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Estranha força
Yan Ribeiro

Há muito tempo desde a última vez em que me vi refletido no espelho. Resolvi parar quando já não mais me reconhecia. O fulgor de minha alma tivera sido varrido junto às memórias que lutei tanto para esquecer e que agora me encontro a remoer dia após dia, como se minha consciência tentasse compensar o tempo em que as mesmas se ausentaram. Lembrar do passado faz-me reviver as noites em que o terror foi minha principal companhia, aos sons que pareciam rastejar pela escuridão até aconchegarem-se no fundo dos meus ouvidos. Lutei por muito tempo antes de me entregar à atmosfera maligna que me perseguia pelos cômodos do meu apartamento, como se me fizesse um convite, que só cessaria quando eu finalmente me entregasse. Não cessou. Minha nova companhia pareceu criar forças à medida em que eu me acostumei com sua presença, os ruídos e os sussurros tornaram-se mais frequentes a cada dia. É impossível explicar com quem ou o que eu estava lidando, visto que não era algo material. Era algo dotado de uma energia densa, que ao primeiro encontro conseguiria estremecer o mais cético dos homens, mas que, depois de acostumado e movido pela curiosidade, me vi seduzido pela estranheza de tal força sobrenatural.

Demorou um pouco até que me acostumasse por completo com a nova companhia. Despertava várias vezes durante a noite sentindo como se dezenas de olhos me observassem da escuridão do meu quarto, sentia como se estivesse acompanhado em qualquer cômodo que fosse, cheguei a ouvir palavras que por mais que tentasse não conseguia entender. Mas essas sensações de terror não duraram muito tempo, logo nossa convivência se tornou completamente harmoniosa como se a partir do momento em que eu a aceitei, a mesma se viu na obrigação de me proporcionar conforto na solidão física em que acabei me encontrando. Fui me distanciando do contato humano. Saía de casa uma ou duas vezes por semana, apenas para ir ao mercado. Deixei de receber visitas de parentes e amigos, que alegavam um demasiado desconforto assim que entravam em meu apartamento, o que pouco me importava já que companhia aqui dentro não me faltaria. Esse foi meu pensamento durante algum tempo. A força parecia ter me tomado por inteiro, sua presença era tão frequente quando a de minha sombra.

Em pouco tempo comecei a notar a mudança em minha aparência, um aspecto pálido que começou a tomar conta de toda a minha pele. Já não sentia fome e consequentemente perdi muito peso, meus olhos fundos refletiam cada vez mais minha fraqueza. Foi quando comecei a notar que essa mudança não era por acaso. Já havia percebido que com o passar do tempo a força parecia se tornar mais poderosa, mais ativa, o que coincidia com a minha fraqueza. Será que ela estava se alimentando de mim? Me perguntei. Obtive a certeza pois meio a esses pensamentos ela se tornou cada vez mais violenta. Nossa conexão se tornou tão forte que, de algum modo, ela conseguira invadir minha mente, tendo acesso a cada ideia que passava pela minha cabeça. Até então eu não tinha conhecimento desse poder, mas agora não me restava dúvidas diante de sua reação em relação aos meus pensamentos. Objetos sendo derrubados no chão se tornaram tão frequentes quanto as portas que batiam com força sozinhas. Minhas noites se tornaram recheadas de pesadelos, ouvia palavras sendo sussurradas nos meus ouvidos em um tom ameaçador, acordava com medo e com a mesma sensação que sentira antes, de estar sendo observado. Ela não se preocupou em esconder seu descontentamento, deixava claro a raiva que sentia por eu ter descoberto quais eram seus reais interesses. Meus dias tornaram-se insuportáveis, vivia com a sensação de que estava sendo ameaçado. Não conseguia sair de casa, um mal-estar tomava conta do meu corpo assim que eu pisava fora do meu apartamento, me obrigando a voltar e se entregar ao medo novamente. Minha saúde estava praticamente esgotada, parecia que agora a força a sugava em dobro para alimentar também o seu ódio. Pensamentos cada vez mais tenebrosos tomavam conta de mim.

Acordei de um pesadelo no meio da madrugada. A calma e o silêncio em que meu quarto se encontrava era um alívio, que deu lugar ao desespero assim que fechei meus olhos novamente. As vozes se tornaram mais altas, agora pronunciavam várias palavras ao mesmo tempo, que preenchiam meus ouvidos em um som insuportável. Todas as portas da casa pareciam bater ao mesmo tempo, agora eu sentia não mais uma presença e sim várias. Me levantei da cama guiado pelo medo, as luzes deixaram de funcionar, caminhei na escuridão até a sala onde fui recebido por vultos escuros me rodeando pelas paredes. Isso não teria um fim. Diante de tamanho desespero, não vi outra saída a não ser acabar com a minha vida. Tentei lutar contra os pensamentos suicidas que tomaram conta da minha mente, mas não aguentaria nem mais um dia nesse inferno, já havia me esgotado. Chorei em pé diante da janela, enquanto as vozes se multiplicavam e pareciam me guiar ao meu destino final. De olhos fechados eu pulei. Os milésimos de segundo em que me encontrei em queda foram um alívio total.

Não me lembro do impacto do chão. A sensação foi de que eu havia entrado no sono mais profundo que já tive, um sono sem sonhos onde tudo era escuridão. De repente, me vi acordado em meu quarto. Não podia ser! Pensei que tudo não havia passado de um pesadelo, mas algo havia mudado, não sentia mais presença alguma. Senti-me aliviado por isso e tentei dormir novamente, foi impossível. Assim que eu parecia estar adormecendo meus olhos se abriam involuntariamente. Nunca havia experimentado tal sensação, tentei em vão por muito tempo até desistir. Levantei da cama e caminhei até o banheiro, não consegui ver meu reflexo no espelho pois as luzes da casa não funcionavam, assim como em meu pesadelo. Acreditei que era apenas uma coincidência. Cheguei na sala, onde as janelas se encontravam totalmente escancaradas. Estremeci por completo. Nunca dormia com as janelas da sala abertas, não poderia ser só mais uma coincidência, a tal força estava me pregando uma peça, pensei. Andei em direção a elas para fecha-las e por algum motivo tive vontade de olhar para baixo. Foi a sensação mais desesperada que já havia sentido. Meu corpo jazia na calçada envolto a uma poça de sangue, que ainda escorria. Tornei a olhar para baixo, meu corpo continuava imóvel no chão da calçada, confirmando que esse não era mais um truque da minha mente perturbada. Resolvi fugir, corri até a porta e ao abri-la me vi novamente dentro do meu quarto. Tentei de novo, e de novo... Não havia saída. Pareci ter entrado em um pesadelo sem fim. A única opção que tive foi de aceitar.

Agora tenho conhecimento das reais intenções da tal força. Quando dei fim a minha vida pareci liberta-la de seu destino temporário e de algum modo ela me colocou em seu lugar. Mesmo depois do terror que eu havia passado nos últimos tempos esse destino agora seria meu. Um castigo seguido de outro. Não tenho noção de quanto tempo já se passou, os dias agora parecem ter o dobro de horas. Enquanto vago pela escuridão desse apartamento e volto a refletir sobre aquela estranha força que me seduziu não a julgo, nem a considero tão maligna, pois agora compartilho dos mesmos sentimentos que ela. Anseio pela primeira pessoa que vá aparecer para me libertar desse pesadelo.


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