apresentava as mesmas características que tal rei. Mais que imediatamente, pedindo licença a todos, anunciei minha partida em busca da cura. Pedi-lhes que me dessem tal voto de confiança, pois ao final da primeira lua cheia, eu estaria de volta e com a solução do problema. O rei iria agüentar o tempo necessário para que eu empreendesse minha busca. Parti levando as esperanças de novos tempos para aquele povo e uma promessa de um grande tesouro para mim.

      Minha empreitada foi tão árdua quanto imaginei. Não convém discorrer das dificuldades enfrentada no caminho, mas sim o que me aconteceu ao chegar às bandas sulistas. Encontrei Rodjinic, que estava à procura do mesmo remédio que eu. Não sei como ele chegou até lá, mas sei que demorou bastante, pois fazia tempo que havia partido. Sabendo que tínhamos os mesmo interesses, desafiou-me a um duelo de espadas. Tentei negociar nossa situação, sem sucesso. Tive que mostrar-lhe por que apesar de carregar tantas cicatrizes, possuía uma grande habilidade. Perfilei a minha vasta sabedoria na espada e acabei por trespassar-lhe o coração com um pequeno punhal que eu guardava junto ao tornozelo. Terminada esta batalha, pedi a Horácio a cura da doença do rei. Incumbiu-me de procurar a flor estrela-de-prata, a qual era essencial para a confecção de tal remédio. Durante duas noites atravessei as montanhas geladas de Sjilonk à procura de tal planta. No fim do terceiro dia achei e voltei rapidamente. Com o remédio pronto voltei para as terras de Pitriniac, já com a mente povoada com planos para se realizar depois de colocar a mão nos famosos tesouros da cidade.

      Após ministrar o remédio e prova-lo para demonstrar que eu não queria envenenar ninguém, dei-o ao rei e prometi-lhe que dentro de três dias as feridas iriam iniciar a cicatrizar, o que de fato ocorreu. Ao fim de cinco dias de espera o rei me chamou em sua sala real, tudo indicava que eu havia cumprido a minha parte e que ele iria cumprir a dele, porém um mau pressentimento me acompanhava. Quando entrei na sala e pude realizar o rosto do rei já curado, tive uma terrível revelação. Era o rosto do rei dos bárbaros que invadiram meu povoado e assassinaram meus familiares. Eu acabava de curá-lo. Porém, minha sede de sangue se fez presente e decidi aguardar o melhor momento para passá-lo no fio de minha espada. Logo ele começou a falar:

      - Tu, forasteiro, mostraste nobre e fiel. Cumpriste tua palavra e agora chegou a hora de eu cumprir a minha. Lhe daremos o maior tesouro de nosso povo, a presença no banquete de Ogorij, nosso Deus.

      Minha raiva era tanta que não pude notar as dúzias de soldados que me cercavam. Nem todos meus estilos de luta foram suficientes para me salvar. Em poucos segundos uma lâmina afiada separava minha cabeça de meu corpo.


Biografia:
Escritor em nível de formação desde 2000. Estudioso de Borges e partidário deste mestre, tenta, em vão, escrever obras de literatura fantástica na linha borgiana. Além da influência platina, apresenta uma personalidade heterônima, postando contos com outros nomes. Atividades complementares como professor de literatura e técnico em perícias criminais.
Número de vezes que este texto foi lido: 60031


Outros títulos do mesmo autor

Contos Obra ° 23 - ao Desespero Anderson F. Morales
Contos O Banquete Anderson F. Morales
Contos Metal Nos Olhos Anderson F. Morales
Ensaios A Monotonia Anderson F. Morales
Contos As Três Confrarias Anderson F. Morales
Contos O Espelho Circular Anderson F. Morales
Contos Pisadeira Anderson F. Morales
Contos There's No Way Out of Here Anderson F. Morales
Contos Situs Inversus Anderson F. Morales
Contos Por um saquinho de vales-transporte Anderson F. Morales

Páginas: Próxima Última

Publicações de número 1 até 10 de um total de 14.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
RECORDE ESTAS PALAVRAS... - MARCO AURÉLIO BICALHO DE ABREU CHAGAS 61721 Visitas
Fragmento-me - Condorcet Aranha 61657 Visitas
PRA LÁ DE CAIPIRA - Orlando Batista dos Santos 61565 Visitas
RODOVIA RÉGIS BITTENCOURT - BR 116 - Arnaldo Agria Huss 61523 Visitas
LIBERDADE! - MARIA APARECIDA RUFINO 61432 Visitas
🔵 SP 470 — Edifício Itália - Rafael da Silva Claro 61123 Visitas
É TEMPO DE NATAL! - Saulo Piva Romero 60148 Visitas
Naquela Rua - Graça Queiroz 60092 Visitas
O Banquete - Anderson F. Morales 60031 Visitas
ABSTINENCIA POÉTICA - JANIA MARIA SOUZA DA SILVA 60022 Visitas

Páginas: Próxima Última