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  Texto selecionado
Leite Moço
Fernando Barreto de Souza Filho

Resumo:
Uma saga urbana.

Capítulo 1- SNIFFIN’ GLUE

Nós somos aquilo de que gostamos. Essa convicção bastava para que Thales fosse sempre absolvido em seus julgamentos particulares, onde ele era o réu e juiz ao mesmo tempo. A princípio era uma convicção que valia principalmente para música, cinema e literatura, mas que poderia ser adaptada para todo o resto.

Quando completou 30 anos de idade, Thales saiu de seu apartamento de classe média na Pompéia para viver no centro de São Paulo, num prédio na Avenida Rio Branco, entre as ruas Aurora e Vitória. A casa de sua avó paterna, falecida naquele período lhe rendeu uma quantidade de dinheiro que ele julgou ser suficiente para fazer algum investimento durável, ao mesmo tempo que aquela grana parecia muito curta para farrear de verdade. Não valeria a pena.E quando finalmente o vigor da juventude começou a dar lugar ao cansaço e às desilusões da meia idade, então a importância do grande número de discos de vinil nas prateleiras na sala de Thales, bem como a habilidade com as palavras que ele pensava ter e o seu talento para sentir o máximo de prazer com futilidades começaram a se dissipar rapidamente.

O desprendimento com os poucos bens materiais que possuía e estimava desde a mais tenra idade parecia crescer na mesma proporção que o número de cabelos brancos que surgiam em meio a sua vasta cabeleira, que não muito tempo antes era tão imponente quanto a de seus ídolos musicais setentistas, quando estes também eram jovens e ostentavam ostatusde semideuses, inatingíveis, milionários, no auge de suas carreiras. Trancados em suas mansões e passavam o tempo pouco ligando para o público que o sustentava.

Se para eles o passar do tempo e a conseqüente decadência foi implacável, o que seria de Thales quando ultrapassasse a barreira dos 40 anos? Havia o agravante da falta de dinheiro e de perspectivas, algo que provavelmente não preocupava os ídolos do Hard Rock e do Rock Progressivo antes que o surgimento do Punk Rock os varresse do caminho do sucesso comercial e os consagrasse como velhos hippies arrogantes. Alguns dos dinossauros sabiam que eram bons o bastante para não saírem de circulação, mas nunca mais conseguiram manter de pé as manias megalômanas da primeira metade dos anos 70.

O que ficou de relevante na memória quando se pensa nessa gente hoje em dia é que do jeito que ficaram com a idade e com os excessos, e pudessem escolher, voltariam à mídia com uma postura diferente, menos arrogante e mais próxima de seu público, como humanos mais comuns. Alegam que nos anos 70 eram imaturos. No entanto, os que ainda vivem provavelmente devem estar tomando remédios controlados e olhando diariamente e com muito saudosismo para a coleção de discos de ouro nas paredes e fotos de 40 anos atrás. Agora, ao invés de turnês mundiais milionárias eles fazem shows esparsos, vindo inclusive ao Brasil, para pagarem suas contas de luz e não terem cortada a energia de suas casas. Ainda assim, não levam uma vida cotidiana comum, como a grande massa proletária humana ao redor do mundo. Provavelmente não são obrigados a acordar cedo e saírem correndo de suas casas para trabalharem em repartições públicas. Há tempo para cuidarem de jardins em suas casas compradas nos tempos de vacas gordas e dedicarem-se a outros passatempos saudáveis.

Para Thales, a intolerância com os jovens que sabiam menos sobre a vida, sobre cinema e sobre música, somada à desolação que sentia ao pensar em como seria sua vida quando atingisse a idade avançada dos que sabiam mais, formava uma mistura explosiva para seu humor instável. Por mais estúpido que pudesse ser o não conformismo com o avanço da idade, Thales sabia que algumas coisas em seus hábitos mudariam, fosse por sua própria vontade e coerência, ou por imposição da vida. Ele havia tentado criar desde cedo em sua vida uma atmosfera naturalmente jovem, e seus amigos mais novos podiam trazer isso a ele, de uma certa forma. Thales quisesse ou não, esses jovens muito provavelmente povoariam o planeta quando ele próprio já não estivesse por aqui.

A melhor imagem do futuro é a da falência do tempo presente, e o tempo presente havia indubitavelmente falido. Mas era um período em que ele podia perder facilmente a esportiva e ser verdadeiramente rude e grosseiro com quem o chamasse de bipolar ou cogitasse a possibilidade dele ser vítima dessas doenças mentais modernas. Para ele a coisa toda era mais simples do que nomear doenças novas: quando tudo corria bem e as coisas aconteciam do jeito que ele queria, seu humor era bom e quando era obrigado a fazer algo que não gostava ou quando as coisas aconteciam de modo que o desagradasse ele se tornava um tipo de sujeito intratável.

A mais jovem representante do que Thales considerava ser uma conspiração contra ele era Paloma. Viciada incorrigível em cocaína, ela entrou em sua vida por razões que nada dependeram de sua vontade. Confundia o Ron Wood com o Rod Stewart.

_ Por aqui só vende pedra, minha filha! Não conheço ninguém que venda cocaína. – disse Thales.

_ Me empreste só 10 reais, amanhã te pago em dobro!! – disse Paloma.

_ Não se trata apenas disso! O fato é que eu parei com a cocaína e não sei quem vende por aqui. Não tenho esses contatos porque não preciso mais deles. Só tem crackeiro nessa área. Gente que procurava compensar a maioria dos outros vícios num só. Por isso de qualquer forma não bastaria eu te dar o dinheiro, seria preciso que eu fosse com você comprar a droga. Não vou sair de casa agora nem a pau. Pra mim é um inferno ter que lidar com a nóia de uma juvenil alucinada. Estou tentando lidar da melhor maneira com o fato de estarmos num domingo à noite, o que é algo bastante desolador. Eu queria comer uma pizza e gastei nela o resto do dinheiro que eu tinha. Eu sei que se você tivesse a grana pra comprar sua droguinha não me daria um centavo pra comer nada. Além do mais você teria que descer aí na Cracolândia pra procurar por algum pó e só acharia porcaria, porque aqui só tem rocha mesmo. Eu não desceria na rua agora atrás disso em hipótese alguma. Caso você tenha uma crise de abstinência e me atormente não vou relutar em te colocar pra fora. Você é uma nóia, viciada nesse pó do Centro, que só tem bicarbonato. O vício descontrolado está pegando todos os meus amigos. Estão se tornando zumbis, como todo o resto da população. Eu achava que tinha sorte por ter amigos razoáveis, que estavam um pouco acima da média. Mas isso está se perdendo e eu não tenho mais sossego. Malditos zumbis!! – disse Thales.

_ Quero 10 reais só pra dar uns tirinhos, estou fodida na vida, deprimida! Pra que servem amigos, porra? Só pra me esculachar quando preciso de ajuda? Vai Thales, eu sei que você tem dinheiro! Preciso muito!! – disse Paloma.

_ Você deveria saber que eu não tenho tempo a perder com essa patifaria. Eu nem ao menos gosto de conversar. Você está vendo alguém aqui além de nós dois? Qual é a razão da sua presença? Somos amigos? Eu não apostaria nisso. Se eu te desse a grana você teria que descer lá sozinha mas eu sei que você pediria pra que eu fosse junto. Desça sozinha e troque sua vagina preciosa por cocaína. Você é pouco mais que uma adolescente e eu tenho 37 anos. Sei que meu cabelo comprido e o fato de eu ser solteiro me dão um aspecto mais jovem, mas isso de maneira nenhuma faz de mim um cara tolerante com a patifaria que é a existência de humanos jovens. Há 15 ou 20 anos atrás eu não era desse jeito. Eu já tinha dito pra você antes que penso que sua geração jamais deveria ter sido concebida. Pensar que eu tenho idade pra ser seu pai me dá arrepios nas profundezas da alma. Eu adoraria ser amigo da sua mãe, que era jovem quando você nasceu, do que ter você atrás de mim só porque era namorada de um amigo de infância que mudou do país. A diferença de idade que há entre sua mãe e eu é menor do que a diferença de idade que há entre você e eu. Mas eu pago um preço alto pelo fato de ela pensar que por eu ser próximo a você, eu apóie suas atitudes e seu estilo de vida. Eu não entendo muito bem a razão do vínculo afetivo que você criou com os amigos que seu ex-namorado deixou pra trás. Não posso responder pelos outros, mas estou reclamando disso agora porque não são os outros que estão tendo que tomar conta de você. Onde quer que estejam agora, e independente do que estejam fazendo, eu penso que devem estar melhores que eu. Talvez nas casas deles seus pais tenham pedido pizza para encerrar o fim de semana com alguma dignidade. Você vai me fazer o favor de não me tirar do sério porque estamos num domingo à noite e amanhã já começa meu pesadelo novamente. Eu consegui parar co a porra da cocaína. Não me importo com o que as pessoas fazem com suas vidas, mas a essa altura já não posso mais permitir que o desequilíbrio juvenil me desestabilize. Tenho prioridades bem definidas hoje em dia. Quero trabalhar duro no meu projeto literário. Devo agradecer a vocês por me fornecerem material para a escrita, porque vocês são burrinhos e decadentes. Se eu precisasse de um real pra inteirar uma garrafa de uísque eu sei que não teria isso vindo de você, por exemplo. – disse Thales.

_ Vou dar um rolê. Quem sabe não encontro algum amigo em algum bar. Eu pensava que meus amigos não eram como a minha família, que faz tudo errado. Hoje cedo vi o meu pesadelo se concretizar novamente! Acordei deprimida porque era dia de faxina. Ah, porra... Você deveria saber o pesadelo que é estar na minha casa numa manhã doente de faxina. Aquela pângua pedindo pra eu acordar e desocupar o quarto e depois indo pra lá e pra cá, ocupando o banheiro pra limpar, me atrapalhando enquanto vejo televisão, falando tempo todo de Jesus, e cagüetando pra minha mãe tudo que eu faço. – disse Paloma.

_ Olhe, não me tire do sério, filha! Vá imediatamente pra rua mesmo! Jogue sua vida na vala comum dos zumbis do centro. Você não serve nem pra me apresentar umas amigas suas... Assim que você sair eu vou interfonar pro porteiro pra ele não deixar você entrar de novo no prédio. Você vai encontrar um monte de nóias e no desespero da abstinência vai acabar fumando pedra, vai gostar e vai ficar aí na rua, dormindo pelada na calçada, enrolada num cobertor imundo. Você pode apostar que eu não vou te resgatar e ainda vou usar todas as histórias que você viver como nóia pra enriquecer as tramas que estou desenvolvendo pro meu livro. Se você sair eu não vou abrir a porta caso você volte. Eu aconselharia você a ficar sossegada, fumar um baseado e dormir. Mas já que quer sair, vá. Só não me alopre porque terei uma semana tenebrosa pela frente. Não tive tempo de me recuperar física e emocionalmente do caos que foi minha semana passada no trabalho. – disse Thales.

_ Você é um egoísta filho da puta. Você está se afastando de todas as pessoas porque tem um ego inflado pra caralho! E você é uma porra de um hippie metido a alternativo! Quer ser maior que o mundo! – disse Paloma.

_ Eu odeio hippies com toda minha força! Tenho pavor de hippies que me vêem por aí e pensam que também sou hippie. Quase todos os dias tem algum hippie imundo me pedindo cigarro na rua. O que mais me deixa puto é o fato de que esses lixos humanos nunca pedem cigarro pra nenhum engravatado. Isso eu já pude constatar. Eles acham que comigo a chance de terem o pedido negado é menor, quando na verdade é exatamente o contrário. Devem pensar também que comigo o diálogo é mais fácil, e aí também o que acontece é o contrário. São como fantasmas inexorcizáveis. Infelizmente esse país é propício para que ainda existam humanos com tendências hippies. É propício por razões difíceis de serem explicadas. São razões relativas às características do nosso povo, que joga fora suas raízes e sua essência e absorve erroneamente e com atraso as tendências dos outros países. E eu odeio hippies não só pelo estilo de vida ou pelo gosto musical ou pelo fato de odiar individualmente todos os hippies que eu conheço. É muito mais pela completa inviabilidade de ser hippie hoje em dia, principalmente em São Paulo. Com a falta de tempo, a relação caótica que tenho com as pessoas no meu cotidiano, as chateações da cidade grande, com essa vida desgraçada que levamos aqui como alguém pode cogitar ser hippie? Você é que é uma hippie viciada que fica me pedindo dinheiro pra comprar droga. E ainda pede essa grana dizendo que eu deveria levar em conta o fato de sermos amigos... Vá ali embaixo dar um role na Cracolândia agora!

_ Você também gosta de drogas, seu hipócrita do caralho! Só porque ficou mais velho fica pagando de responsável! – disse Paloma.

_ Eu sempre fui mais velho que você, que nasceu quando eu tinha 14 anos. A diferença é que antes eu era mais jovem e você era uma criança, portanto não convivi com você na minha juventude e antes disso, quando eu era adolescente, você não tinha nascido. Eu sei que talvez você esteja se referindo ao fato de eu hoje ser mais velho do que eu mesmo quando tinha a sua idade. De qualquer forma você não me conhecia nessa época. Você era criança, andava noplaygrounddo seu prédio com o uniforme da escola. Quando se é muito jovem, envelhecer parece algo ser terrível, mas depois você se acostuma, ou pelo menos aceita isso mais facilmente para não gastar energia de maneira inútil com algo que não podemos evitar. Eu reduzi o consumo de drogas a um nível tolerável. Quando eu era jovem o bastante para fazer as coisas estúpidas que você faz, eu preferia comprar discos e livros. Deixei de ser um bebedor imoderado pra tentar me concentrar mais em algo produtivo. Nem sei quanto tempo da minha vida eu passei encostado em balcões de bar, mas sei que poderia ter ganho um Nobel de Literatura caso tivesse usado o tempo exercitando meu intelecto. Hoje eu realmente prefiro gastar meu tempo com coisas mais saudáveis. Ainda bebo, mas seria ridículo se eu continuasse do jeito que eu era quando tinha a sua idade. Minha época de balbúrdia não coincidiu com a sua, eu sinto muito por você não ter vivido aquela época. Hoje estaria morta ou teria se convertido numa humana melhor. De qualquer forma você não merece mesmo ter vivido aquele período, quando George também era jovem. Você é tão vil que é capaz de roubar seus amigos e colocar tudo a perder em nome do seu vício. Ninguém se torna um Keith Moon só por jogar televisões pela janela ou por fazer orgias ou entrar com carros caros na piscina ou por beber e se drogar excessivamente. Ele precisou ser o baterista do Who antes disso e deixar gravados discos que nunca vão envelhecer. Você inverte a ordem desses fatores e fica na nóia da abstinência reclamando que dá tudo errado e que há um complô contra você e que seus amigos são inúteis e não te compreendem... Eles de fato o são e sempre chega uma hora na nossa vida que a gente vê que é burrice perder tempo se lamentando com isso, por mais triste que seja essa realidade. Eu até aprecio algumas dessas coisas loucas como um ritual que não seja tão habitual. Eu sei que toda vez que eu censurar abusos na minha casa serei considerado um pária, mas eu não me importo. Você é uma ribeirinha inexpressiva e quando quiser desaparecer pra sempre do meu convívio você pode apostar sua vida que eu não vou atrás. Não sei porque você pensa que existe qualquer tipo de vínculo afetivo ou de amizade entre a gente. Pense que você é uma filha que nasceu por um acidente, porque teve pais hippies que transavam doidões numa época inconseqüente da vida deles. Você é para eles um problema irremediável, e para mim não tanto. Esforce-se um pouco para não me tirar do sério. – disse Thales.

_ Você é mais velho que eu e nunca me deu uma porra de um conselho! Desde o tempo em que o George estava aqui você me despreza!

_ Sim, eu te desprezo desde que te conheci, te desprezo mais do que seu inimigo mais vil e nem por isso fiquei te perseguindo com moralismos típicos de gente adulta que passou da época de viver chapado para depois se tornar alguém focado em coisas mais importantes ... Você freqüenta minha casa no embalo dos antigos amigos do George. E por que diabo de razão você acha que eu sou homem de dar conselho pra alguém? Caguei a vida toda pra todos conselhos que me deram! E mesmo assim, o montão que já te falei hoje e desde que te conheço não serve de conselho? Se eu tivesse dito que ler é bom, você pegaria um livro do Günter Grass pra ler? A principal coisa que há pra se aprender com livros é que a tranqüilidade, a concentração e a disciplina são indispensáveis pra que a gente se sinta melhor. E o que você faz é procurar exatamente pelo contrário. Eu gosto de ver gente como você fazendo tudo errado e pagando por isso. Só não gosto de dividir as conseqüências.

_ Mas agora é tarde, minha vida está destroçada! Você é um hippie cachaceiro e metido! Não vai te sobrar nenhum amigo! Estou tão amargurada que quero explodir!

_ Então dê um jeito de arrumar pó que isso vai consertar sua vida na mesma hora! Não pense no que vai acontecer depois que você cheirar tudo e quiser mais e mais e mais. Pode ser que por alguma espécie de milagre você ressurja como uma humana decente ao invés de descer ao fundo do poço, bem ali embaixo onde está tudo sujo e molhado e escuro e frio. Em vez de ler livros e aprender sobre a vida ou sobre música ou sobre o que quer que seja ou até mesmo usar o tempo pra fazer umas músicas legais, você fica atrás de cocaína pra consertar o jeito como você se sente. A vida em São Paulo é uma guerrilha. Se você quiser ser hippie aqui pagará o preço. Provavelmente esse preço será a decepção por não conseguir ser uma hippie plena. Eu não sei o que te ensinam naquele grupo de teatro que você freqüenta, mas isso fez de você uma atriz ruim, uma atriz cujo drama é mal interpretado, dramas burramente encenados. Você não tem qualquer talento par a arte. Não foi por falta de bons professores. Você tem amigos que são ótimos atores sem jamais terem freqüentado esses grupos de teatro desprezíveis. Tem as meninas da sua banda, que tem um gosto musical bem melhor que o seu. Tem essa grande coleção de discos aqui em casa, que eu montei ao longo da minha vida... Eu sei qual é a sua. Só que você adapta muito mal seu aprendizado ruim para esse palco ordinário que é a vida. Eu odeio teatro, mas você é um caso à parte.

_ Vá tomar no cu, pra falar mal de teatro você deveria produzir alguma coisa que preste na área artística! Você gosta de cinema de Hollywood, né, seu tosco! Teatro é vida e cinema é um produto!

_ Esse papo de hippie é asqueroso. Eu produzo sêmen com espermatozóides rebeldes e selecionados, minha filha, de modo que você não pode dizer que não produzo nada... E o que você entende por arte são esses artesanatos hippies e peças de teatro encenadas por hippies que gostam de MPB... Eu gosto de cinema alternativo, não gosto de Hollywood, e isso que você falou sobre vida e produto certamente é algo que você decorou e fica repetindo. Aprendeu naquele grupo de teatro. Porque não pede dinheiro pra algum daqueles hippies? Aqueles hippies idiotas de barba que reclamam que o governo não lhes dá dinheiro. São hippies estatais... Que gente desprezível... Eu escrevo meus livros e o fato de não ser lançado por nenhuma editora não faz de mim um artista melhor ou pior. Meu ponto fraco provavelmente é não saber lidar com a rejeição de várias editoras para que na bilionésima tentativa eu tenha algum êxito. Ninguém pode contestar o fato de que esses livros foram escritos. Sou o verdadeiro alternativo.

_ Você odeia tudo, vá se foder! Você fala desse livro há anos, é pretensioso, quer ser maior do que o mundo, quer que surja um editor na sua porta pra salvar a porra da sua vida! Você é um mala do caralho! Fique lendo Madame Bovary enquanto seus amigos estarão te esquecendo e você verá como é um estúpido por ter colocado tudo a perder!

_ Odeio tudo e tenho obsessão por destruição em massa e assassinatos em série. Odeio sobretudo as famílias brasileiras e as razões pelas quais elas são constituídas. Odeio gente que não tem cultura, e meus amigos sérios leram meus livros na tela do computador. O conteúdo está na internet. Não estou desesperado para lançar em material impresso. Minhas inclinações literárias são mais importantes que o sucesso. Vou fazer de tudo pra ser o melhor escritor do Brasil. Você não gosta de ler. Você gosta de MPB e monta banda de rock... Que lixo, que contradição infeliz... Queria desintegrar e ser esquecido! Queria ser só espírito! Queria ter uma liberdade total, algo que esse corpo de carbono me impede.

_ Tá vendo, seu escroto! Isso aí é seqüela de droga! E ainda fala que eu sou a nóia!

_ Sim, e essa conversa começou com você me pedindo dinheiro pra comprar pó... Eu não sei porque você freqüenta a minha casa, nós nos conhecemos por razões que não tem nada a ver com afinidade entre a gente... E você também é o resultado de um problema com drogas. Seus pais estavam muito loucos quando você foi concebida, ou então foi muito azar mesmo. Porque você não arruma amigos da sua idade?

_ Ah, muito obrigado por ser tão fino! Está me expulsando da sua casa?

_ Você quer que eu soletre o que acabei de dizer? Você deveria ir embora por uma questão de amor próprio. Já te disse várias vezes que você deveria sair pra ir atrás do que você quer ao invés de ficar me chateando e causando danos tenebrosos para o meu sossego e para minha qualidade de vida... Eu sei que você sabe que eu não sou como os caras que ficam te adulando e te mimando, e quero aproveitar esse momento pra dizer que isso não vai mudar. Você pode tentar me amaciar quanto você quiser, mas nunca vai conseguir. A minha vontade de discutir com quem quer que seja é tão pouca que se você não tivesse falado comigo eu a deixaria ficar aí jogada na sala da minha casa só pra não ter que conversar sobre a sua ida para a sua casa ou para qualquer outro lugar que não fosse o meu apartamento minúsculo. Você provavelmente não saberia dizer se sua família te abandonou ou se foi você quem os abandonou. Nunca ouço você falar sobre ir para a sua casa. Você é uma humana que estampa em palavra não ditas a inviabilidade de se ter uma família. Se você realmente tivesse uma a teria destruído. E o pior de tudo é que você gosta do conceito de família, você acredita nele, tem e ao mesmo tempo não tem uma... Você sonha em constituir família, pra emporcalhar ainda mais o planeta com crianças alucinadas. Só que seu vício nesse pó ruim do Centro vai corroer seu útero e aí alguma justiça terá sido feita!

Paloma pegou sua bolsa e saiu de maneira afoita. Era sempre com atraso que ela percebia que seu silêncio poderia ser mais rentável para ela do que seus argumentos, principalmente quando o oponente nos duelos verbais era Thales, que não se deixava impressionar pela graciosidade da garota, que fazia outros caras se deixarem enganar pela jovem. Se a Joan Jett quando jovem fosse um pouco mais hippie seria parecida com a Paloma da primeira década do século 21. Ela queria ficar ali falando palavrões por mais algum tempo, mas de repente se preocupou por ter-lhe ocorrido o fato de ser menos articulada do que Thales para argumentar sobre o que quer que fosse. Ela sabia que a questão não era ter ou não razão, mas sim de ter ou não munição para ganhar uma discussão.

Quando já tinha aberto a porta para ir chamar o elevador, voltou para dentro do apartamento como se tivesse esquecido algo, foi até a janela e viu lá embaixo uma quantidade enorme de nóias fumando crack. A maneira como os isqueiros acendiam e apagavam parecia algo ensaiado. Nem num show do Kiss em Las Vegas havia tanta pirotecnia. Ela suspirou como se estivesse tragando uma dose de coragem e virou-se para se dirigir novamente à porta e sair. Sabia que seria impiedosamente ofendida e esculachada se voltasse atrás naquele momento. Bateu a porta com força ao sair.

Enquanto Paloma esperava pelo elevador, Thales abriu a porta e disse:

_ Espero que os nóias te fritem aí embaixo! Vou ficar olhando isso acontecer da minha janela!

_ Vá tomar no cu!!!

_ Abre o olho, minha filha, senão eu coloco você de castigo sem pó e ouvindo Milton Nascimento!

_ Eu gosto de Milton Nascimento, seu idiota!

_ Eu sei, e essa é uma das razões pelas quais eu mais te desprezo!

_ Vá tomar no cu! – disse Paloma ao mesmo tempo em que Thales se preparava para fechar a sua porta por causa do ruído da abertura da porta de outro apartamento, localizado no canto do corredor, e também por causa do movimento de Paloma para atirar-lhe a bolsa, num ato de descontrole completo. Em frações de segundos, o anão do outro apartamento saiu e tomou uma bolsada na cabeça. A porta do apartamento de Thales tinha um ângulo de visão que naquelas circunstâncias lhe permitia ver quem esperava o elevador e também toda a fileira de portas de apartamentos do corredor de seu andar, enquanto Paloma, na frente da porta de um dos elevadores só via a porta de Thales e as que estavam imediatamente à direita e à esquerda. O susto do anão fez com que Thales sentisse que rir daquela maneira fazia com que sua vida valesse um pouco mais a pena.

_ Tu tá doida, tá, Paloma? – disse o anão, um homem de 45 anos, um pouco grisalho, que era protagonista de uma piada interna de Thales e seus amigos, pelo fato dele dividir sua quitinete com um mais casal jovem. Eles gostavam de dizer que o anão era imensamente dotado e que comia o casal de jovens.

Thales, num breve momento de controle sobre suas gargalhadas, conseguiu olhar mais uma vez para a cara de Paloma que estava ao mesmo tempo furiosa e extremamente constrangida, então ele fechou a porta e voltou a gargalhar dentro do apartamento. Para ela a situação tinha um agravante, porque numa atitude impensada, tinha meses antes contado a Thales e George que certa vez encontrou o anão no elevador e ele, bêbado, insinuou a ela que eles deveriam transar. Nem a fúria de George foi suficiente para fazer com que Thales nunca mais deixasse de avacalhá-la quando se lembrava disso. Thales parecia ter conseguido fazer com que George sentisse medo do anão, pois George nunca foi tirar satisfação com o sujeito.

_ Tome cuidado com o anão pintudo, porque ele é pegador! Se você for folgado ele vai te empalar!!! Você vai até querer morar com ele aí ao lado!!! – dizia Thales para George.

Era o tipo de situação em que seus amigos colocavam em dúvida sua sanidade, pois ele algumas vezes gargalhava de maneira venenosa e em outras vezes era o mais vil dos críticos sociais, que não só não poupava seus amigos, como os colocava em primeiro plano quando resolvia falar o que lhe viesse à cabeça quando estava possuído pelo ódio ou alcoolizado demais.

Capítulo 2- MAMÃE, ESTAMOS TODOS LOUCOS AGORA

A magreza hospitalar do garotinho nóia que se debatia em overdose a 20 metros da entrada de seu prédio chocou menos a Thales do que chocou-lhe a velocidade com que o domingo estava passando. Ele voltava da padaria e o relógio do hall do prédio marcava vinte horas e trinta e quatro minutos quando ele parou para esperar pelo elevador. Só um deles estava em funcionamento, o que resultou na formação de um grupo heterogêneo de moradores para subir.

Nos domingos à noite Thales passava por transtornos nervosos devido às perspectivas tenebrosas da segunda-feira que se aproximava, como se pôde notar no capítulo anterior. Não era só o esforço para sair da cama na mais fria e nevoenta manhã de segunda-feira e nem a semana de trabalho que teria pela frente que o atormentava. Era o ódio social que o incendiava por dentro. Toda a incessante interferência humana do cotidiano da cidade grande. Era isso o que realmente o desgastava. Não conseguia se livrar do princípio de que a felicidade era o que podia haver de mais raro entre as pessoas inteligentes. A partir daí mergulhava em devaneios para buscar respostas existenciais perseguidas há milênios por outros humanos obstinados e que por fim o faziam se questionar sobre sua própria inteligência. O ápice dessa confusão mental era atingido quando ele se via como uma pessoa infeliz e desprovida de inteligência. Isso já seria demais.

Nem sempre o que dá errado em nossas vidas é conseqüência direta de nossos erros. Os problemas podem perfeitamente não depender das nossas ações. Esse é por um lado um fator de chateação mas por outro tem que ser encarado como típico da vida. Antes de nascermos a coisa toda já parecia estar programada para que assumíssemos situações irremediáveis arquitetadas por mentalidades doentias e que por razões inerentes ao comportamento humano conseguiam se manter em voga geração após geração. Os mesmos erros do passado continuam a ser cometidos por inércia, por medo e por burrice.

O gosto por bons uísques e por discos de vinil importados de 180 gramas (de preferência originais, não relançamentos) permaneciam intactos, mas lhe incomodava o fato de ser cobrado para que adotasse prioridades mais dignas de um quase quarentão. Já havia jogado fora algumas alternativas usuais para a maioria das pessoas, como a possibilidade de um casamento, de paternidade, da compra de um carro, da mudança para uma casa mobiliada de maneira convencional ou um corte de cabelo moderno aliado a uma armação de óculos que o aproximasse esteticamente da maioria dos caras de sua geração. Os conselhos para que constituísse uma família vinha de todas as partes, como se seus contemporâneos e as pessoas mais velhas achassem justo que Thales dividisse com eles o sofrimento por terem jogado suas vidas na vala comum da infelicidade e do sofrimento.

Tinha uma estranha paixão pelo charme das imperfeições do cotidiano, costumava denominar-se um ‘imperfeccionista’. Muitas vezes era preciso que houvesse intervenção de seus amigos até mesmo para que ele comprasse uma lâmpada nova para substituir uma queimada em sua casa, ou para que consertasse o microondas. Um anti-herói moderno e ultrapassado ao mesmo tempo.

Muito já havia sido dito sobre a baixa qualidade de vida na cidade de São Paulo, mas tão pouco se fazia para que as coisas melhorassem que sua desmotivação parecia consumi-lo dia após dia. A alta densidade demográfica do Centro da cidade parecia esmagá-lo. Não havia um só dia em que ele não agradecesse a si mesmo por não ter constituído uma família. Poderia se confortar com seu bom senso mas preferia lamentar a burrice dos outros, que entuxavam suas casas e suas vidas com crianças. Os reflexos dessa mentalidade obtusa e primitiva eram sentidos por todos os que viviam naquilo que se convencionou chamar de sociedade. Cada uma das crianças de seu prédio super povoado cresceria para se tornar mão de obra barata e não especializada. Terão filhos, porque não conseguem conceber uma vida sem que dêem continuidade a seu próprio sofrimento. Essas pessoas vêem na procriação algo relacionado à salubridade e à virilidade, além de se tratar de uma convenção social que diz que sem a constituição de uma família suas vidas ficariam incompletas e sem sentido.

Thales vivia um período que ele mesmo classificava como sendo de crise pessoal e procurava manter o que havia sobrado de sua sanidade vivendo de maneira reservada dentro de seu apartamento, reduzindo sua sociabilidade à companhia de poucos amigos com os quais parecia saber lidar. Levava em conta também o fato de que essas pessoas também pareciam saber lidar com o temperamental Thales. Pelo menos o conheciam a tempo suficiente para que não se surpreendessem com seus picos de euforia e de depressão, do mesmo modo que ele sabia que provavelmente não se surpreenderia com qualquer ataque de excentricidade por parte de algum de seus amigos. Thales procurava fazer com que esses picos fossem menos freqüentes. Não havia linha telefônica em seu apartamento, o que o poupava de uma despesa e mantinha um pouco da sua privacidade.

O fato de ter onde morar e ter o que comer e ainda ter amigos não o livrava da sensação de estar vivendo à beira de um precipício. Não poderia tomar como referência a forma com que as pessoas próximas a ele viviam, por que aquilo parecia pior do que se jogar do tal precipício. O Thales dos domingos à noite era taciturno, amargo e sombrio. Queixava-se freqüentemente de estar cansado de cidades e de pessoas. Por outro lado reconhecia para si mesmo o fato de ter uma vida rica em certos aspectos, pois pensava que se soubesse usar as palavras certas para descrever todas as bizarrices que via diariamente, se tornaria um escritor e tanto. As pessoas e as situações que via e conhecia poderiam fornecer material mais que suficiente para que escrevesse clássicos da literatura marginal paulistana, porque a podreira humana do Centro parecia ficar cada vez mais pobre em humanidade e mais rica em histórias sujas para serem contadas. Histórias protagonizadas por gente anônima movida a sexo e religião. Thales poderia decolar como escritor, caso descobrisse uma maneira viável de publicar seu trabalho. Essa parte dos negócios sempre foram enigmáticos para ele.

O que tirava Thales do sério eram comentários feitos por seus amigos quando insinuavam que ele estaria sofrendo das doenças modernas como Síndrome do Pânico ou Bipolaridade. Suas variações de humor eram para ele naturais. Todas as pessoas tem esse tipo de desequilíbrio, ainda que em diferentes intensidades e para Thales as pessoas não podiam simplesmente aceitar as inconveniências da vida de maneira tão passiva, especialmente se elas são oriundas da burrice e das limitações intelectuais dos outros.

Esses transtornos nervosos eram acentuados pelas visitas de novos amigos conhecidos através de velhos amigos viciados em cocaína que chegavam ao seu apartamento pedindo conselhos sobre como consertarem suas vidas destroçadas por motivos que Thales já conhecia e sobre os quais já tinha alertado esses amigos anteriormente, o que o deixava ainda mais nervoso. Isso parecia dispersá-lo na difícil tarefa de ajustar a estrutura de sua vida cotidiana a níveis suportáveis para que mantivesse a sanidade mental.

Os velhos amigos o acusavam de ter dado uma guinada em sua ideologia política. Thales sempre se disse apolítico, mas na opinião de seus amigos ele deixou de lado convicções esquerdistas e tornou-se um reacionário de direita. Diziam que ele tinha se aburguesado e que a tolerância cada vez menor com a convivência com os amigos era a prova cabal disso. Para Thales não havia ligação nos fatos, pois a razão pela qual não se apegava à política tinha a ver com a falta de crença na humanidade. Usar de mecanismos políticos para satisfazer desejos materiais lhe parecia estranho, pois para isso teria que estar mais envolvido com tipos humanos que lhe consumiriam muita paciência, tempo e energia. Era desleixado e vinha progressivamente se desapegando das coisas materiais, e usava desse argumento para defender-se das acusações de estar se aburguesando.

Na verdade ia se tornando um humano pior, que fazia com que seus amigos com razão sentissem saudades do tempo em que ele mal deixava que seus amigos colocassem as mãos em seus discos e quando deixava que isso acontecesse, exigia que os manuseassem adequadamente, guardando-os em seus respectivos plásticos internos e externos para em seguida serem devolvidos às prateleiras, na mesma ordem em que foram encontrados. Seus amigos o achavam bitolado naquela época, mas quando ele deixou de ser para tornar-se indolente até com os discos e livros, eles acharam que a mudança foi para pior.

Paloma tinha se tornado um caso extremo dentro daquilo que ele considerava ser algo próximo da politicagem em sua vida. Ela não pensava em política e não se interessava pelo assunto, pelo menos não pelo que ela entendia significar a palavra. O fato de ela ser um anexo que surgiu um dia de surpresa como namorada de um amigo que partiu para a Europa e que não desapareceu de sua vida quando o sujeito se foi, fazia Thales pensar que aquilo era uma peça que a vida havia lhe pregado. Davam-se bem quando ambos estavam bêbados. Era preciso que o cosmos conspirasse a favor para que esses momentos felizes se concretizassem. Ela parecia acreditar que Thales era um jovem de 23 anos ao invés de um cara de 37 e o irritava com seu descontrole juvenil e seus impulsos erráticos.

Ela era ex-namorada de George, um velho amigo de Thales que foi para a França estudar Sociologia e tentar se tornar um ícone moderno da contracultura. Tentava conseguir isso atirando para todos os lados, tanto na músicafolkalternativa como na literatura e na pintura. Não tinha talento para nenhum dos três tipos de expressão artística e conquistou Paloma cantando as músicas que ela gostava acompanhado pelo violão. Tinha um visualbeatnikcom boina e tudo mais e vez ou outra deixava a barba crescer.

Na época de sua partida seu relacionamento do Paloma era caótico porque ele estava querendo se livrar dela, o que parecia impossível e seu relacionamento com Thales também não era dos melhores, com a diferença que era Thales quem queria se livrar de George, por considerá-lo um grande farsante, cuja única serventia era eventualmente fazer com que Thales se sentisse menos deprimido vendo que havia caras com a mesma idade que a dele e com uma vida ainda mais desgraçada. Isso sem falar na falência física, moral e financeira que George amargava, principalmente pelo fato de que ele não conseguia mais achar boa cocaína, e sua ira ao abrir papelotes ou cápsulas com talco ou bicarbonato dentro afetavam sua saúde mental ainda mais rapidamente. Era Paloma que geralmente se precipitava e comprava qualquer coisa que vendessem a ela, que quase sempre pagava com o dinheiro de Thales.

Já na França, George carregava seu violão para tocar e cantar músicas desconhecidas de artistasfolkfamosos e segundo constava, estaria conseguindo ganhar algumas moedas que gastava em tortas de framboesa e garrafas de vinho. Também comprava velhos discos para que sua fonte de informação musical não se esgotasse. A base do repertório que apresentava em ruas francesas tinha sido formada em São Paulo, no apartamento de Thales. Só ouvia músicas antigas e costumava dizer para seus amigos: “A coisa mais nova que eu ouço é Willie Nelson.”

Viver sozinho por um tempo num país bonito onde ninguém o conhecia poderia ser uma boa para que colocasse em ordem suas idéias tardias de como consertar sua vida. Essa era uma lógica para Thales, mas este pensava que ao invés de aproveitar esse fator, George acharia que a solidão fosse tediosa. Conhecia o sujeito desde que eram muito jovens e George sempre quis se tornar algo próximo de uma estrela, ainda que seu único talento fosse para fazer boas caipirinhas.

Numa ocasião Thales o flagrou fazendo uma coisa que o fez repreender o amigo de uma maneira mais ríspida do que de costume. George ouvia uma coletânea de blues enquanto lia atentamente aos textos do encarte e observa as fotos. Tratava-se de uma coletânea dupla em que cada um dos quatro lados ( havia dois discos contidos no álbum ) tinha um estilo do gênero. Um lado era dedicado às origens do blues rural, outro continha o blues de Chicago, um terceiro lado apresentava artistas de outros gêneros que utilizavam elementos do blues em sua música e o último mostrava guitarristas ingleses brancos de blues rock dos anos 60 e 70. George estava ouvindo uma canção com o violão no colo e tirava a agulha de cima do discos para que repetir certos trechos da música, reproduzia partes da música no violão, ouvia mais um trecho, tirava a agulha novamente do disco, reproduzia uma outra parte e assim por diante, ao mesmo tempo em que improvisava uma letra em português calcada na versão original que era anotada num caderno de Thales.

O cara simplesmente estava roubando uma música de Blind Lemon Jefferson no que parecia aos olhos de Thales ser a maior cara de pau da vasta história da picaretagem artística brasileira. A letra ainda não estava pronta mas havia um título para ela no topo da folha e logo abaixo entre parênteses a canção já estava assinada por George Dutra antes de ser finalizada. Era uma adaptação do inglês para o português que não levava em conta o significado da letra original, e sim a sonoridade das frases, de modo que George ao fazer uma versão vagabunda de um clássico do Blues de raiz pensava não estar cometendo plágio.

_ Olha, cara, eu jamais vou permitir que na minha casa você se atreva a fazer uma patifaria dessas. O respeito que eu tenho pela memória de artistas pioneiros em seus gêneros é grande o bastante para que ver isso seja insuportável para mim. De qualquer forma você tem um método de composição e não precisa da minha vitrola pra fazer esse tipo de coisa. Pode fazer isso até usando seu computador. Sua tentativa hoje bateu na trave. Se for tentar de novo que seja em outro lugar e longe da minha vista. E você pode ter certeza que se um dia você gravar um disco com algum plágio alguém há de se queixar, e se não for o próprio artista ou seus herdeiros, eu mesmo farei. Não ouse tentar fazer sucesso dessa forma, senão voe vai passar por picareta. Não tenha qualquer dúvida de que eu vou te denunciar. – disse Thales.

_ Para um hippie alternativo, você está demais reacionário. Existem processos de reciclagem artística. Uma música pode ser parecida com outra, ou influenciada por outra, sem que o plágio se caracterize. Filmes e livros também. Eu estava apenas checando a estrutura dessas músicas. Não seja deselegante. – disse George.

_ A estrutura da canção já está consagrada como clássica e definitiva. Você deveria ter respeito por isso e eu sou o zelador da ética sobre os direitos autorais e não estou para brincadeiras. – disse Thales.

­_ Não seja obtuso! A originalidade não se perde só porque alguém está atentando pra uma música específica, porque o resultado final pode ser algo completamente diferente. – disse George.

_ Eu não aprecio esse método de composição, me parece muito estúpido. - disse Thales.

_ Você tem piorado como pessoa. Teve uma época em que éramos como Cassady e Kerouac, com você não tinha tempo ruim. Hoje você é um cara amargurado demais.

_ Largue de ser ridículo! Nós éramos mais como Hemingway e Fitzgerald, porque o álcool sempre fez com que perdêssemos a paciência um com o outro. Eu era o Hemingway e você era o Fitzgerald. E aqui pouco importa qual deles escrevia melhor. A questão da postura é o mais importante. Fitzgerald era deslumbrado e irresponsável e Hemingway era bem mais sério e centrado. Os dois eram bêbados, mas cada um a seu modo.

_ Você se identifica com Hemingway pelas razões erradas. Você pensa que ele era apenas um brutamontes bêbado e que já nasceu velho e com um Nobel de Literatura nas costas.

_ Não seja estúpido, você é que sonha com uma porra de um estrelato pop que me deixa constrangido! Eu prefiro a arte pela arte e você tem como prioridade sonhar com o dia em que vai aparecer na televisão dando entrevistas praquela essa gente vendida. Porque você também é um vendido. Você é um poser. Mesmo com essa barba bem aparada e essa boina. – disse Thales, colocando fim ao diálogo.

George, que quando deixava a barba crescer ficava com a cara do João Bosco na fase dos anos 70, viu um Thales furioso tirar a agulha de cima do disco e com os olhos em brasa guardá-lo na capa e depois na prateleira reservada ao Blues. Não colocou nenhum disco depois para que alguma música continuasse tocando no apartamento, o que era raríssimo acontecer ali, porque Thales geralmente mantinha o som ligado mesmo para dormir. Nessas circunstâncias ele podia deixar um disco de Rock ou Blues ou Jazz ou Soul rodando na vitrola e adormecer por bebedeira e acordar com a agulha gastando com o atrito com o disco quando um lado do vinil tivesse chegado ao final horas antes ou deitar-se com o rádio ligado providencialmente numa estação de música erudita para dormir logo e tranquilamente e ter sonhos loucos sem precisar estar chapado.

Depois que embarcou, George rompeu qualquer tipo de contato com seus amigos brasileiros . Tinha contado para Paloma sobre o problema que teve com Thales quando estava roubando a música de Blind Lemon Jefferson mas não chegou a entrar em detalhes sobre seus métodos para ‘compor’ a música. Apenas ressaltou o mau humor do amigo sem mencionar que seu processo de composição era o que tinha irritado Thales. Jamais deu qualquer notícia após sua partida. Àquela altura a diferença de idade entre ele e Paloma já acentuava suas feições dejunkiecansado. Não havia também qualquer movimentação por parte dos amigos que ficaram para que essas notícias chegassem. O que se sabia de George depois de sua partida eram apenas vagas informações que eram eventualmente passadas pelo pai do rapaz.

Numa ocasião Thales estava completamente bêbado discutindo de maneira ríspida com Paloma na presença de outros de seus amigos, sem que eles ligassem para um episódio que para eles era tão corriqueiro. Estavam tão acostumados com esse tipo de evento que quando não haviam essas brigas a quitinete parecia mais triste. E então Thales atendeu a um telefonema numa época em que teve um celular que ganhou de uma garota, e nenhuma das pessoas presentes soube dizer com certeza se era uma simulação ou se era real, mas ao atender o telefone Thales disse: ‘Alô, George! A Paloma não pode falar agora porque está com a boca cheia!’. Ela ficou tão descontroladamente furiosa que foi necessário trancá-la no banheiro para que não avançasse nele com o cano novo do banco da bicicleta que um amigo deles, Valtinho, tinha comprado ali no centro e levado até lá para que mais tarde consertasse seu veículo. Paloma ficou em transe, privada dos sentidos por vários minutos, enquanto Thales se acabava em gargalhadas na sala.

Depois de cair de bêbado e acordar horas depois e com menos gente em casa, Thales não soube dizer se a ligação de George foi real ou se foi só uma brincadeira para irritar Paloma, até porque perdeu o tal celular pouco tempo depois, de modo que nunca mais foi possível constatar de quem era a ligação. O telefone de fato havia tocado naquela noite, mas Paloma nunca considerou a chance de ser uma brincadeira. Thales insistia em dizer que não lembrava do fato só para provocá-la ainda mais. Ele realmente parecia não lembrar, porque nunca se denunciara com nenhuma contradição relativa ao caso, mas gostava de se divertir com essa dúvida que dava um nó na jovem cabeça de Paloma. Aquele celular de Thales tinha um problema de contato entre o aparelho e a bateria, e só ele sabia fazer com que ele permanecesse ligado. Isso impediu que o número de quem ligou fosse imediatamente averiguado quando ele caiu no sono, não muito tempo depois do incidente. Teria sido a última tentativa de contato de George, que àquela altura já estava estabelecido na França. A dúvida sobre a ligação ter sido de George permaneceria eterna, a menos que ele ligasse numa outra ocasião.

De qualquer forma, Paloma teve sua vida arruinada quando o sujeito partiu, porque a ela restou o vício em cocaína, ao qual foi introduzida por George. Em crises depressivas provocadas pela abstinência de cocaína ela costumava insinuar ou até mesmo afirmar com convicção que George havia ligado para avisar-lhe que tinha comprado a passagem dela e a chamaria para ir para a França encontrá-lo. Thales achava a idéia tão ridícula que nem sequer conseguia comentar ou rebater as acusações de que teria culpa pela separação definitiva do casal. Quando ela tocava no assunto porque ficava sem dinheiro para a droga, ele apenas ria alto.

_ Foi você mesma quem arruinou seu relacionamento com o George! Ele estava injuriado com tudo no Brasil, e você acelerou o processo de auto-exílio do cara. Eu sinceramente não sinto falta dele, mesmo considerando-o um bom amigo. Espero que ele esteja bem, e é só isso. Eu nunca vou mexer um dedo para saber notícias ou entrar em contato com ele. Aliás, você me foi apresentada por ele como sendo uma garota incrível e coisa e tal, e na verdade você é essa pequena humana desprezível. – disse Thales.

_ Você fodeu com tudo, ele ligou pra dizer alguma coisa importante, não consigo pensar que não tenha sido pra me chamar pra ir pra lá me encontrar com ele, mas você é um animal e falou aquela trocidade no telefone! Você fodeu minha vida! – disse Paloma.

_ Ninguém fode a vida dos outros desse jeito. A vida é desse jeito mesmo, estamos todos andando no fio da navalha, todos os dias. Com você há um agravante porque você se expõe. A sensação de segurança que algumas pessoas tem ou que pensam que os outros tem são uma mentira. Essas que parecem estar seguras são as que tem mais medo, porque são as pessoas que realmente tem o que perder. Tudo pode desmoronar para qualquer um em qualquer uma dessas manhãs assustadoras em que nosso bem estar por estarmos dormindo é interrompido para que comece o pesadelo da vida cotidiana. Numa dessas manhãs tudo pode desmoronar de verdade tanto para você que está viciada, falida financeiramente, sem seu namorado que foi pra Europa como também para o sujeito que nunca teve problemas financeiros nem amorosos .A questão agora é: será que pra você tudo já não desmoronou? Caso tenha desmoronado, então você não precisa mais ter medo de nada. E mesmo com você pensando que eu sou o responsável pela sua derrocada, você não parou de transitar na minha órbita. Nunca te impedi de tentar estabelecer contato com o George. Se não há como achá-lo é porque ele não quer ser achado. Eu também tento me manter inacessível quando preciso de algum sossego e mesmo assim sou achado quase sempre por vocês. Eu preferia mil vezes que você me odiasse mesmo e só aparecesse pra me destratar e me ameaçar. Você é uma pessoa tão desprezível que nem ao menos é orgulhosa. Tem todos os outros defeitos, menos esse, que muitas vezes poderia ser justificável e passar em branco diante das atitudes que geralmente você toma.

De acordo com o pai de George ele estaria se recuperando do vício em cocaína e vivia uma vida simples no interior da França, morando em cima de uma padaria e se locomovendo de bicicleta. Thales encontrou o velho homem na fila do Carrefour da Rua Pamplona. Enquanto ele comprava duas garrafas de vinho argentino para levar para a casa de uma amiga que morava por ali e que encontrava quando ambos estavam sozinhos e sem alternativas de entretenimento, o pai de George comprava polenguinho sabor provolone, azeitonas, morangos e um pão italiano. Era impossível não notar na maneira como aquele homem falava que ele simplesmente pensava que Thales e os outros amigos de George foram os responsáveis pelo destino do filho.

George havia chegado a um ponto do vício em que disse para Thales que iria se afastar por um tempo de sua roda de amigos porque segundo ele “um nóia não pode ter amigos”. Foi com surpresa que Thales recebeu a informação de que George estaria conseguindo manter o vício sob controle. Ironicamente, o sentimento de perda parecia a desculpa perfeita para Paloma se afundar no consumo pesado de cocaína. Numa ocasião Thales falou aos berros para Paloma que não pensaria duas vezes em retalhar seu corpo inteiro se descobrisse que algum de seus discos de vinil foi roubado por ela para que comprasse pó. ‘Se você fizer isso um dia, seu destino vai ser o mesmo do Euronymous nas mãos do Varg Vikeners!’, disse ele.

Paloma tocava baixo numa banda só de garotas, chamada Menstruação. Era a únicajunkieda banda e a única hippie entre as quatro integrantes. As outras três garotas eram trabalhadoras, honestas, ingênuas, íntegras e simpáticas, e eram diferentes no gosto musical, pois gostariam muito que a banda fosse calcada no punk rock e no pós-punk, mas tinham uma série de outras influências, enquanto Paloma gostava mesmo é de usar a banda para que pudesse se exibir em cima de um palco e ser adulada pelos bêbados presentes. Ela gostava dos ícones hippies, o que fazia com que as outras garotas achassem graça por considerarem que isso era apenas imaturidade.

Paloma era a mais bonita das quatro, o que abria portas para que as garotas encontrassem mais facilmente bares que as deixassem tocar. Havia uma política interna ali que aos poucos ia se cristalizando. Paloma era a única que não era tímida entre as integrantes da banda. Isso fazia com que Paloma ganhasse alguns pontos com elas. O relacionamento entre elas era bom, mas por razões extra musicais. Paloma as estimulava a se rebelarem em suas casas, a não darem ouvidos aos pais e procurarem pelo que ela chamava de ‘independência’. Justo ela que não bancava o próprio vício.

O fato de ser a mais bonita lhe permitia ser mais facilmente tolerada pelas outras três por causa do público masculino, também. Paloma atraía a atenção dos caras para si, mas os repassava para que as outras tivessem mais sexo e não a importunassem com ciúmes e coisas do tipo, embora elas questionassem algumas vezes até que ponto valia a pena mantê-la na banda, pois se as divergências musicais não atrapalhavam demais o convívio, os atrasos freqüentes em ensaios e shows comprometiam o desenvolvimento da banda em termos de credibilidade com donos de bares.

A beleza e principalmente a graciosidade de Paloma fazia com que os homens à sua volta a mimassem da maneira mais estúpida possível. Algumas vezes ela tirava proveito disso e em outras vezes se deixava levar pelo deslumbramento de ser uma pessoa aceita apesar de seus problemas com drogas e limitações intelectuais. Sua beleza era inversamente proporcional à sua inteligência, o que além de ser um triste paradoxo ainda a fazia sofrer na mão de Thales. Ele parecia sentir um estranho tipo de prazer toda vez que confundia a cabeça da jovem, fazendo o contrário do que os outros caras que ela conhecia costumavam fazer, que era adulá-la para se aproveitarem sexualmente da infeliz. Desprezando o que ela tinha de melhor, Thales conseguia fazê-la se sentir rejeitada, algo que não acontecia nas outras relações pessoais da garota. Isso deixava Paloma completamente insegura, desestabilizada e com um sentimento de rejeição ao qual nunca foi acostumada.

Em meio às festinhas nos ensaios e shows, ela roubava objetos das bolsas das outras para comprar cocaína. Podia ser qualquer coisa que ela conseguisse vender por mais de 20 reais, mas sua predileção era por aparelhos de mp3. Desde o tempo em que fazia colegial pratica esses roubos. Por causa de alguns desvios do acaso, Thales sabia disso. A cumplicidade de Thales a deixava muitas vezes desnorteada e a fazia se sentir constantemente ameaçada, como se ele pudesse a qualquer momento usar contra ela essa carta que tinha na manga, ainda que não dissesse isso a ela com todas as letras. Era o que fazia com que ele tivesse um certo controle sobre a garota. Ela andava atrás dele muito mais para se certificar de que ele ainda não havia contado isso para os amigos que tinham em comum do que pelo fato de os dois terem qualquer tipo de afinidade. Paloma tinha medo dos porres de Thales, porque nessas horas ele falava grosserias e fazia piadas realmente sujas e não poupava ninguém. Exorcizava seu ódio quando o torpor alcoólico atingia o nível que ele gostava.

Um fato havia sido omitido por Thales na conversa que ele teve com Paloma no primeiro capítulo. Na verdade Thales já conhecia uma senhora que vendia cocaína por ali, que foi descoberta por outros de seus amigos. Ela morava no mesmo prédio que ele, inclusive. Chamavam-na de vovozinha e a euforia que essa descoberta causou foi grande.

Os moradores que a conheciam apenas por ser mais uma vizinha, ou por qualquer razão que não fosse pelo fato de ela vender cocaína, a chamavam apenas de Dona Norma. Uma senhora realmente discreta, daquelas que usam xale com idade entre 70 e 75 anos. Não recebia visitas de familiares, levava uma vida reservada e raramente o tempo livre da vizinhança era grande o bastante para que conseguissem penetrar a armadura que a velha senhora tinha para proteger sua privacidade.

Entrou no ramo de vendas de drogas para complementar sua aposentadoria de professora, pelos anos em que lecionou nos velhos grupos escolares no interior de São Paulo. A maneira como conseguia uma quantidade suficiente de cocaína para que tivesse um lucro que valesse a pena era um mistério tão grande para Thales como a forma com que ela a passava a seus clientes, que de acordo com seu amigo Valtinho eram na maioria moradores do prédio. Valtinho contou que comprava seu pó quando Dona Norma ia à padaria no final da tarde. Haviam combinado um tipo de abordagem que permitia que concluíssem a transação sem maiores problemas, até porque naquelas ruas a concentração de traficantes de crack era bastante grande, de modo que uma verdadeira feira era regida por eles ao anoitecer, fazendo com que o negócio da vovozinha pudesse ser considerado brincadeira de criança.

Dona Norma tinha hábitos finos, como comprar grandes latas de pistache para acompanhar garrafas de vinho italiano. Pareciam ser os únicos luxos dos quais não queria abrir mão naquela fase da vida. Vestia-se bem, mas de maneira discreta, sem qualquer tipo de exagero. Parecia ser a prova definitiva de que a aparente tranqüilidade na velhice de alguns dos vizinhos aposentados daquele prédio poderia ser apenas uma ilusão bastante triste. Um cheiro ótimo de café sempre saía do apartamento da vovozinha, o que acentuava muito o ar de aparente tranqüilidade que pairava no corredor do quarto andar, onde ela morava.

Os outros moradores do andar pareciam ficar intimidados e constrangidos com o comportamento classudo da vovozinha e a poupavam de gritos e brigas no corredor, comuns nas outras áreas do prédio, bem como de músicas populares que insinuavam sexo promíscuo. Alguns vizinhos daquele andar colocaram um vaso de samambaias de plástico pendurado no alto da coluna de azulejos entre as portas do elevador social e o de serviço naqueles suportes em forma de A maiúsculo.

Naturalmente a falta de classe daquela gente fazia com que a simpática vovozinha parecesse ainda mais discreta e classuda, fatores importantes para que exercesse a venda de drogas sem dar tanta margem a comentários de gente desconfiada na vizinhança. Até mesmo porque ali a venda e o consumo de drogas não era um tabu. Ela inclusive tinha uma clientela um pouco mais selecionada, que não queria fumar crack, apenas cheirar cocaína, o que para a área é algo bastante refinado e ingênuo. Além de ser algo raro por ali.

Justiça seja feita, a omissão à Paloma quanto à existência da vovozinha foi mais por parte dos amigos que ainda cheiravam do que por Thales, que de fato já não tinha mais qualquer interesse no assunto, tanto por que já não mais cheirava cocaína como também porque preferia que os outros também abandonassem o vício. Mas esses outros amigos, sobre os quais trataremos com mais detalhes nos capítulos seguintes, compravam sua droga sem pedir dinheiro a Thales, e muitas vezes nem sequer a cheiravam na frente dele. Usavam o banheiro para fazer isso discretamente e ainda levavam alguma bebida forte para que Thales permanecesse bem humorado e não os censurasse. Era uma forma de demonstrarem respeito a ele e também para que não houvesse nenhum risco de o amigo ter uma recaída. É bem verdade que o álcool poderia ser um ingrediente perigoso nessas circunstâncias, talvez até um fator preponderante para que a tal recaída se concretizasse, mas deixavam que Thales lidasse com isso à sua maneira. Era a política da droga sendo colocada em prática à maneira deles.

A maconha ainda era apreciada diariamente por Thales, e quando alguém aparecia com uma lata de cola de sapateiro ele não costumava dispensar. Paloma repudiava isso por considerar se tratar de uma ‘droga tosca para ladrõezinhos de rua’ e costumava dizer que era estupidez abrir mão da cocaína e continuar bafando cola. Depois que o princípio ativo das colas de sapateiro foi retirada do produto pelo ministério da saúde e a cola já não dava mais brisa, Thales cortou o hábito.

Capítulo 3- SHE’S OLD AS THE SUN

No rádio uma ridícula propaganda do Tribunal Superior Eleitoral dizia que vender o voto é crime. A mesma noite daquela briga de Thales com Paloma documentada no primeiro capítulo ia virando madrugada. Ela tinha saído cerca de uma hora antes e Thales quase não lembrava mais dela, pois sua revolta tinha sido redirecionada minutos antes, quando derrubou cerveja num exemplar de ‘Magia Branca e Magia Negra’, de Franz Hartmann. Praguejava coisas como: “Que inferno!!! Agora estou amaldiçoado pra sempre!!!”. Thales nunca havia sido procurado para que vendesse seu voto. Lógico que venderia caso surgisse alguma proposta, pois além do lucro ser importante para que não cortassem a luz de seu apartamento, ele deixaria a condição de corno eleitoral, tão íntima dos respeitáveis cidadãos que acordam cedo em dias de eleição pra exercer esse direito na ‘grande festa da democracia’. Mas a propaganda não ensinava aos interessados como vender seus votos e enquanto Thales pensava no assunto, Paloma voltou a seu apartamento e aos berros interrompeu seus devaneios.

_ Thales, seu filho da puta!!! – gritava Paloma socando a porta de seu apartamento. – Abra, filho da puta!!!

_ Desgraçada, entre logo e não grite no corredor. – disse Thales ao abrir a porta, imensamente preocupado com a repercussão negativa que todos os escândalos causados por seus amigos traziam para sua reputação no prédio.

Ele na verdade não ligava para sua reputação, apenas não queria chateação causada por vizinhos reclamando de barulho e palavrões. Queria uma vida reservada. A vizinhança era uma estranha mistura de famílias convencionais, traficantes, gente solteira de meia idade, universitários vindos de outras cidades ou idosos que viviam sós nas quitinetes. Almas decrépitas esperando por uma morte definitiva e de preferência indolor.

_ Descolei a grana pra comprar pó. Qual é o apartamento da vovozinha? – perguntou Paloma.

_ Não conheço. Você está me tirando! Vovozinha? – disse Thales.

_ Conhece sim, seu puto! É a velhinha que vende pó e mora aqui no seu prédio! –disse Paloma já dentro do apartamento e totalmente descontrolada com mais uma crise de abstinência.

_ Olhe, minha filha, travei uma batalha terrível contra as drogas, consegui fazer com que as coisas ficassem mais ou menos sob controle. Não tenho esse tipo de contato mais. Eu deixo meus amigos cheirarem dentro de casa, se for necessário. Tento lidar comigo da melhor maneira possível, ainda que seja recomendável se manter o mais longe disso para afastar o risco de recaída. Mas você passa dos limites em tudo que faz. Hoje a única coisa que está me deixando feliz é a lembrança de que o George vazou desse país ribeirinho e deixou você aí na nóia. Claro que pra mim isso é uma desgraça também porque você me tira do sério freqüentemente, mas você merece o sofrimento pelo qual está passando. – disse Thales.

_ O Valtinho me contou da existência da vovozinha! Ele estava no Bar da Record ali na São João e também estava com vontade de cheirar. Toda vez que vou até aquele boteco encontro alguém que a gente conhece. Ele não veio pra cá agora porque estava esperando não sei quem no bar, mas ele me falou que a velhinha vende uns bilús servidos. Acho que alguém ia levar pó pra ele, senão ele teria vindo comigo. Além disso ele falou que ela vende um tal ‘Cogumelo da Lua’ que dá uma brisa louca. Deixe que eu vou lá tratar com ela se você não quiser ir.Qual é o apartamento? – disse Paloma.

_ Eu não tenho tempo a perder com isso e você deveria concluir que eu não sei dessa velhinha e acredito piamente que se você conhecesse uma traficante no meu prédio viraria um encosto realmente pegajoso, com quem eu lutaria até o fim para conseguir me livrar, um zumbi pior que os cackeiros da Rua Aurora,e iria querer viver para sempre na minha casa e correndo o risco iminente de descambar para as pedras também e virar uma nóia em último grau. – disse Thales.

_ Seu pulha!!! Bêbado filho da puta!!! – disse Paloma.

_ Tenho alguma classe, minha filha. Você fica vivendo atormentada atrás de pó ruim do centro e eu quero meu uísque e meus discos de vinil! Você não tem classe nenhuma, e a classe a qual me refiro não tem nada a ver com usar ternos bem cortados ou comer perninhas de rã. Tem muito mais a ver com saber se portar de maneira minimamente decente. – disse Thales.

_ Burguesão, você fica enchendo a cara de uísque e palitando os dentes pra tirar os pedaços de picanha! Você vai acabar se tornando um daqueles políticos escrotos e ladrões e vai estar filiado a algum partido de direita! Vai ficar num gabinete com garrafas de uísque muquiadas debaixo da mesa e traçando secretárias jovens que querem se dar bem.

_ Eu penso nisso diariamente e faria pelo dinheiro, se fosse o caso. As pessoas não saem de casa toda manhã pra trabalhar só pelo dinheiro? Você não precisa de dinheiro pra comprar drogas? Corrupção não é algo que se resume a colocar gravata e fazer ligações caras pra Europa pra tratar de transferência de dinheiro roubado. Corrupção é um conceito que parece simples mas é bem mais complexo. Você por exemplo é uma humana extraordinariamente corrupta. As razões pelas quais você me conheceu não deveriam ser suficientes para fazer você pensar que pode ficar me parasitando só porque é ex-namorada de um velho amigo que foi embora e provavelmente nunca mais vai voltar. Eu deveria fazer a mesma coisa. Deveria me tornar um eremita. O contato humano induz ao erro. Pode ir embora daqui agora e vá procurar um nigeriano na rua que esteja vendendo bicarbonato como se fosse cocaína, seu lixo humano! Tomara que ele te pegue com aquela taróba monstruosa e te rasgue por dentro! Mais uma palavra sua e você vai levar um soco na boca e ficar banguela igual o vocalista do New Model Army, e aí quem sabe sua banda ruim não começa a fazer algum sucesso e você vai poder morrer de overdose na primeira turnê! Você tem uma banda hippie sem vergonha e acha que por causa disso pode fazer o que quiser!

_ Você é um machista filho da puta! Minha banda detona, a gente tem que ouvir cada absurdo quando estamos tocando ao vivo! Você estaria sozinho hoje se não fosse por mim! Seus amigos já estão deixando você de lado! Eu tenho certeza que você vai morrer num manicômio, doidão e agressivo!Você não mais nenhuma maneira de entrar em contato com seus amigos!

_ Você é uma pequena larva da limbose, uma pulga do brejo, um verdadeiro encosto! Uma hippie humanista! Pensa que eu tenho algum apreço pela espécie humana... Olha, eu deveria ligar pra sua casa e fazer um relato sobre a sua conduta! Abra o olho, minha filha!

_ A gente vai aparecer na capa de um zine aí, vai ser um estouro e você vai ficar se remoendo...

_ Eu odeio zines... É coisa de indies com tendências hippies, aquela gente asquerosa da Vila Madalena... Você começa a ler um desses e a única coisa que encontra são contatos de outros zines... O resto são reclamações de falta de apoio do governo. São pessoas que se dizem independentes pedindo apoio estatal...

_ O seu fim vai ser no dia em que eu me tornar uma estrela Glam... Vou reinventar o Glam... Serei mais Glam que todos que o foram... Glam a ponto de fazer o Bowie e o Freddie Mercury parecerem o Sean Connery, que é quem você vai parecer em termos de caretice... Você vai se tornar um tiozinho com um velho pulôver que vai ouvir música triste e antiga! – disse Paloma.

_ Vá ser uma estrela Glam pelada e noiada fumando rocha aí na Rua Aurora, sua pângua! – disse Thales.

Paloma saiu para as ruas e Thales se sentia entorpecido pelo desgaste inútil do desentendimento. O tempo que conseguia passar sozinho parecia tão cruelmente curto que ele não conseguia colocar seus pensamentos em ordem antes que fosse novamente interrompido por algum conhecido, ainda que procurasse se manter recluso em seu apartamento sem telefone fixo e sem celular. Faltou pouco para que tivesse um colapso nervoso quando a campainha tocou poucos minutos depois da saída de Paloma. Pensou num primeiro momento que a garota tinha voltado para pedir que ele o acompanhasse para comprar a cocaína. Thales tinha acabado de colocar um disco do Moody Blues e ansiava por algum sossego. Quando atendeu viu que era na verdade um garoto boliviano da vizinhança conhecido por Thales e seus amigos como o Bobinho Sagrado (naturalmente vamos falar mais sobre ele num capítulo mais adiante).

_ Me dá um Toddynho? – perguntou o garoto, que usava um gorro de chinchila.

Foi inevitável para Thales pensar no quão terrível toda aquela gentalha da região central da cidade poderia ser para o desenvolvimento de uma criança como ele. Diante de tanta devastação humana o que uma criança poderia aprender? Se começássemos pela vovozinha do pó, talvez ela pudesse ser considerada uma amenidade. Afinal era uma atividade que ela mantinha para conseguir pagar suas contas, uma vez que sua aposentadoria não era suficiente nem para pagar o condomínio, a luz e a comida. Entrou nessa por acaso e não mais conseguiu se desvencilhar, devido à comodidade de não ter que sair do prédio para servir sua clientela, que era fixa. Eram sempre as mesmas pessoas que a procuravam para comprar droga ou para reabastecer seu estoque.

Evidentemente eram pessoas com as quais ela adoraria não ter qualquer tipo de contato, mas o fato de serem vizinhos do prédio amenizava um pouco a situação. Jovens que não tinham dinheiro para comprar uma pizza no domingo à noite, mas arrumavam o dinheiro do pó nem que tivessem que vender a geladeira da mãe. Alguns deles a velhinha conhecia desde que nasceram. Estava agora vendendo cocaína para eles, o que a dilacerava por dentro.

Capítulo 4- HOME IS WHERE THE HATRED IS

Problemas financeiros, amorosos e familiares eram despejados nos ouvidos de Thales, que para não dar risada ou para não ficar completamente desiludido com a falta de perspectivas de vida da qual também era vítima, anotava os relatos sem que os amigos soubessem, e depois, sozinho, tentava transformar aquilo em literatura. Era uma troca. Eles cheiravam escondidos e Thales anotava os depoimentos escondido também. Tentava produzir e divulgar suas histórias escondido deles também. Pela sua lógica, caso esses amigos viessem a ter o conhecimento da existência desse material literário, seria porque Thales estaria finalmente conseguindo alguma popularidade no ramo das letras. Para criar as personagens Thales misturava as características de dois ou três amigos numa mesma pessoa, o que serviria para se livrar de possíveis futuras acusações de falta de ética ou algo semelhante.

Alguns dos amigos de Thales eram viciados a ponto de não se importarem com a qualidade da droga. Era uma compulsão tão brutal que nada poderia ser divertido para eles se não houvesse cocaína. Antes dessa vizinha do prédio ser descoberta por alguns de seus amigos (as circunstâncias que os fizeram tomar conhecimento da existência dessa mulher nunca ficaram muito claras para Thales, mas pelo que ele lembrava de uma conversa entre esses amigos, o fato era que eles estavam perambulando na Cracolândia em meio aos nóias e traficantes de rochas e encontraram um morador do prédio de Thales por ali. O sujeito fumava muitas pedras diariamente mas ainda cheirava muito também quando tinha dinheiro para isso e quando foi perguntado sobre algum fornecedor de cocaína na região os levou para que conhecessem a vovozinha com a condição de que ganhasse uma comissão) fazia muito tempo que Thales não encontrava boa cocaína no Centro de São Paulo e tinha conseguido controlar seu uso até parar definitivamente.

Quando Thales foi morar no Centro já nem cheirava mais cocaína. Tinha também diminuído o consumo de álcool para que conseguisse se concentrar em sua produção literária e para que curasse uma gastrite e queimação crônica no esôfago. Tomava seus tragos poucas vezes por semana e na medida do possível preferia gastar um pouco mais com boas bebidas ao invés de consumir álcool diariamente sem que houvesse qualquer critério qualitativo na escolha da bebida.

As mulheres pelas quais ele se interessava sempre mencionavam o fato de detestarem homens bêbados. Ele nunca teve critérios rígidos para se interessar por alguma garota, e quando esse tipo de atitude antietílica era manifestada, o interesse dele se dissipava mais rápido do que uma cerveja gelada no verão. Outras mulheres eram bêbadas e essas eram um desastre porque além de o fazerem perder o controle sobre a bebida ainda causavam problemas relacionados às próprias bebedeiras.

Thales estava vivendo um tipo muito peculiar de solidão. Não tinha ninguém o esperando em casa, o que poderia ser algo maravilhoso, mas de vez em quando era triste. Naquele momento parecia difícil encontrar alguma mulher que fosse o meio termo entre as duas variações citadas no parágrafo anterior. Por alguma razão que Thales não conseguia entender, as garotas meigas que deveriam fazê-lo abandonar os destilados para beber apenas bons vinhos acompanhando as refeições não cruzavam seu caminho havia muito tempo. Ou então surgiam como namoradas de amigos. Ele preferia acreditar que isso era o resultado de sua arrogância e de sua cara de poucos amigos do que pensar que estava perdendo a habilidade de procurar direito, ou de enxergar algum interesse por parte de alguma garota assim.

Pior ainda seria constatar que já não tinha mais idade para ter um relacionamento divertido e sem tantas chateações. Um relacionamento dentro do que ele considerava saudável. Com uma garota mais jovem, com 25 ou 26 anos, bom nível cultural aliado a habilidades domésticas, que sempre deixasse a casa em ordem e a geladeira cheia. Mas isso também poderia ser muito chato, e Thales sabia que a manutenção de uma relação assim poderia ser muito desgastante. Ele pouco ligava para fidelidade, até achava que a infidelidade era instigante. O problema é que elas entendiam como relacionamento adulto algo relacionado a ficarem em casa engordando enquanto se aposentam da vida. Uma tumba matrimonial de onde não se pode sair realmente vivo. O casal deixa de ser em pouco tempo marido e mulher para se tornarem colegas de quarto. O desejo de seguir um caminho diferente não tarde e se um dos dois for frouxo, o outro toma as rédeas da relação, fato esse que faz dessa uma relação inconveniente para ambos, até para quem estiver no controle. Thales não permaneceria vivo desse jeito. As privações não valeriam a pena. Para ele, no entanto, um relacionamento adulto tinha muito mais a ver com ter companhia para diversões que não fossem tão promíscuas quanto as que exercia quando estava solto. Não havia saída, portanto. Como em outros setores da vida, o dos relacionamentos impunha que cada escolha significaria necessariamente uma renúncia.

Sua relutância em se casar lhe parecia um lapso de razão e de responsabilidade na condução de sua vida. Podia sentir-se bem por manter essa condição de desprendimento porque isso fazia dele alguém que não colocava tudo a perder tão facilmente. Tratava-se de uma decisão que a maioria das pessoas tidas como responsáveis não questionavam. Casavam-se e multiplicavam-se. Thales podia ser o maior dos irresponsáveis em todos os outros aspectos, mas não nesse que era o mais determinante na trajetória de um humano adulto.

Às vezes Thales pensava que o melhor seria arrumar uma mãe solteira. Alguém que não pudesse dar total prioridade a ele, deixando-o com certa liberdade por algum tempo. Uma mulher que já estivesse desiludida com o sonho de constituir família e ser mãe. Uma garota que já tivesse passado pelas mãos de outro cara e que estivesse começando de novo, sem poder dizer que estaria realmente livre, por causa da criação do filho. O problema é que de um modo geral ele não considerava as mães solteiras inteligentes. Tinha a impressão de que elas precisaram errar feio para aprender que os sonhos burgueses impostos pela sociedade prendem as pessoas de maneira definitiva e irreversível. E ser um padrasto temporário poderia ser divertido e enriquecedor como também poderia fazer de sua vida um inferno. Ele provavelmente teria que freqüentar a casa dela muito mais do que ela freqüentaria a dele, principalmente para dormir, o que faria com que seu plano de ter um lar e não apenas uma casa fosse por água abaixo. Sem contar que ela provavelmente daria prioridade ao filho justamente nos momentos em que Thales estivesse com a alma em frangalhos.

A liberdade que teria com uma mãe solteira o faria perder a assistência prestada naqueles momentos finais dos fins de semana. A tristeza por mais uma semana que se inicia continuaria de uma maneira solitária, a menos que o sujeito em questão estivesse disposto a ser um padrasto temporário, o que não era exatamente o caso de Thales. Numa situação assim ele poderia ter o resultado inverso ao que buscava inicialmente, que era uma assistência feminina sem que em troca ele fosse muito pressionado, pelo fato da garota ter que cuidar do filho.

Ele sabia no entanto que dificilmente escaparia das pressões para oficializar a união, o que o fazia lutar menos do que o necessário para encontrar essa garota. O conceito que Thales tinha de família era algo que as garotas pareciam não aceitar com muita naturalidade. O casamento parece um pré-requisito para que elas possam ser felizes quando o que acontece é exatamente o contrário. Ele desprezava o casamento como instituição e com as leis que protegiam a mulher em caso de união sem papel assinado ele preferia se manter sozinho do que sucumbir ao medo de ficar sozinho para sempre. Muitos eram os exemplos de famílias desastrosas que Thales tinha para se manter afastado desse risco. A sua própria família naturalmente era o principal exemplo que tinha para não querer seguir.

Um colega dos tempos de colégio tinha escolhido Thales para ser o padrinho de seu primeiro filho e o convite foi aceito. Thales tinha 25 anos na ocasião, e seu amigo tinha a mesma idade. A vida de casado que esse amigo levava era um desastre para o que Thales queria para si. O cara abandonou o futebol, o surf, as bandas de rock que tinha, as bebedeiras. Isso tudo é tão velho quanto o casamento. O trágico-patético que a vida das pessoas vira e elas sempre pensam que com elas será diferente. E Thales era um bom padrinho. Fazia com que o garoto gostasse de rock ao invés de tomar gosto por MPB como a mãe. Sim, o sujeito ao casar trocou o rock e uma vida ativa por uma garota que gosta de MPB e que não o deixava sair de casa. Ela não gostava de Thales, por achar que ele plantava discórdia em sua família. Fazia o garoto se rebelar por meio do rock. E rock é rebelião mesmo.

Individualista radical no que se referia à ideologia política e à postura no estilo de vida, Thales precisava lidar também com as brigas entre seus amigos, que freqüentemente tentavam colocá-lo contra a parede para tomar partido. Brigas por motivos torpes. Mulheres, dinheiro e drogas eram as razões mais freqüentes e muitas vezes havia na mesma briga uma mistura desses componentes. Explicava aos amigos que conhecera alguns deles por meio de outros e que tinha a convicção plena de que não deveria se envolver em atritos nos quais não tivesse tido participação ou culpa. A verdade é que a arrogância de Thales no que dizia respeito a diminuir a importância dos problemas de seus amigos tinham às vezes o efeito contrário ao que buscava com essa postura. Ele queria se manter imparcial e liberto dessas questões e no entanto era escolhido como uma espécie de árbitro.

Mudou-se para a região central quando já estava recuperado do vício, com o propósito de morar sozinho numa quitinete prática e ao mesmo tempo ficar perto de toda decadência humana possível, mas apenas para usá-la para concluir seu projeto de escrever o ‘romance paulistano definitivo’. O nome usado por Thales para se referir ao projeto fazia com que parecesse algo bastante pretensioso. Seu caráter indomável não o deixaria desistir fácil, até porque usava o tempo em que deveria estar trabalhando na Secretaria da Educação para dedicar-se a esse livro, não tendo portanto muito a perder caso nada acontecesse em termos de lucros por falta de interesse das editoras e dos leitores. Diariamente Thales ligava o computador e ao invés de imediatamente começar a resolver problemas burocráticos relativos ao seu setor, abria oWorde escrevia cerca de quinhentas palavras por dia, média que embora não fosse alta o deixava satisfeito. Quando conseguia, escrevia mais do que a média. Aproveitava o resto do dia para perambular pelo centro da cidade, em busca de visões, fatos, livros, discos e personagens para suas histórias.

O que o fascinava de verdade no centro da cidade era a possibilidade de viver ali sem ter um emprego comum. Uma possibilidade tão vaga quanto o desejo de se tornar um escritor que recebe cheques de direitos autorais e vive com tranqüilidade num país cheio de analfabetos e onde as pessoas que tem escolaridade não são apreciadoras da literatura. Queria viver de renda e se dedicar à sua coleção de discos de vinil e ao lançamento de seus livros, sempre ganhando dinheiro para comprar mais e mais discos raros e importados e se deliciando com seu saudável fetiche. Viver ali tendo tempo para aproveitar observando a vadiagem alheia e tentando se aprimorar culturalmente pelos sebos e lojas de discos era um sonho que era bonito e feio ao mesmo tempo. Esperava que algum desvio do acaso fizesse dele um escritor bem pago.

Havia um vizinho do prédio de Thales que nos anos 70 gravou um disco pela CBS, bem na época em que os discos nacionais eram produzidos com um PVC bastante vagabundo e flexível, mas as capas eram feitas de um papelão grosso. A música, no entanto não foi a primeira razão que os aproximou. Aquele homem havia conseguido uma proeza considerável: fez a dona da pizzaria da Boca do Lixo fechar seu estabelecimento numa sexta-feira à noite. A mulher era fanática por trabalho, atendia dois telefones ao mesmo tempo, o tempo todo, toda noite. Esse vizinho era Carlos Silas. Ele colocou seu potencial sexual em prática para fazer com que a dona da pizzaria relaxasse e se divertisse um pouco. Fazia ligações anônimas para sua pizzaria insinuando sexo selvagem e se dizendo enlouquecido, e tinha a visão da entrada do local de sua janela. Tratava-se de uma coroa solteira, que se dedicou à sua pequena empresa com bastante empenho. O telefone nunca parava naquela pizzaria. Parecia ter chegado a hora de aproveitar um pouco do dinheiro acumulado.

Naquela noite o prédio de Thales tremeu enquanto Carlos mandava ver. Quem passava pelo corredor do andar de Carlos podia ouvi-lo gritar coisas obscenas.

_ Vai, minha filha, rebole! Aaahhh, rebole! Você quer mais recheio de calabresa, né? Toma, minha filha!

Thales tinha um exemplar desse disco lançado por Carlos Silas porque ganhou de presente do próprio artista, que não chegou a gravar um segundo álbum. Carlos era inacreditavelmente parecido com Phil Lynott, eterno vocalista, baixista e líder do Thin Lizzy, banda que era uma das preferidas de Thales em todos os tempos, independente da época e do gênero musical. Mas Carlos era mais velho, evidentemente, e seu rosto era como que talhado com um machado. Seus óculos de armação grossa e modelo que havia entrado em desuso muito tempo antes tinham um pedaço de durex para fixar a haste esquerda, que estava quebrada. Lynott viveu apenas 35 anos, o que correspondia apenas ao período em que Carlos já vivia em São Paulo quando se deu esse encontro entre ele e Thales.

Isso antes de tudo significava que Carlos era feio o bastante não apenas para ser abandonado pela mulherada ou para ser permanentemente chifrado por elas. Era na verdade feio o suficiente para que jamais arrumasse uma mulher. O episódio com a dona da pizzaria foi uma espécie de satisfação que resolveu dar a si mesmo. O entusiasmo e a satisfação com que ela trabalhava na noite seguinte fez com que Carlos sentisse que sua condição de homem e sua virilidade como tal teriam que corresponder a uma luz que permaneceria acesa enquanto ele respirasse e enquanto o sangue circulasse por suas veias.

Já Lynott era um gigante de uma época rica e gloriosa do Hard Rock e podia comprar aquilo que desejava, fossem as quantidades enormes de drogas e bebidas que sempre consumiu em sua mansão ou as mulheres que desejasse. As músicas contidas nos discos históricos que gravou já lhe abriam as portas da glória e do prazer. Sua vida foi bastante curta e intensa e descansava na morte havia muito tempo. Já Carlos Silas era um ex-pretenso artista que depois de velho ainda sofria para pagar suas contas e ouvia músicas em estações de rádio AM mal sintonizadas por causa da precariedade de seu aparelho.

Carlos vendia garrafas de mel pelas ruas do centro e dos arredores nos fins de semana para complementar a renda do emprego na borracharia em que trabalhava na Avenida Duque de Caxias, que já servia para complementar a renda da aposentadoria, e no tempo que sobrava ficava em casa apreciando boas cachaças. Ficou impressionado com a coleção de Lp’s de Thales e achou muito engraçado quando ele lhe mostrou os discos do Thin Lizzy, para que se certificasse de sua semelhança com Phil Lynott e também para que ouvisse algo diferente do que estava habituado. Gostou de saber da descendência de Lynott, que tinha pai brasileiro.

Em sua coleção, Thales tinha uma prateleira dedicada exclusivamente a discos de palhaços, o que também encantou Carlos. Discos nacionais baratos de gente como o Carequinha, Bozo ou Atchin e Espirro, e também discos importados de palhaços gringos, raros e caros, mas todos de palhaços de diferentes épocas e lugares do mundo, com capas bizarras, músicas de duplo sentido fazendo referências às drogas, especialmente LSD, fotos de encarte com várias crianças sugerindo que durante as sessões rolaram muitas situações de pedofilia. informações como telefones e endereços totalmente desatualizadas nas contracapas que impediam o contato com as gravadoras e os artistas, potencializando ainda mais os mitos. Como teriam vivido e morrido todos esses caras?

Foi um dia bastante divertido para ambos, que tomaram muita aguardente e comeram vidros de azeitona. Carlos fumava quase dois maços de Vila Rica por dia, enquanto o Carlton de Thales chegava a durar três dias quando ele ficava sem beber. Thales chegou a pensar que talvez devesse abandonar o Carlton para fumar apenas cigarros baratos como faziam Carlos Silas e Tom Waits. Nesse dia ele fumou um cigarro atrás do outro. Era bom conversar com gente sem frescura, gente sofrida mas com boas histórias. Pessoas que vestem roupas grosseiras e óculos com as hastes remendadas com esparadrapo. Dadas essas premissas, ele podia contar com o fato de que o bem estar logo passaria, um dos dois cairia de bêbado, o fim de semana chegaria ao fim num momento cinza em que ele teria dificuldade em aceitar tranquilamente a volta à dureza do cotidiano.

Todos no prédio passariam por isso ao mesmo tempo que ele. Mas essas outras pessoas pareciam se sentir mais confortáveis ou mais conformadas com segundas-feiras penosas. Essas pessoas estavam bem ajustadas a essa estrutura da vida cotidiana, o que de maneira nenhuma podia ser considerado um mérito. Pelo contrário. Elas eram o objeto do ódio de Thales. Não só apoiavam tudo o que havia de errado na sociedade, como se sentiam bem sendo parte dessa dita sociedade. Eram verdadeiras patrulhas comportamentais.

Carlos e Thales falavam de música, de carros antigos, sobre a morte do Secretário da Saúde que tinha feito a lei antifumo e morrido jovem sem jamais ter fumado e sobre uma série de desventuras ao longo da vida de ambos. Thales se sentia melhor conversando com gente simples e despretensiosa e que goste de beber. Antes de beberem juntos, conheciam-se um ao outro apenas de vista, ao entrarem ou saírem do prédio, ou no elevador. Carlos era um sujeito muito solitário e recluso e ouvia as conversas de Thales com seus amigos pelos corredores. Pensava se tratar de um cara temperamental e impaciente, mas constatou que bastava saber lidar com ele para que uma boa conversa regada a álcool fluísse bem.

_ Olhe, meu caro... O tempo que você tem de vida eu tenho de vivência no Centro de São Paulo. Isso não é pouco tempo pra um cara de um estado longínquo que já veio pra cá com mais de 30 anos de idade. Já cheguei aqui na época da decadência do centrão, a marginália botando pra foder mesmo. Ainda não tinha a epidemia de crack, mas haviam outras coisas. Não tinha o policiamento que tem hoje, a polícia tinha aqueles fuscas antigos, pretos e brancos, os policiais usavam costeletas bem anos 70 e os Governadores do Estado os mandavam dar porrada no povo sem ter dó. O Laudo Natel, Paulo Egídio Martins, Maluf, Marin... As equipes responsáveis pela segurança na época desses caras jogavam duro. Não davam segurança pra população, mas mandavam a polícia bater no povo. Tinha muito assalto e muita gente dormindo nas ruas. É verdade que essas coisas ainda existem. Mas havia um aspecto até mais triste e de abandono, porque hoje há mais gente interessada em morar no Centro, por causa de algumas facilidades. Mas naquele tempo as pessoas vinham pro centro só pra trabalhar e iam embora ao escurecer. A escória tomava conta de uma maneira brutal. O que nunca mudou foi o fato de a cidade ser dura e fria. A gente nem votava naquele tempo. Depois a pilantragem continuou mesmo com eleições diretas, esses políticos escrotos que gastam milhões em campanhas, criando aqueles jingles infelizes e em toda eleição são os mesmos de sempre e se elegem e botam no rabo do povo. – disse Carlos Silas.

Não havia nenhuma dúvida que Carlos era um sujeito muito Rock and Roll, mesmo que nem soubesse ou se importasse com isso. Mesmo que até aquele dia nunca tivesse escutado um disco de rock do começo ao fim.

Quando se conheceram e falavam do mercado fonográfico, Carlos disse a Thales que no fim das contas pagou pela gravação e pelo lançamento de seu disco, porque a gravadora tinha muitos artistas do gênero popular, gente que em sua grande maioria despontou para o anonimato como ele. A concorrência entre estes artistas com a mesma proposta e estilo, além da falta de apoio da gravadora para a distribuição e divulgação fizeram as poucas cópias editadas do disco de Carlos Silas venderem quase nada e isso o deixou muito sentido na época, mas de qualquer forma sabia que tinha deixado um registro para a posteridade.

Mas era justamente o anonimato de cantores brasileiros dos anos 60 e 70 que atraía a atenção de Thales. Gente anônima que nem ao menos teve a chance de vender os bagos para o açougueiro para conseguir sucesso comercial, caso contrário teriam feito isso sem pensar duas vezes. Depois de ser presenteado por Carlos Silas, Thales passou a procurar pelo mesmo disco nos sebos do centro para saber se Carlos ainda estava no mercado. Nunca achou uma cópia sequer. Encontrou centenas dos tais concorrentes anônimos, lançados na mesma época pela mesma gravadora. De qualquer forma Thales explicou a ele o quanto desejava conseguir gravar com sua banda um disco de vinil, sonho cada dia mais distante pela inviabilidade financeira e pela falta de fábricas de discos no Brasil.

Carlos contou a Thales que se apresentou no Clube do Bolinha em 1978 e nem isso o ajudou na escalada para o sucesso. Cantava sobre ser abandonado por uma mulher, sobre problemas cotidianos, solidão e saudade da terra natal (era maranhense e se alfabetizou em São Paulo), gravou covers de sucessos da época, gente que estava freqüentando as paradas de sucesso como Fagner, Simone e Roberto Carlos em sua fase religiosa. As versões originais já eram de doer de ruins e Carlos Silas dava uma roupagem nada peculiar àquelas canções. Os arranjos eram padronizados pelos produtores da gravadora e na ânsia do sucesso Carlos e os outros aspirantes à fama não questionavam nada sobre a parte artística.

Décadas depois de ter lançado seu disco, Carlos parecia ter concretizado em sua vida os temas tristes de suas músicas, estando envelhecido e ainda mais melancólico, tendo levado uma vida comum para os padrões brasileiros, o que corresponde a sofrer a vida toda e morrer sugado pela cidade, e se remoendo por não ter se tornado artista profissional, sonho este que o levou a São Paulo. Bem diferente por exemplo do que Thales imaginava ser a vida de Joni Mitchell, por exemplo. Quando ele se deparava com os velhos discos dela nos sebos, invariavelmente pensava no que ela estaria fazendo naquele momento, uma velha hippie que fazia sucesso comercial e que agradava alguns na mesma proporção que causava repulsa em outros. E Thales gostava de Joni Mitchell, mesmo ela tendo sido hippie, pelo menos os discos que ela lançou nos anos 70, quando ele ainda era uma criancinha. Até que ponto as limitações da idade a privavam de viver tranquilamente depois de uma vida de sucesso com seu público? Será que ela vivia numa casa ou num apartamento? Com aquele ar de professorinha frágil ela também passou por poucas e boas, tanto na vida pessoal como na carreira artística. Não havia uma só vez que ao ouvir ‘Last Time I Saw Richard’ não ficasse profundamente intrigado.

Quão maravilhoso deveria ser estar rico e com toda uma vida emocionante nas décadas anteriores e finalmente poder ter os dias livres simplesmente para dar risada das notícias brutais que diariamente jornalistas cretinos preparam para os expectadores? Joni Mitchell nunca mais gravaria um disco como ‘Blue’, assim como Lou Reed nunca mais gravaria um ‘Berlin’. Eram então senhores que se não entraram exatamente no que se convencionou chamar de decadência, ao menos passaram do tempo em que ainda fariam lançamentos realmente relevantes, se tomássemos como referência seus discos mais antigos. Por outro lado, provavelmente já não precisavam se preocupar com problemas do cotidiano.

Isso tudo valia a pena? Thales sabia que sim. Queria da vida apenas isso, não ter problemas estúpidos do cotidiano. Até onde ele poderia chegar? Até quando chegaria para trabalhar com as meias molhadas em manhãs nevoentas, atrasado, de ressaca e em dívida com o banco? A busca por respostas existenciais distraía e atormentava Thales, ferindo-o freqüentemente e fazendo com que desperdiçasse muita energia que deveria ser gasta com os tais problemas do cotidiano. As filas do supermercado eram tão ruins quanto os gastos que tinha ali.

Thales já tinha o anonimato, sabia que dificilmente deixaria de tê-lo e isso não o incomodava. A vida cotidiana atribulada era o problema. Até que ponto uma coisa tem que estar tão atrelada à outra? Tomar chuva de manhã para ir trabalhar estando de ressaca e ter que fazer contas miseráveis sempre que ia fazer compras no supermercado da Avenida Rio Branco, onde via que até mesmo as pessoas mais humildes aparentemente tinham um poder de compra maior que o dele.

Na opinião de Thales, faltavam livros e escritores genuinamente paulistanos, que conseguissem traduzir algumas das características da cidade em palavras bem escolhidas. Teria que ser criada uma literatura sem burocracia, mas ao mesmo tempo épica. Sem pena ou compaixão da cidade nem das pessoas. Sem a maldita exaltação a tudo o que há de errado na metrópole. Ele sabia que São Paulo estava cada vez pior e nem ao menos achava que a cidade merecia um destino melhor. A população fazia por onde chegar a esse ponto.

Tentava basear sua obra em relatos atuais da vida no centro urbano levando em conta fatores relativamente recentes como internet e os desdobramentos sociais de seus recursos, quase sempre desastrosos, não por culpa da tecnologia e sim por causa dos usuários. Outros fatores como a sexualidade cada vez mais precoce, assim como o acesso fácil e a banalização das drogas, o caos em todos os setores de serviços públicos, a poluição e o vício em crack transpondo barreiras sociais. Um material literário quase em estado bruto, que assustasse ou incomodasse algumas pessoas. Algo inédito e relevante.

No entanto Thales só conseguia ver nos escritores da cidade e nos que escreviam sobre ela, especialmente os mais jovens, que São Paulo era reduzida por eles a miseráveis clichês que de tão batidos pareciam na verdade um pastiche burro do que foi produzido na chamada literatura marginal do século 20. Esta literatura tinha sido produzida por gente que foi original e que sabia escrever, sobretudo os estrangeiros. Os escritores jovens do Brasil não eram bons com as palavras e também não tinham boas idéias. Parecia não haver nenhum porta-voz insuspeito da miséria humana da metrópole. Não haviam bons temas, nem boas personagens e nem boas histórias.

Preocupava-lhe o fato de que suas temáticas literárias também eram variações do mesmo tema, ligadas à decadência da região central da cidade, o que evidentemente era também um clichê, a menos que conseguisse ser técnica ou estilisticamente pioneiro de alguma forma que lhe permitisse ser a antítese daqueles que tentaram explorar esse tipo de tema apenas por embalo. Sua esperança era que conseguisse ressaltar a queda da qualidade humana como um fato, para justificar com mais exatidão e coerência todos os desastres causados cada vez mais freqüentemente pelos homens em todos os seus setores de atuação.

O que lhe animava um pouco era o fato de que esses jovens escritores ruins poderiam lhe ensinar tanto quanto Dostoiévski ou Céline ou Faulkner, ainda que de uma maneira oposta. O trabalho ordinário dessa gente que se afunda em pobres devaneios filosóficos poderia ajudá-lo a fugir dos clichês mais comuns de uma maneira tão benéfica aos seus textos como as frases bem construídas e os pensamentos brilhantes dos grandes escritores. Algo que precisa ser lembrado é que mesmo entre os escritores ruins de todos os tempos e do mundo inteiro havia muitas vezes a cultura de ler os mais geniais mestres da escrita. A instantaneidade e a pressa que caracterizam os atuais tempos de internet e algumas facilidades para divulgação na rede fazem com que novos ‘escritores’ surjam diariamente. Na área jornalística isso também ocorre. Blogs a cada dia emporcalham mais a rede despejando ali o analfabetismo e a completa falta de discernimento da classe média brasileira.

Se a palavra impressa está morrendo, a culpa não é da tecnologia, mas dos idiotas que se atrevem a se meter com literatura sem ter talento e inteligência e muitas vezes sem que seja um leitor. Mesmo os que são leitores deveriam ter cautela ao criar e divulgar textos, porque há muitos leitores de clássicos que não sabem escrever e não tem auto crítica para aceitar isso como sendo apenas mais uma falha de sua atrapalhada existência. Se a palavra impressa morrer mesmo, o que vai sobrar?

Capítulo 5-THE RUST NEVER SLEEPS

A certeza da inoperância, da incompetência, da burrice e da corrupção dos órgãos públicos brasileiros Thales já tinha muito antes de ingressar na área, evidentemente. Mas quando passou a integrar esse sistema inescrupuloso (ingressou como estagiário na Secretaria da Educação) ele não só passou a ter muito mais certeza de que aquele mecanismo jamais vai poder ser consertado como também entendeu claramente que ele não queria ajudar a consertá-lo. Os danos causados em sua vida por essa engrenagem viciada fizeram dele uma pessoa incapaz de desejar que a sociedade (em especial a brasileira) se curasse de seus males mais antigos. Antes de trabalhar ali o que ele sentia com relação aos servidores públicos era um desprezo tão grande que ele nem sequer chegava a sentir raiva. Agora ele tinha raiva dos servidores como órgãos e como pessoas, individualmente. Também queria a desgraça daqueles para os quais esses órgãos prestavam serviços porque não mereciam sorte melhor.

À medida em que se adaptava ao modo como o trabalho era conduzido e conhecia as pessoas e as circunstâncias com as quais tinha que lidar, procurou a cada dia sabotar ainda mais aquela engrenagem onde foi aceito como mais uma peça. E ele estava determinado a ser a peça mais enferrujada e corrupta que esse sistema jamais teve, mesmo sem precisar roubar um só centavo, e se possível fazendo seu nome literário às custas desse sistema. Sua arma seria a possibilidade de relatar um pouco do cotidiano dentro do órgão em que estava trabalhando, ao mesmo tempo que acompanhava o sofrimento dos cidadãos prejudicados por toda aquela patifaria. As situações cotidianas ajudavam Thales a desenvolver a trama literária que estava escrevendo e as pessoas com as quais lidava serviam para ajudar a compor as personagens.

Pôde constatar mais de perto que aquilo era uma verdadeira várzea. O ódio que sentia teria que ser convertido em alguns benefícios para que a situação se tornasse suportável. Tentaria fazer o que fosse preciso para se tornar um exemplo de desobediência civil individual. O mínimo que um estado injusto e corrupto merecia era esse tipo de oposição. Ao longo de sua vida havia conseguido ser insubmisso, mesmo que para isso tivesse que fazer as coisas de seu jeito. Muitas vezes de maneira irresponsável para os padrões comuns das pessoas que o cercavam.

Nesse período de sua vida sua função era ter fígado e estômago para agüentar seus colegas servidores públicos, uma corja que tal qual o serviço que prestam não valiam o material gasto na confecção das solas de seus sapatos. Estando ali era fácil entender as razões pelas quais tudo parecia tão errado por onde ele havia transitado até então. É verdade que não havia um só dia em sua vida na fase anterior ao estágio em que ele já não tivesse convicção da péssima qualidade humana e profissional dos funcionários públicos em geral.

Os jornais eram entregues todas as manhãs na Assessoria de Imprensa da Secretaria da Educação para que alguns dos funcionários desse órgão se inteirassem dos principais assuntos do dia, e havia um gordinho que era novo ali e separava o caderno de cultura de todos os jornais e guardava em sua mochila. As notícias referentes ao trabalho que realizavam e à repartição da qual faziam parte vinham sempre em outras partes do jornal, de modo que os cadernos culturais, a rigor, não fariam falta aos outros funcionários. O gordinho deixava para ler em casa e então ninguém na repartição lia nada sobre música, cinema ou literatura. Ele fazia isso todas as manhãs, causando fúria em Thales, o estagiário culto, como era chamado pelos seus colegas.

No começo do expediente eram colhidas nos jornais as notícias que saíssem sobre a Secretaria (a imprensa costumava causar verdadeiros pandemônios naquele departamento quando divulgava notícias sobre escândalos de corrupção relativos à área da Educação) para que se fizesse um relatório e estas vinham em outros cadernos específicos de modo que o gordinho sentia-se à vontade para levar a parte de cultura. O gordinho havia conseguido ser transferido de setor recentemente. Desejava isso já havia algum tempo, para ter uma vida melhor. Era o que podia ser chamado de um verdadeiro frouxo e por isso era muito explorado e mal tratado no almoxarifado e depois no setor de despesa , de onde foi para a Assessoria de Imprensa. Mudou-se para a Assessoria de Imprensa e ganhou a simpatia dos outros funcionários porque era ‘prestativo’. Ele era o queridinho da chefe do setor, a quem Thales se referia como ‘a jornalista gorda’.

O gordinho ‘prestativo’ e a jornalista gorda eram pessoas tão extraordinariamente desprezíveis que quando eles entravam de férias, cada um num período diferente, a sensação de Thales era de que aqueles dias em que ele ficava livre do convívio de um ou de outro passavam ainda mais rápido para ele, Thales, do que para o funcionário agraciado com o descanso. Tanto a jornalista gorda como o gordinho não tinham o que se podia chamar de uma vida de verdade quando estavam fora do ambiente de trabalho. Simplesmente não se dedicavam a nenhum tipo de atividade escolhida por eles mesmos, seja por diversão ou o que quer que fosse. Tinham suas forças voltadas o tempo inteiro para aquela Assessoria de Imprensa cuja inutilidade era olímpica, assim como o órgão para o qual era vinculada.

Eram perdedores no sentido mais amplo da palavra. Não por serem pessoas simples e sem grandes pretensões. Pelo contrário, eram muito mais arrogantes do que jamais poderiam ser, principalmente a jornalista gorda, que era cheia de si por motivos que Thales jamais conseguiu enxergar. O maior problema era o fato deles não encontrarem diversão na simplicidade e também não tinham cacife para se misturarem com camadas sociais mais elevadas. Conseqüentemente não encontravam diversão nunca. E no meio em que viviam e nas ruas em que transitavam e nos lugares que freqüentavam quase não havia quem não fosse perdedor como eles. As referências que tinham não os ajudavam a melhorar porque não os faziam enxergar com clareza sua situação real de perdedores. Não eram estimulados sequer a tentar mudar. Não tinham por perto bons exemplos que servissem para que ao menos tentassem se mobilizar para não precisarem ter vergonha de si mesmos, e que servissem para que algum entusiasmo fosse resgatado dos antípodas da mente para que aproveitassem o que ainda lhes restava de tempo. Mas eram vidas desprovidas de qualquer sentido, malévolas, opacas.

Isso favorecia Thales no sentido de equilibrar diferenças hierárquicas no ambiente de trabalho. Para o gordinho e para a jornalista gorda o que importava era o que acontecia na sala de Assessoria de Imprensa e para Thales interessava o que ele fazia e vivia fora dali. Eles teriam o completo anonimato até que morressem sem ter nada de relevante para escrever em suas lápides. O argumento de que prestavam algum benefício para o povo soava como uma piada tão esdrúxula para Thales que mesmo que ele tentasse jamais conseguiria respeitá-los, fosse como seres humanos, como trabalhadores ou o que quer que fosse. Além do mais podia dedicar suas horas de trabalho à escrita, o que poderia um dia colocar nos livros que décadas mais tarde estarão nos sebos instigando a curiosidade de algum pretenso escritor do futuro, da mesma maneira que Thales via em velhos livros os nomes de escritores do passado. Fossem os famosos ou os anônimos.

Era inevitável constatar diariamente que o orgulho que alguns jornalistas tem de sua pobre formação universitária só serve para rebaixá-los como pessoas. Pior do que a formação acadêmica deficiente era a formação intelectual que essa gente construía por conta própria, e na qual essa gente confia cegamente. São tão estupidamente vaidosos e orgulhosos que deixam transbordar de maneira desastrosa a própria falta de discernimento para escolher entre o bom e o ruim. Isso vale para questões políticas, culturais ou pessoais.

O ódio visceral que sentia pela forma como o jornalismo brasileiro era praticado o fazia querer ser jornalista. Aquilo que para ele eram, faziam e representavam os profissionais famosos dessa área no país o motivava na mesma proporção que o irritava. As aspirações profissionais estúpidas dos que eram anônimos e que assim permaneceriam para sempre faziam com que Thales tentasse diariamente explorar novas fórmulas para criar seus textos. Sentia que talvez fosse necessário criar um ‘novo’ gênero literário para o que no Brasil sempre se conheceu por livro-reportagem. Tinha em mente a convicção de que o jornalismo não era muito mais do que um tipo de literatura com pressa e passível de grandes equívocos. Tentava escapar dos que se denominavamgonzos, porque qualquer moleque universitário invocado poderia se voltar para essa vertente, sem que nem ao menos soubessem o que isso realmente representou numa época em que o termo ‘contracultura’ podia fazer algum sentido. Thales vivia numa época em que as tendências emergentes de todos os setores da vida pareciam se opor a tudo o que ele considerava realmente importante. Ele tinha outras prioridades e sua luta por elas parecia ser mais excêntrica do que os objetivos em si.

Quando os amigos de Thales, especialmente Paloma e Valtinho (que tinha uma boa banda de rock primitivo chamada Lactobacilos Vivos, da qual era vocalista, um incansável cowboy errante da Boca do Lixo que freqüentava os cinemas que passavam filmes pornográficos e na saída comia sacos de pipoca doce com muito bacon em carrinhos cujos donos ele conhecia havia anos), dirigiam-se ao apartamento dele nas horas em que sabiam que já tinha voltado do trabalho, invariavelmente ouviam-no praguejando frases como ‘a jornalista gorda tem que morrer empalada’.

Ela tinha facilitado a vida do gordinho para que ele se transferisse do almoxarifado para a imprensa e em troca ele teria gratidão enquanto fosse funcionário da Secretaria da Educação, mantendo a garrafa térmica sempre cheia de café quente, sempre se desfazendo das bitucas de cigarro que a jornalista gorda fumava escondida em sua sala desobedecendo a lei antifumo e outros pequenos favores que geralmente nada tinham a ver com a prestação de serviços à população, sempre tão carente na melhora do setor de educação. Faziam festinhas às sextas-feiras com refrigerantes e salgadinhos e tortas e bolos, no meio do expediente. A lei antifumo não era respeitada, fumava-se demais mas nas festinhas nunca havia uma latinha de cerveja sequer. O pessoal ficava satisfeito só com os remédios controlados que consumiam.

Naturalmente o gordinho achava que ninguém se importaria com seu hábito matinal de pegar os suplementos de cultura dos jornais, afinal ele não era realmente interessado em cultura e jamais compreenderia as razões de alguém que realmente fosse. Simplesmente convencionou por conta própria que poderia se apossar dos jornais. Ele não sabia que antes dele ser transferido de setor Thales também pegava para ele o caderno de cultura dos jornais atrás de alguma informação que prestasse a respeito de música ou cinema ou literatura. Era muito difícil conseguir informações culturais relevantes por meio dos jornais, mas essa procura ajudava a fazer com que o tempo passasse um pouco mais rápido naquelas manhãs azedas.

Os problemas com a ressaca, as dívidas, a perseguição dos oficiais de justiça e os problemas que surgiam ao acaso por culpa dos outros o faziam sentir um desespero tamanho que a impressão que tinha era de que quanto pior ele se sentia naquelas manhãs, mais à vontade sentiam-se seus colegas, especialmente o gordinho. Pareciam familiarizados com a vida de merda que levavam enquanto Thales era um turbilhão de ódio que não conseguia sossegar e aceitar certas coisas como elas sempre foram.

Mesmo quando conseguia confirmar para si próprio que a vida desses colegas era na verdade pior do que a morte, ainda assim Thales não conseguia sentir-se confortável. Parecia não haver meios de Thales conseguir se abstrair daquela atmosfera de desolação. Sabia que todo o resto seria uma prova de sua paciência. Parecia haver apenas um fiapo de luz que servia como válvula de escape, que era o fato de que Thales aproveitava o tempo ocioso em seu horário de estágio escrevendo seu livro, onde relatava seus dissabores e suas desventuras cotidianas.

Suas limitações técnicas para escrever o envergonhavam, mas ele se sentia bem usando aquele período em frente a um computador para tentar melhorar. A simplicidade na escrita poderia tranquilamente fazer parte de seu estilo. Sabia que essa melhora era uma questão de prática na escrita aliada a muita leitura. O tempo poderia se encarregar de fazer dele um escritor melhor. O maior de seus medos era que seu trabalho fosse terminasse aproximado do que faziam todos aqueles escritores que surgiram com a internet. Para Thales a internet destruiu a literatura e o jornalismo. Muita gente burra passou a se apresentar como escritor ou jornalista depois que os recursos digitais se tornaram mais acessíveis para que se publique e leia. E essa gente continuaria publicando todos os dias e teriam blogs e mais blogs. A consciência de que o problema era com as pessoas e não com a tecnologia às vezes o confortava e em outras vezes o deprimia.

Não era por se achar especial, mas Thales entendia que se sua revolta fosse bem canalizada poderia fazer algo a médio prazo que fizesse com que seu sofrimento valesse a pena. Àquela altura ele via saída apenas na literatura. Também via nela possibilidades fortes para chegar à sua ruína definitiva. Os escritores consagrados se afastam dos problemas reais depois que tem seus livros publicados, vivem negando a convivência com tipos humanos sobre os quais escreveram para que se tornassem consagrados enquanto Thales ainda estava submerso no um mar de merda que para ele era a cidade de São Paulo. Pelo menos para quem tem pouco dinheiro o sofrimento é realmente grande nessa cidade.

Pode-se deduzir que há como empecilho para a maioria desses homens das letras que ainda estão vivos a falta de juventude e saúde para que tenham uma vida de ação ao invés de limitarem-se à produção literária apenas porque isso pode render mais dinheiro do que o salário pago ao cidadão comum. Confinam-se então em seus confortáveis gabinetes cheios de livros e de anotações em pedaços de papel espalhados pela mesa e bibelôs. Procuram cumprir suas metas diárias, tentando atingir o número de palavras que consideram suficientes para um dia de trabalho para que logo possam ter algo para ser lançado pelas grandes editoras enquanto seus nomes ainda valem alguma coisa no que diz respeito às vendas. Alguns deles vão parar nos melhores lugares das prateleiras das livrarias, onde são vistos por gente que compra livros por acham elegante tê-los em casa.

Aqui se faz necessário esclarecer que Thales não tinha raiva ou inveja dos escritores que atingiam esse patamar. Tratava-se de ansiedade para que atingisse esse mesmo nível. A fama que os bons escritores tinham de serem arredios provavelmente eram nada mais do que autodefesa que as pessoas inteligentes tem contra a inviabilidade do ser humano. Quanto aos jovens que se autodenominam escritores não há nada de relevante a ser dito. Eles vão poluir a internet de uma maneira brutal escrevendo só reflexões burras.

A necessidade de ganhar algum dinheiro para financiar seus projetos mais básicos e suas necessidades materiais reais era algo que lhe tomava muito tempo e energia. Era preciso ainda ter uns trocados a mais para comprar algumas fichas para o jogo indecente que era a vida em São Paulo. Não era o trabalho em si, porque ele nem sequer trabalhava de verdade. Conseguia matar o tempo de uma maneira razoável. Queria fazer com que o sistema ficasse ainda mais calamitoso. O desgaste ao lidar com as pessoas era realmente o pior de tudo.

A movimentação estéril do povo paulistano pelo centro da cidade em horário comercial o chocava. Sentia fascínio pelo Centro, mas queria mesmo era estar na janela de um bom apartamento de onde tivesse uma bela vista de uma ampla área da cidade e podendo olhar de longe no fim da tarde toda a selvageria que se passa por ali diariamente. A maneira como as pessoas se sujeitavam a viver passivamente como gado em filas descomunais para os serviços públicos mais elementares, como entrar num ônibus para voltar para casa depois de um dia desgraçado sem que houvesse qualquer esboço de rebelião, a não ser as agressões entre os próprios ditos cidadãos.

Morando perto do local onde trabalhava, Thales não precisava passar por esse tipo de transtorno, mas sofria com problemas menores em sua ida ao trabalho. Aqueles faxineiros dos prédios lavando a calçada e ele andando rápido e atrasado mesmo morando perto do trabalho, e preocupado em não assustar o cara que lava a calçada enquanto passasse, porque o sujeito poderia virar-se descontrolado e molhando-o todo. Velhas senhoras que acordam cedo facilmente, mas que andam com dificuldade na rua e Thales tem medo de derrubá-las ao desviar do jato d’água da mangueira do faxineiro desastrado. Todas as manhãs de segunda à sexta pareciam prometer muita chateação até o fim do dia.

Thales buscava infatigavelmente acumular cultura autodidata para se tornar um escritor cuja obra não pudesse ser chamada de antropológica, nem política, nem sociológica e nem jornalística. Queria se tornar um ficcionista que conseguisse fazer com que as costuras entre ficção e realidade ficassem devidamente escondidas do leitor. Deveria construir uma obra atemporal e pouco circunstancial. Ou então se tornaria músico. Não um músico com erudição técnica, mas alguém que fizesse uso da música para se rebelar contra a odiosa estrutura social que tragava toda sua vontade de permanecer vivo.

Sabia no entanto que a única coisa que o faria dar cabo da própria vida seria um emprego no qual precisasse lidar com telefonia. Isso ele não poderia suportar em hipótese alguma. As pessoas mais baixas crescem ao falar pelo telefone, e a burrice dessa gente cresce na mesma proporção quando tem suas caras ocultadas. Reclamam sempre dos direitos que tem e também dos que não tem. Aquele tipo de conversa: “ Como cidadão eu tenho o direito..”, “Eu pago meus impostos em dia...”. Isso ia muito além do que Thales podia agüentar em troca de um salário baixo.

Thales sabia que tanto na literatura como na música muito do que ele adoraria ter feito ou dito já foi realizado. Tinha um grande pavor de cair em clichês, ainda que nem mesmo soubesse disso no período de produção de seus trabalhos. Alguém com cultura literária poderia ler e dizer que ele imitava o estilo de algum escritor que ele nunca tinha lido. Sabia também de suas limitações intelectuais, temperadas pelos anos passados em escolas públicas onde aprendia somente a roubar chocolates em supermercados com seus colegas, a escapar das ameaças dos caras mais velhos e brigar em ruas escuras. Como não tinha um porte físico avantajado na época do ginásio, sofria quando era pego de surpresa por algum mastodonte do colegial.

Era curioso para ele que apesar de tudo, tenham sido apenas os últimos anos que dilaceraram seu espírito de humanidade tornando-o um sujeito movido pelo ódio e pelo desprezo a seus semelhantes. Era principalmente pelo fato deles serem chamados de ‘semelhantes’. O retrocesso que parece ter havido nesse período no que diz respeito ao espírito humano o chateava. Talvez nem mesmo tenha havido um retrocesso, embora Thales não gostasse de atribuir essa mudança apenas à perda de sua inocência. Preferia crer que as coisas sempre foram de mal a pior desde que a proliferação humana começou sobre a crosta terrestre.

Tinha devaneios loucos em que surtava tentando solucionar para si mesmo uma equação na qual se confrontavam sua sede de sucesso comercial e a conseqüente culpa no caso de seu trabalho artístico alcançar mesmo esse êxito, pois preferia em seu íntimo que sua arte permanecesse noundergrounde se possível sendo publicada de maneira clandestina por causa de problemas com a censura. Entendia que a arte antes de chegar ao público tinha que causar pânico nas autoridades para que tivesse alguma legitimidade.

As soluções que encontrava para solucionar esse tipo de dilema nunca fugiam da prática de uma cultura subversiva sem o desejo de retorno financeiro, mas desde que alguma coisa simples e repentina acontecesse e garantisse a ele tranqüilidade financeira oriunda de outros meios que não fossem os artísticos. Alguma aposentadoria legítima que não fosse por invalidez e nenhum outro problema de saúde. Talvez a invenção de algo digno de patente.

O gordinho pegava os jornais porque queria ter a programação de TV para que pudesse aproveitar melhor seu tempo quando voltasse para casa, indo direto aos programas e filmes que lhe interessavam. Ele gostava de seriados americanos e de filmes de ficção científica. Ele assistia especialmente a série ‘Lost’, que Thales abominava mais do que acordar cedo. O gordinho gostava muito de videogame também. Era fã de toda a tecnologia que surgisse e que estivesse a serviço do nada. Seu gosto musical não era sequer digno de nota. Engolia qualquer tipo de porcaria pop que alguém lhe empurrasse güela abaixo.

Interessava a ele os novos lançamentos tecnológicos que possibilitavam a um cara ouvir música e falar ao telefone e acordar cedo com o aparelho o despertando. Um idiota completo, representante típico do estado de morte em vida, funcionário público concursado e que pasmem, leitores cidadãos que pagam seus impostos e etc... Esse infeliz trabalhava na Secretaria da Educação, esse que deveria ser o setor mais sério de todos. Um cretino que diariamente parecia se esforçar ao máximo para emporcalhar tudo o que tocasse. Mas esse gordinho era muito compreensivo, e se Thales pedisse a ele que o deixasse ler o jornal, não haveria problema algum para ele. O problema seria de Thales, que muitas vezes preferia ficar sem ler o jornal do que ter que interagir com aquele sujeito que não se incomodava nem um pouco com o contato humano. Isso fazia com que ele fosse o oposto do que Thales era como pessoa. Thales podia sentir enzimas ruins circulando em seu sangue toda vez que sentia esse ódio.

O gordinho era mais antigo na Secretaria do que Thales, mas era mais novo no setor em que se conheceram, a Assessoria de Imprensa. Esse sujeito era o retrato fiel da indolência e da inoperância do servidor público padrão. Era bastante bonzinho, passivo e medroso. Seu esforço jamais seria suficiente para que os serviços prestados pelo órgão que o empregava melhorasse. Era um empecilho que surgiu quando as coisas pareciam estar melhorando para Thales no seu cotidiano profissional. Haviam muitas acusações de corrupção entre os engravatados da Secretaria e Thales conseguia se sentir confortável por não ter nem sequer um envolvimento empregatício, pois seu contrato era de estagiário. Havia um certo Dr. Godói da diretoria que era um verdadeiro gangster. Fumava seus cigarros no banheiro da repartição pouco ligando para o aviso da proibição do fumo. Usava sapatos bicolores, esteve envolvido em suspeitas de corrupção e era a única pessoa da Secretaria com quem Thales simpatizava. Aquele era o tipo de homem que nunca o perturbaria por qualquer que fosse o motivo.

Numa manhã enquanto ia para o trabalho Thales pôde ver que Hemingway estava na capa do caderno de cultura de um dos jornais daquele dia enquanto um sujeito na rua o lia em frente a uma banca, e naturalmente o gordinho não sabia de quem se tratava, mas ainda assim guardou o caderno em sua mochila e deixou o resto do jornal à disposição dos outros funcionários. Thales por sua vez era fã do velho mestre e embora já tivesse lido todos os lançamentos de seus livros em português e suas biografias, sabia que alguma coisa nova podia estar sendo dita sobre o escritor, alguma nova descoberta em sua biografia, ou talvez alguns manuscritos tivessem sido recentemente encontrados. Pouco importa, o fato é que aquele gordinho era um empecilho para Thales e para a população, que tinha justamente na Secretaria da Educação um representante imbecil.

Thales, o estagiário culto, nem era tão culto assim, mas estava longe de ser o tipo de sujeito patético com quem tinha que lidar diariamente, tanto nas relações pessoais como nas profissionais. Eram seus colegas que o chamavam assim. Naquela secretaria em que trabalhava podia ser considerado um alto intelectual, tamanha era a burrice, à ignorância e a falta de discernimento dos seus colegas. Passou alguns anos vivendo praticamente na miséria, à base de pequenos furtos, empréstimos da mãe e revenda de drogas, só para não ter que se incorporar ao mecanismo social que o esmagava. Era algo controlado, pois se a casa caísse ele teria a quem recorrer. Acostumou-se muito bem a não fazer uso de serviços bancários e outras facilidades da modernidade que acabam por escravizar o cidadão médio. Era diferente de seu colega gordinho em todos os aspectos. Na verdade o gordinho era o que se podia chamar de cidadão, enquanto Thales era apenas um citadino.

Depois de conseguir uma bolsa de estudos para cursar Jornalismo numa faculdade particular, Thales ingressou como estagiário na Secretaria da Educação e ficou abismado com a tolice ou loucura ou ingenuidade de seus empregadores. A alta chefia nunca aparecia para trabalhar e provavelmente vivia ocupada fazendo uso de seus vencimentos mensais. Colocaram-no ali com o resto da equipe formada por oficiais administrativos e outros estagiários, onde diariamente Thales podia fazer relatórios para que ele mesmo guardasse para usá-los no caso de uma demissão injusta ou para o que quer que fosse. Poderia futuramente chantagear gente corrupta ou desafetos. Poderia ainda fazer literatura com o tempo ocioso que passava ali, fazendo uso da imensa quantidade de bizarrices que via diariamente.

O trabalho em si não era tão ruim, afinal ele não o fazia. Matava o tempo com pesquisas de seu interesse na internet e também aproveitava para escrever seu livro. Gostava de ler biografias resumidas de escritores tuberculosos. Naquele tempo a morte já os tinha livrado disso tudo. Thales era um corrupto que tentava aproveitar as facilidades que o Estado lhe proporcionava para investir o tempo que passava dentro daquela sala em algo relativo à produção cultural. Sentia-se bem por conseguir ao mesmo tempo ser ruim para a sociedade e por poder trabalhar para ele mesmo, fazendo com que seu expediente passasse um pouco mais rápido e ao final lhe desse a sensação de ter realmente construído algo que um dia podia lhe consagrar. Sendo assim, a coisa toda ficava um pouco menos penosa, até porque era remunerado. E era mal remunerado, de modo que podia usar a raiva para vitaminar seus textos.

O mais desagradável de ter que sair cedo para trabalhar era mesmo as pessoas, como sempre. Por que diabo de razão os colegas de trabalho precisavam sempre parecer gente que foi fabricada em laboratório só para constranger e limitar outros trabalhadores que ainda tinham alma? Era gente que também não se entregava ao trabalho, mas que gastava o tempo com as mais perversas futilidades, como usar os telefones da repartição para tratar de alguns tipos de problemas pessoais que só gente de muito baixa qualidade poderia ter. Problemas com famílias terrivelmente mal estruturadas. Gente que sem saber pagava caro por escolhas estúpidas e definitivas que fizeram em suas vidas. Escolhas feitas por impulsos burros e por influências idiotas. Eram portanto ainda mais corruptos do que Thales, e ele não queria salvar essa sociedade do caminho para o penhasco. Ele apenas queria não ser protagonista nessa trama toda. Ele não se importava de ir junto para a queda no penhasco, desde que pudesse sorrir nos últimos segundos se divertindo com o desespero de todo o resto. Os condutores para esse caminho jamais ririam no final. Estavam cometendo um suicídio voluntariamente. Os cristãos sempre pensam que no último minuto alguma força maior irá salvá-los, ensiná-los alguma lição e por fim perdoá-los.

Thales vinha de uma família problemática de classe média. O casamento de seus pais era confuso, assim como o conceito que eles tinham do que deveria ser uma família. Tinham ideais que eram uma mistura de moral católica com uma postura política de direita. Tanto o pai quanto a mãe de Thales também vinham de famílias católicas com ideais confusos. Para os dois, o fato de pagarem as despesas de casa quando os filhos eram dependentes os colocava numa posição de imunidade com relação a todo o resto. Pagar as contas era o único exemplo que precisariam dar. Pagar para que os filhos estudassem em escolas particulares, que os preparavam para se tornarem bancários fãs de Supertramp. Porém, quando algum desses jovens se rebelava, costumava ser pra valer e de maneira irreversível. É uma pena que sempre sejam tão poucos os que se opõe à estupidez dos pais.

Quando terminou o segundo grau aos dezessete anos, Thales passou a viver com uma antiga empregada de sua família. Uma negra gorda e bondosa que lhe fornecia comida, maconha e masturbação. Já praticavam essas ações antes que ela deixasse a casa de seus pais. Ele gostava de ejacular na cara dela. Sua primeira intenção ao mudar para a casa dela era fazer com que sua avó paterna o recolhesse em casa para que tivesse um bom nível de conforto, mas quando se deu conta de que a velhinha controlaria seu consumo de álcool, abortou a idéia e passou a viver um dia de cada vez.

Sentia que estava mantendo uma relação familiar fora dos padrões. Não se desvinculava completamente de seus laços familiares porque na verdade não queria que isso acontecesse. Quisesse ele ou não, isso significava um tipo se segurança, caso tudo desse errado. Caso virasse umhomelessvoltaria para a casa do pai para tomar banho quente e tomar sopa de ervilha com bacon. Carregava paradigmas católicos e ainda que reconhecesse esses paradigmas como burgueses e conservadores não havia conseguido livrar-se deles, mas nem por isso sentia-se mal pelas suas novas experiências pessoais.

Capítulo 6- ALL THE YOUNG DUDES

A última semana antes de Thales receber seu salário sempre era difícil, principalmente para comprar bebida. Geralmente era preciso abrir mão do uísque e fazer alguma compra que tivesse o custo-benefício mais favorável. Geralmente a vodka era a escolha que parecia mais razoável. Custava menos da metade do uísque e tinha um teor alcoólico praticamente igual. Thales gostava de vodka, era uma bebida versátil e agradável, combinava com o suco de várias frutas. Mas ele gostava mesmo era de uísque e sentia falta. No entanto, a sensação de embriaguez era parecida a partir da metade das garrafas e ele ficava bêbado da mesma maneira. O problema era que entre seus amigos e amigas a vodka era mais apreciada que o uísque. Durava menos do que quando comprava uísque e isso mexia na questão do custo-benefício.

Nesses fins de semana de dureza que antecediam o recebimento do salário Thales de vez em quando ‘vendia’ umas festinhas para conhecidos de seus amigos. Algumas dessas pessoas eram fascinadas pelas prateleiras cheias de Lp’s de Thales. O que geralmente ficava combinado nessas ocasiões era que essas pessoas que não eram amigos ‘de primeiro grau’ levariam boas bebidas e entorpecentes para que Thales tivesse seus gastos amenizados. Ele até preferia ter menos gente em casa, mas as garotas que conhecia na época em que entrou para a Secretaria da Educação escolhiam justamente esse período triste do mês para ficarem menstruadas, e ao alegarem isso a Thales ouviam dele as piores grosserias, e então ficavam em casa mexendo em suas fazendinhas virtuais na internet. Elas não procuravam Thales por interesses financeiros, até porque isso seria ridículo, mas sempre surgiam quando ele não precisava realmente delas, que era o período do mês em que ele tinha pelo menos como comprar seu uísque e sua maconha, que faziam com que ele perdesse parte do interesse por elas.

Num domingo à noite que antecedia a data de seu pagamento ele ainda pôde tomar uma garrafa de vinho argentino que estava em promoção num supermercado do bairro da Liberdade. Comprou ainda uma pequena quantidade de maconha nas redondezas. Era bastante comum que chegasse às vésperas do dia de receber o salário sem que tivesse um só centavo há dias. Era ruim quando o pagamento coincidia com o início da semana.

Estava a beber o vinho na frente de um hospital próximo à Estação São Joaquim do metrô, para ficar olhando ali de fora como as coisas podem ficar realmente difíceis quando se adoece gravemente sem que se morra. Pensava por alguns instantes em como deveria ser cruel a realidade de um sujeito que está definhando e olhando pela janela do hospital e pensando na sorte que tem os jovens saudáveis que perambulam pelas ruas, ainda que levando uma vida estúpida. E Thales abriu o vinho e ficou parado do outro lado da rua e ninguém que passava ali podia imaginar que ele não estava esperando para visitar algum conhecido no hospital, de modo que aproveitou alguns minutos do final do domingo sem que lhe incomodassem.

Naquela noite um japonês mendigo o abordou, dizendo a ele que queria um real e cinqüenta centavos para completar o dinheiro que faltava para comprar uma paranga de maconha. Claro que Thales num primeiro momento ficou intrigado porque sabe-se que ninguém vê um mendigo japonês por aí, ainda mais um que fala a verdade a respeito do que faria com o dinheiro caso seu pedido fosse atendido. O sujeito tinha uma garrafinha de plástico com pinga misturada com coca-cola e pediu que Thales lhe desse dois dedos de vinho para misturar ao conteúdo de sua garrafinha.

_ Porra, mas você já está tomando uma bebida mais forte que a minha e já está bem mais louco que eu. Se você misturar vinho isso aí vai ficar muito ruim pra beber e a minha cota do domingo à noite estará desfalcada. Na real não tenho a grana pra te emprestar, mas tenho um fino aí, a gente pode fumar e cada um bebe sua bebida. – disse Thales.

_ Ah, valeu, sendo assim já estou no lucro! Mas saiba que eu morro todo dia e espero que nunca precise deitar numa UTI. Por mais que eu esteja todo cagado na vida ainda tenho minhas pernas e posso andar por aí e sentir o gosto da vida. Às vezes o gosto é doce, às vezes é amargo e tal... Eu sei o que você está pensando. Está pensando que dentro de um desses quartos do hospital poderia estar você entubado. Eu espero que você também nunca precise passar por isso. Algo me diz que você também preferiria a morte antes desse estágio.- disse o japa, que um segundo depois de concluir a frase virou-se para abordar um senhor japonês que passava por ali e a cena foi curiosíssima para Thales porque essa abordagem foi feita em japonês e o jovem conseguiu o dinheiro do velhinho para inteirar o preço do fumo.

Thales percebeu que não deveria perder a oportunidade de saber mais sobre aquele sujeito, especialmente quando soube que seu nome era Lawrence Massahiro. Era um nome incrível para um japonês, ainda mais sendo um pedinte, algo que Thales nunca tinha visto e já não esperava ver um dia.

Lawrence era um cara que fazia o tipo rebelde, não umnerd. A despeito disso, Thales pôde notar quase imediatamente algo no japonês que considerava um defeito: ele parecia ser mais um ‘engajado’. Isso o cansava um pouco. Não era raro encontrar caras assim nas rodinhas de cabeludos bêbados dos bares de Rock da cidade. Aquelas ideologias políticas obtusas e humanistas, aquelas convicções inflexíveis a serviço do nada.

Em alguns minutos, mesmo estando um pouco embriagado, Lawrence conseguiu transmitir a Thales certas lições que o ensinariam a não se atormentar com questões relativas ao sentido da vida. Thales já tinha buscado respostas para seus dilemas na filosofia, na teologia e na ciência. A noção equivocada de que apenas conhecimentos teóricos o libertariam foi derrubado ali mesmo, por esse japonês pedinte e bêbado. Thales era mais um prisioneiro na cidade grande. Talvez não servisse nem mesmo para entrar em estatísticas oficiais sobre o que quer que fosse.

Lawrence anunciou que iria até a boca pegar a maconha e que voltaria para que fumassem juntos. Era uma noite fria para os padrões de São Paulo, mas mesmo assim o clima era agradável por causa do torpor alcoólico. Thales ficava olhando a desolação das pessoas que tinham parentes em estado grave do outro lado da rua, famílias inteiras agonizadas na porta do hospital esperando por notícias que sabiam que dificilmente seriam animadoras.

_ Vou descer logo ali na ruazinha em que a molecada vende droga e volto com a paranga e a gente detona logo um charutão pra ficar do jeito certo para um domingo à noite. – disse o japonês e desceu dirigindo-se para a boca.

A garrafa de tinto ainda não tinha chegado à metade e Thales então separou um pouco de sua maconha para juntar ao baseado de Lawrence. Thales por alguma razão sabia que o cara voltaria e de fato ele voltou. Foram fumar numa ponte que passa por cima da Avenida 23 de Maio e que liga a Avenida Liberdade à Brigadeiro Luís Antônio. Ali Lawrence contou a Thales sobre sua vida, mencionando inclusive que várias pessoas surpreendem-se ao ver um japonês pedindo dinheiro na rua.

Estava claro desde o começo que não se tratava exatamente de um mendigo, mas ao longo da conversa Thales descobriu que Lawrence era um jovem pai de família que não tinha muita vergonha na cara e que largava a mulher e a filha pequena em casa para ficar se embebedando. Fez uma escolha para a qual não havia volta e para a qual o arrependimento nada servia. As histórias que aquele japonês contava fizeram com que Thales se lembrasse de uma geração de japoneses rebeldes que conhecia quando ainda estava no colegial. Com aqueles japoneses da escola não havia meio termo. Os japas eram o que havia de mais sério ou então eram delinqüentes descontrolados.

Ele disse em sua casa que voltaria não muito mais tarde com comida, só para que pudesse sair e sua esposa achou que ele tivesse algum dinheiro. Levou consigo o resto de pinga que ainda tinha e deixou que as coisas se resolvessem por meio do bem estar alcoólico. Contou a Thales que desde o final da manhã havia conseguido fazer com que os atendentes dos bares por onde passou ao longo de sua peregrinação colocassem para ele um dedo de pinga em sua garrafinha e assim foi se mantendo em fogo perene até o anoitecer. Já estava precisando de maconha para temperar a embriaguez e logo estaria precisando de cocaína para ficar de pé e depois que o preço do pó impossibilitasse a compra, então Lawrence descambaria para o crack. Embora estivesse contando fatos interessantes de sua vida, já devaneava sobre o projeto musical que tentava desenvolver e cujo gênero seria o ‘punk progressivo’, algo que a principio pareceu a Thales um pouco pretensioso por se tratar de vertentes inconciliáveis e até mesmo antagônicas do Rock.

_ Quando minha banda estrear o mundo vai ter o que merece em termos de castigo. – disse Lawrence.

_ Mas você já tem a banda? – perguntou Thales.

_ Tenho em mente o que espero que seja o som da banda, mas ainda não tenho muita idéia de quem vou chamar pra tocar. Isso dependerá de uma série de fatores. O nome da banda será Vasectomia e a princípio é como um projeto solo. Pode não ter outros membros permanentes além de mim. Trabalhar assim é algo vantajoso em alguns aspectos.

_ Tem sim, mas eu sempre achei que ter uma banda fosse mais divertido do que ser dono do nome da banda e agir como artista solo.

Lawrence contou que duas noites antes tinha ido a um show dos Main Drags e tinha aprendido ali mesmo a lidar um pouco melhor com o fato de que a vida pode nos pregar várias peças sem escolher as horas mais convenientes. Não cansava de repetir a Thales sobre sua paixão pelo Rock and Roll como linguagem. Num determinado momento começou um longo discurso a respeito de suas teorias:

_ Parece que eles arrumaram um contrato com uma gravadora indie lá de fora cujo dono estava anteontem assistindo ao show com uma garrafa de uísque na mão e um charuto na outra, suando, sem camisa e cantando as músicas aos berros. Aquilo me pareceu uma banda que sabe que Rock é rebelião. Foi sensacional! O Brasil nunca foi nada propício pra fazer Rock, mas parece que finalmente surgiu algo relevante. Algumas das influências deles são claras, mas há elementos naquela música que os fazem originais. Até mesmo o jeito como misturam é feita a mistura, e não só os tipos de influência que usam. Eu tenho uma bronca maldita de MPB porque além de detestar musicalmente o gênero e as pessoas que o fazem, há aquela exaltação da brasilidade, o que me chateia muito. Sou um japonês que absorveu certos aspectos da brasilidade, mas desprezo um monte de outros desses aspectos. Lá em casa minha mulher fica ouvindo aquela nova MPB universitária e também os mais velhos que fizeram passeata contra a guitarra elétrica em 1967 e eu fico puto, e isso invariavelmente faz com que eu saia de casa pra me embebedar com uma certa frequência. Quer dizer, os ídolos musicais dessas pessoas fizeram uma passeata contra o uso da guitarra elétrica na música brasileira no mesmo ano em que o Cream, os Beatles, os Byrds, os Beach Boys, Jimi Hendrix, Kinks, Rolling Stones, Yardbirds, Paul Butterfield, The Who, Pink Floyd na fase mais legal com Syd Barret, Booker T, Love, Strawberry Alarm Clock, Small Faces e mais um monte de bandas maravilhosas estavam no auge e lançando discos maravilhosos e eternos. Não há um dia na minha vida em que eu não tenha vontade de chorar por ter cagado na minha vida ao me casar, mesmo tendo sido por causa de uma gravidez indesejada que caiu como uma bomba sobre a minha cabeça. Eu certamente não tenho respeito pela inteligência dessas pessoas. As cagadas que fiz na minha vida foram por causa da bebida. Mas eu divido a culpa com ela e com as pessoas que me ajudaram a fazer essas cagadas. Muitas coisas que eu fiz de ruim pra mim mesmo já foram esquecidas e muitas delas eu adoraria que permanecessem esquecidas. Pelo menos eu não guardo rancor de mim mesmo. Essa é a grande vantagem do anonimato. Ninguém se interessa pelo seu passado, de modo que seus amigos e parentes não são procurados por biógrafos para que um livro sobre sua vida seja escrito. Se um dia a minha existência pagã despertar o interesse de alguém e isso puder fazer de mim um cara rico, isso já não fará mais nenhuma diferença. Não vou mais poder gastar com as coisas realmente boas. Esse dinheiro com o qual eu sonho hoje em dia pode me matar ao invés de me salvar, se chegar tarde demais. – disse Lawrence.

_ Pois é, o Rock tem que ser considerado uma forma de rebelião mesmo e eu também sinto uma raiva profunda de roqueiros que são fãs de MPB. Eu também me deparo de vez em quando com esse tipo de coisa e apesar de manifestar meu ódio a essa falta completa de noção que algumas pessoas tem ao tentarem se situar naquilo que gostam e acreditam essas pessoas continuam no meu calcanhar. Elas nem ao menos tem consideração por si mesmas, pois sabem que toda vez que se dirigirem a mim serão destratadas, e eu faço isso mais por não conseguir segurar a raiva do que por achar que eu posso mudar o jeito delas pensarem. Eu acho que elas nem merecem ser corrigidas. Merecem continuar do jeito que são. A raiva que sinto é por ter que agüentar isso. – respondeu Thales.

_ É preciso que o Rock volte pras ruas, que o lugar dele, de onde jamais poderia ter saído, e feito por gente que tenha plena convicção de que esse sistema tem que ser sabotado. Gente como você, que choca as pessoas com sua cabeleira que vive clamando por um pente... Pense em como estaremos quando estivermos mais velhos, ou bem mais velhos, octogenários... Seria preciso contratar umas enfermeiras muito bem remuneradas pra agüentar a gente, NE, seu canastrão? Velhos tarados e rebeldes... Eu sei que hoje em dia falar mal do sistema já é um velho clichê, mas é daquele tipo de clichê que se tornou clichê por ser uma verdade absoluta. Quanto mais débil mental e descontrolados forem os que se atreverem a ter uma banda de rock, melhor. Se é uma pessoa tímida e introvertida deveria fazer cerâmica, ou algo assim. – disse Lawrence.

_ Você viu que o Ronnie James Dio morreu? Ele parecia imune a isso. Goste dele ou não, o fato é que ele era um personagem do Rock, o Rock precisa de personagens...

_ É umas das coisas que o Rock mais precisa. Eu o vi de perto nos bastidores de festival de metal em Atlanta, ele era da altura do Ferrugem... Pois é, eu estive lá... Sou razoavelmente viajado. Hoje estou financeiramente fodido, mas algumas coisas que tive não se vão do mesmo jeito que o dinheiro. Inclusive essas coisas boas que podem ser compradas com ele.

_ O Dio acumulou fama e fortuna e agora está em outra... Quando eu morrer sei que para mim não vai fazer diferença alguma se eu for esquecido ou não. Esse mundo é tão desprezível, e dele não levamos nada... Ficar eternizado pra que? Eu queria bem estar e dinheiro enquanto estiver aqui, mas sem os holofotes... A fama é muito vil e desprezível... Gosto de não ser um cara vaidoso... Reclamo de tudo mesmo, não consigo lidar com os valores da sociedade, não apóio nada que esteja relacionado ao modo como as pessoas vivem, e portanto penso que o importante é que a vida seja razoavelmente divertida, como a dos velhos cowboys errantes que tomavam Jack Daniel’s nos confins da América do Norte e não tinham que se preocupar com horários e nem com o excesso populacional das cidades grandes. Seus velhos cavalos dão grandes goladas de água enquanto os cowboys tiram suas botas e jogam fora aquelas pedrinhas que o massacravam... Pigarreiam, cospem e seguem seu caminho, só ouvem música quando as velhas músicas do Hank Williams martelam suas cabeças ou em bares com música americana de raiz...

_ Pois é, isso parece ser algo próximo do que deveria ser entendido por liberdade. Eu também não tenho qualquer identificação com a maioria das pessoas com quem eu tenho que conviver. E eu só tenho que conviver com elas por causa do dinheiro, que é escasso e me permite apenas uns bons momentos que são passageiros. A fama e a fortuna proporcionariam vida confortável, mas é inerente ao ser humano arrumar problemas novos depois que os antigos são sanados. Certamente o assédio seria maior se eu deixasse o anonimato pra trás e considerando que eu já me incomodo com o assédio mesmo sendo anônimo, provavelmente eu continuaria no inferno, mas seria um inferno um pouco diferente. Eu não sou do tipo que gosta de dar ordens, então não me importo de não ter empregados me servindo. Gosto mesmo é de ter as contas pagas sem que tivesse que me preocupar com a falta de dinheiro e com operações bancárias. A probabilidade de eu enriquecer é tão pequena que eu espero mesmo é pela invasão de alienígenas, e na minha cabeça essa visita seria terríveis para os humanos. Provavelmente bem pior do que a invasão espanhola foi para os índios de todo o continente americano. Eu não me importaria de ser destruído junto com os outros. Minha alegria seria ver tudo isso ser destruído, porque de qualquer forma eu não contribuí em nada para que a humanidade chegasse a esse ponto. Não me importo de ser chamado de vagabundo. Sinto-me bem por jamais ter sido conivente com essa porra toda. É legal que você tenha ouvido o que eu tinha pra falar, porque eu entendo perfeitamente o quanto é difícil se ligar em algo que não lhe diz respeito.

_ Eu gosto de ouvir alguns loucos que estão desolados e querendo resolver os problemas com bebida e maconha. Eu uso do mesmo método. Eu também não me importaria de ter minha vida interrompida pela invasão dos alienígenas. Não me importaria de ter minha vida interrompida por algo que valesse a pena. Numa ocasião, num vôo que me traria de Salvador a São Paulo, encontrei os caras do Engenheiros do Hawaii. Eles desceram no Rio. Antes disso eu realmente torci para que o avião caísse, mesmo comigo dentro. Não me considero um humano que esteja de acordo com o que historicamente foi convencionado como o que deveria ser o humano exemplar. Convém lembrar que foram os humanos ditos exemplares que tornaram o planeta inviável.

O japonês àquela altura já tinha demonstrado também ter boa cultura literária, pois falava de escritores dos quais Thales também gostava, além do fato de que Lawrence era articulado mesmo sob o efeito da bebida. E foi justamente o efeito da bebida que o fez ficar mais exaltado com as conclusões filosóficas a que chegava sobre o mundo e sobre a música e sobre as ruas e sobre o caso de ele não conseguir deter aquele turbilhão. Provavelmente iria surtar e não tinha mais dinheiro para consertar a situação com mais drogas e bebidas. A maneira como estava se sentindo em relação a tudo já parecia irremediável. Tudo o que lhe vinha à mente remetia a colocar um fim abrupto e definitivo em sua vida.

Poderia terminar numa pior virando um nóia do centro da cidade. Aquela é uma realidade terrível mas que existe há tempos e simplesmente porque existe, é do tipo de desgraça que resulta da forma como os humanos juntos se organizam e todos os pés imundos que perambulam ali nas madrugadas com cobertores fedendo a mijo e merda e limbose sobre os ombros tem uma justificativa para estar ali.

Se isso acontecesse, Lawrence se tornaria mais um encosto para Valtinho, amigo de Thales que morava na região da Boca do Lixo, a atual Cracolândia. De qualquer forma, se perder também é um caminho. Não há caminho que não seja legítimo. Cada um sabe das razões pelas quais escolhem o seu próprio. Afinal, o que é que os outros sabem sobre isso? Os outros sabem apenas fazer com que pensemos que com eles tudo quase sempre corre bem.

Valtinho sempre dizia a Thales: “Olhe, aqui é um ótimo lugar para viver. Quando fecho a porta do meu apartamento e mergulho na tranqüilidade do isolamento completo não faz a menor diferença o nome do bairro em que moro. Os nóias ficam todos do lado de fora e como sinto um desprezo muito profundo pelos humanos de um modo geral, sinto-me bem ao vê-los pela minha janela cada vez mais perto da ruína definitiva enquanto estou aqui dentro. De qualquer modo eles existem. Se não fumarem pedra nessas ruas estariam fumando numa linha de trem ou sabe-se lá onde. Só me deprimo mesmo quando é preciso sair de casa. Tudo me aborrece. Com tantos livros bons pra ficar lendo na cama. Infelizmente, nessas horas é inevitável a convivência humana para tudo, até mesmo para comprar pães na padaria. Eu jamais me senti sozinho. Provavelmente jamais me sentirei. Sinto-me como a melhor forma de entretenimento que eu possa ter.”

A misantropia de Valtinho exercia uma forte influência sobre Thales. Valtinho parecia ter acesso ao que de mais bizarro existia na cota mais degradada da espécie humana e seus relatos muitas vezes aborreciam e chocavam Thales menos do que o comportamento padrão da maioria das pessoas consideradas normais em seus cotidianos. Foi através de Valtinho que Thales conheceu Baguinho, um velho punk que teve um dos bagos comido por uma ex-namorada depois de uma briga por causa de bebedeira. Ele entrou num estado que parecia ser o de coma alcoólico e de tão anestesiado que estava mal sentiu quando teve um bago arrancado a dentadas pela fulana. Entre esconder sua angústia e contar ao velho amigo Valtinho sobre o ocorrido, Baguinho escolheu a segunda alternativa. A única coisa que ganhou com isso foi o apelido e também fez com que muita gente no Centro tomasse conhecimento de seu drama. O que nunca foi esclarecido foi se o bago que ele teve comido foi o direito ou o esquerdo, embora muito tenha se especulado a respeito.

Baguinho tinha uma espingarda de chumbo e gostava de atirar nas pombas doentes que ficavam respirando ruidosamente sobre a marquise do prédio da frente. Nunca as matava, porque a espingarda não era forte o suficiente e também porque gostava de vê-las sofrendo e se debatendo na calçada depois de caírem na marquise. Sentia um prazer muito especial quando algum gato vira-lata do centro as devorava avidamente.

Quando Thales e Valtinho falavam sobre Baguinho em sua ausência, sentiam-se como se o cara estivesse vivendo uma pausa em sua conturbada existência e ficasse num éden repleto de paz e bem estar enquanto a conversa sobre ele rolava e cada vez mais relatos de insanidade e descontrole eram feitos por Valtinho. No entanto, quando Baguinho estava presente e relatando os fatos por conta própria, aí Thales pensava estar realmente diante de uma lenda da bizarrice que jamais terá um segundo de tranqüilidade para si e para quem estiver num raio de cem metros. Com mais de quarenta anos de idade ainda não tinha conseguido controlar sua hiperatividade e sua ansiedade diante de expectativas raivosas mas inverossímeis e ingênuas. Quando Thales o conheceu, Baguinho levantou a camiseta e mostrou o que dizia ser uma hérnia que havia estourado mas que parecia algo como um câncer no baço, uma protuberância na lateral do tronco acima da cintura que estava do tamanho de uma laranja, o que o impedia de abaixar-se para amarrar os sapatos que naquele dia eram um par de tênis Rainha de lona bem castigado e com os cadarços bastante encardidos.

Valtinho tinha uma namorada, Maria Eugênia. A garota era veterinária e não havia um só dia em que não dissesse a Valtinho que ele precisava ser ‘mais ambicioso’. Era difícil para ele ser duro e incisivo para mandá-la às favas de uma maneira definitiva, porque a tal ambição a qual ela se referia era tomar a decisão de se casar e morar num apartamento maior e num bairro mais familiar. Ele não tinha esse tipo de ambição materialista, porque não tinha planos de constituir uma família e porque gostava do centro da cidade. Maria Eugênia era uma boa garota. Era bonita e meiga, agia de modo que fazia Valtinho sentir-se confortável com relação a não ser um eremita bêbado, daqueles que não tem a quem recorrer em dias de ressaca extrema. Ele tinha tendência para ser beberrão e mulherengo, mas sentia falta de ter uma garota cuidadosa lhe dando alguma estabilidade emocional. Para Valtinho era necessário viver um dia de cada vez, adiando o quanto pudesse as decisões definitivas em sua vida.

Capítulo 7-WHAT ARE YOU DOING IN DOWNTOWN?

Havia um bar gay no centro em que o gordinho se embebedou numa noite de quinta-feira ouvindo na jukebox a canção ‘Waiting On a Friend’ dos Stones por dezenas de vezes seguidas e no dia seguinte foi encontrado chorando na sarjeta ali no centro mesmo, perto do seu trabalho. Aparentemente não tinha tendências para o alcoolismo, nunca falava sobre bebedeiras, nunca reclamava de ressacas nem chegava bêbado no serviço. Ouvia histórias de bebidas e drogas quando seus colegas do trabalho e da faculdade as relatavam. Parecia ter tido uma vontade repentina de se rebelar contra suas frustrações, certamente causadas pela decepção por ver seus pobres sonhos cada vez mais distantes, enquanto na televisão assistia a histórias que sempre terminavam com um desfecho no mínimo satisfatoriamente feliz.

Naquela ocasião tomou um cacete da polícia porque tinha perdido os documentos e também porque completamente bêbado insinuou estar com desejo de transar com um dos guardas. Thales quando soube da versão oficial dos fatos se sentiu estranho por causa de uma certa compaixão por aquele sujeito que mesmo sem querer o fazia passar nervoso todas as manhãs de segunda à sexta. Tudo o que queria era não ter que conviver com aquele sujeito. Essa falha moral não havia mudado em nada o que pensava sobre o sujeito. Não se tratava de ódio. O gordinho acordou no corredor de um hospital público sob os cuidados de uma velha senhora que trabalhava na Secretaria da Educação servindo chá e café havia muitos anos e o conhecia desde que ele começou lá e que gostava desse gordinho porque nunca teve filhos nem netos e via nele um neto ideal.

Ela perguntou a ele o porque desse repentino descontrole e o gordinho disse a ela que sempre lia sobre crianças que eram molestadas e que ele sempre sonhou com isso mas que nunca aconteceu com ele. Já tinha 21 anos mas ainda estava descobrindo sua sexualidade e também a bebida. Sonhava com festas no Studio 54 e sempre nas melhores partes do sonho sua mãe o acordava dizendo que seu leite com café estava pronto. Na noite de descontrole alcoólico o gordinho queria partir em busca do tempo perdido, tentar achar alguém que o achasse atraente, ou que ao menos visse nele um humano sensível e que procurava por um companheiro dedicado. Talvez um cara mais velho e experiente.

Thales gostava de saber que os ideais românticos do gordinho não estavam se realizando, porque com o passar do tempo aquele infeliz parecia cada vez mais triste e moribundo. Pensava para si: ‘Esse tipo desprezível de gente merece ter uma vida pessoal arruinada, uma vida amorosa destruída e merecem errar apostando todas as fichas nas relações de trabalho, porque é a pior parte do dia e da vida’. Era exatamente isso o que acontecia com o gordinho. As relações profissionais jamais serviriam para que ele se sentisse verdadeiramente realizado, pois era um emprego que não satisfazia sua vaidade. Nem contatos para que crescesse em outros setores da vida ele tinha ali. O máximo que conseguia era ser elogiado pelo esforço. Esse esforço não salvaria nunca a fama ruim dos funcionários públicos brasileiros. O anonimato o incomodava bastante. Sonhava com algum glamour em qualquer um dos setores da vida.

De fato o gordinho parecia mesmo se sentir um pouco mais feliz apenas das oito às catorze horas, de segunda à sexta, no horário em que estava trabalhando, porque ali ao menos havia quem o estimasse. Importava-se com valores hierárquicos nas relações de trabalho. Todos os setores de sua vida estavam falidos, mas no trabalho havia pelo menos a possibilidade de ver pessoas que eram felizes fora dali, mas que sofriam por terem que estar trabalhando, e Thales era uma dessas pessoas. É importante deixar claro que o tipo de felicidade aqui especificada é relativa à auto estima e à confiança em si mesmo, ainda que haja sofrimento, falta de dinheiro ou qualquer um desses tipos de problema.

Para Thales, ter conhecimento da existência da jornalista gorda e do gordinho o faziam pensar que sua biografia não era tão torta como sua mãe o fazia crer quando ainda era uma criança e que suas escolhas às vezes desastradas, bem como sua postura até certo ponto arrogante não faziam dele um humano que desonrasse a espécie. Além do mais essa gente serviria de base para personagens bizarros na produção de seu livro. Eram personagens prontos, na verdade, que de tão bizarros e caricatos precisariam de alguns ajustes.

Para tudo o que havia de bom em sua vida parecia necessário ter como referência o que havia de errado à sua volta e ao redor do mundo. Sua condição de subalterno não o incomodava. As chateações no trabalho iam além disso. Para ele hierarquias não diziam nada. Até porque ali Thales podia dedicar-se à literatura, trabalhando para ele mesmo. Ninguém o desrespeitava, porque sua cara de poucos amigos e as chances que lhe davam para falar sobre sua mágoa com a espécie humana o protegiam. Quando conseguia escrever mais de quinhentas palavras numa manhã em que deveria estar trabalhando, perguntava-se ao fim de seu expediente se tinha mesmo tantos motivos para reclamar da vida. Será que o fato de a qualidade humana ser de um modo geral algo tão desastroso era um problema real para ele, sendo que se considerava uma exceção e conseguia se abstrair razoavelmente da convivência com quem desprezava?

Capítulo 8-THAT SUMMER FEELING

Thales sofria de ansiedade. Sofria demais também com a convivência forçada do cotidiano com seus colegas de trabalho na repartição pública e tinha uma convicção plena de que sua insatisfação para com o comportamento das pessoas que o cercavam era plenamente legítima. Músicos e escritores geniais que viveram antes que ele nascesse já haviam manifestado suas revoltas contra o mesmo tipo de comportamento por parte de pessoas com as quais inevitavelmente o mais eremita dos homens precisa suportar. Se essas pessoas que eram comprovadamente inteligentes e sensatas tinham esse tipo de problema, Thales considerava ser natural que com ele não fosse diferente. Não era porque Thales tentava se equiparar em termos de genialidade com os que eternizaram seus nomes nas artes, mas parecia bastante razoável que ele adotasse pontos de vista parecidos.

Em muitas sextas-feiras de sua vida, especialmente as de sua vida adulta, Thales se decepcionava com o fato de ter esperado tanto ao longo da semana por algo que não era tão extraordinário. Esperava pelas sextas-feiras como se elas fossem demorar mais do que sua aposentadoria. Quando esses dias chegavam ele aproveitava a ausência dos colegas de trabalho bebendo com amigos, que eram na maioria mais jovens que ele. Ressentia-se por ter que escolher entre o descanso ou uma boa bebedeira nesse período tão curto que correspondia aos fins de semana.

Nas duas primeiras sextas-feiras de cada mês ele se permitia gastar uma parte significativa de seu salário de estagiário em uísque e maconha da boa. Isso lhe proporcionava uma tranqüilidade momentânea, mas também logo o lançava num tédio monstruoso que temperado pela bebida o fazia até mesmo praguejar sozinho em voz alta. Nas duas sextas-feiras que faltavam para terminar o mês, até o recebimento do próximo salário ele se virava com vodka e cola de sapateiro. Os amigos levavam a maconha quando a coisa chegava num limiar baixo demais.

Vinha tentando desenvolver idéias naturalistas, acreditando cada vez mais que a cidade seria a sua ruína da mesma maneira que foi para as milhões de pessoas que perderam sua alma individual para ter apenas uma grande e diluída alma coletiva. No entanto, as possibilidades de sair de São Paulo naquele momento eram remotas. Tinha um certo receio de que fora dali sua mente doentia o castigasse ainda mais, por já ter contraído uma paranóia urbana em grau máximo. Ele conhecia as razões pelas quais deveria se rebelar quanto aos problemas da cidade grande, mas pensava também que caso tivesse nascido numa vila nos confins do interior do Brasil pensaria que em São Paulo teria mais oportunidades de ter uma vida mais confortável, ainda que esse tipo de pensamento fosse ilusório. Mas sabia que isso era ilusório por que era um paulistano.

Tinha o pensamento calcado na teoria de que ‘Eu sou eu mais minha circunstância’ e isso de vez em quando dava um nó na sua cabeça. Pensava que isso talvez se devesse às suas limitações intelectuais. Se a razão fosse esta de fato, bastaria se agarrar na beleza do poder de superação de obstáculos para alcançar a glória. E para ele a glória seria ver de perto a ruína humana na cidade sem estar necessariamente em meio a ela. Nos dias chuvosos poderia ver de sua janela o povo sofrendo com as meias molhadas em ônibus extremamente cheios sem ter que estar ali junto. Ganharia sua grana trabalhando em seu computador. Suas chateações se resumiriam basicamente às filas de supermercado. Nem mesmo ali sofreria tanto, pois com a glória alcançada não precisaria fazer contas para comprar apenas o que fosse mais essencial, o que seria bastante confortante.

Lembrava-se sempre de uma velha senhora que morava no Centro e que era vizinha de Valtinho. Uma viúva que recebia uma aposentadoria que lhe permitia viver com toda a dignidade possível, sem que ninguém jamais a aborreça, dona de uma quitinete bem arrumada, sem horário para acordar ou ir dormir, e ainda assim tendo um final de vida organizado. Thales provavelmente não conseguiria nunca ter essa tranqüilidade porque se sentia muito preocupado com a velhice. Com a sua velhice, pelo menos. Quando o vigor da juventude tiver deixado seu corpo ele sabe que o conforto financeiro já não será tão animador.

Sua mãe o ouviu praguejando ao telefone numa conversa que estava tendo com Valtinho na qual combinavam de afogarem juntos a desolação resultante da vida de mentira que viviam automaticamente desde a segunda de manhã até a sexta à tarde para então distraírem-se com uns tragos de bebida e rock que foi feito por pessoas que já tinham mais de sessenta anos e que eles sabiam que estavam aproveitando uma aposentadoria financeiramente saudável mas com os mesmos problemas que a idade traz a seus velhos vizinhos de prédio que levavam uma vida nada glamorosa. Mesmo seus pais, com quem a relação ao longo de sua vida foi razoavelmente permeada por uma tolerância mútua, num determinado momento pareceram pessoas cansadas e com os ideais da juventude completamente destruídos e ridiculamente sem perspectivas futuras, mesmo se tratando de pessoas que mal passaram dos 50 anos.

_ Eu deveria ser castigado por estar reclamando justo agora dessa vida desgraçada que levo, porque estou numa sexta-feira à tarde, depois do expediente, e já estou reclamando do momento em que acordarei azedo de tanta ressaca na segunda cedo. Fui sugado durante toda semana, aquele gordinho veado que rouba o caderno de cultura dos jornais me deixa grilado até o talo! Que vida miseravelmente estúpida esse tipo de gente leva!- disse Thales.

_ Você precisa se abstrair desse tipo de chateação. Eu entendo perfeitamente que você não goste das pessoas, nem do que elas fazem, nem do que elas gostam, nem do que elas pensam e nem do que elas falam. Mas sempre vão existir milhões de pessoas mortas em plena vida e que vão administrando erroneamente o que consideram ser uma vida normal. É um povo primitivo demais. Estarão atolados na mais profunda desgraça e mesmo assim viverão com medo até o fim, um tipo de medo que eles nem sabem direito do que, mas que os fazem viver como cordeirinhos passivos. É tudo Zé Povinho, gentalha. Vão emporcalhar tudo por onde passarem, invariavelmente. A grande demonstração de força que você precisa consiste em não se deixar entrar em parafuso só porque você está constatando acertadamente que a sociedade já entrou em colapso há muito tempo. Posicione-se de modo que você possa observar a ruína dessa gente toda sem que você esteja no meio desse monte de merda. - disse Valtinho.

_ Pois é, eu tento há anos não me deixar levar pelo desespero que sinto quando o modo de vida e o comportamento das pessoas me atinge. Tenho tido menos resistência para agüentar. Preciso conseguir me tornar inacessível o quanto antes. Viver de um modo que essa gentalha nem sequer se lembre que eu existi um dia. Preciso passar um tempo numa bolha, num éden...

_ Enquanto estivermos vivos, respirando esse ar cinza, teremos algo na vida pelo qual estaremos esperando. Isso é algo tão antigo quanto a própria vida. Ela sempre nos faz esperar por algo e nos prega um monte de peças. Dá golpes duros de vez em quando. Ninguém que ainda esteja vivo está livre de ter um final triste e melancólico.

Capítulo 9-LUMPEN

_ Ei, Thales! Como é que você pode guardar seus discos em ordem alfabética, rapaz! Os discos do Kiss ficam ao lado dos discos do Kraftwerk! Os discos do Lou Reed ficam perto dos discos do LLoyd Cole and the Commotions que ficam perto do Leonard Cohen... É completamente incoerente! – disse Pétrus.

_ Eu sei que pra guardar discos a ordem alfabética é uma ordem burra, mas quando me mudei pra cá arrumei dessa forma só pra achar os discos que procurava. Estou adiando a arrumação definitiva, por gêneros, mas vai dar trabalho. Quando a coleção estava na casa da minha mãe eles ficavam organizados da maneira certa. – disse Thales.

O boliviano Pétrus era conhecido ali na Boca do Lixo por dizer diariamente ter ‘matado um lapão’, de acordo com ele mesmo. Thales e Valtinho ficaram intrigados e ao averiguarem o que realmente se passou, constataram que Pétrus realmente esteve preso, mas por vadiagem.

_ A pena é sempre de 30 anos, nunca passa disso nesse país, pouco importa se eu matar um ou dois ou três. Não podia mais agüentar aquele miserável lapão! Se Bertha Franklin fez o que fez, quem sou eu pra ser punido com rigor?” – dizia Pétrus sem nenhum sotaque. Numa ocasião foi preso por levar consigo diamantes que não conseguiu explicar de onde surgiram e junto com eles algumas pedras de crack.

Ele gostava de falar sobre os perrengues que passava na cadeia. Nos bares da Boca do Lixo ou na portaria dos prédios nas quais tinha amigos porteiros era comum ouvi-lo falar sobre aquele período.

_ Ali foi precisei descobrir de uma hora pra outra que em mim havia um herói que eu mesmo não conhecia. Eles sempre vão querer comer o cu dos frouxos. A vida é perturbadora demais dentro daqueles muros intransponíveis e eu sei que se eu fosse um escritor convincente poderia transformar em arte as situações e os personagens que conheci. Eu gostaria de ter estilo literário. Eu imagino que isso é uma questão de prática e eu não consigo passar muito tempo parado e devidamente concentrado pra escrever. Eu ainda lembro de muita coisa que rolou na cadeia, mas se eu tivesse feito algumas anotações teria sido de muita utilidade. Não o fiz quando estava lá dentro porque não conseguia nem pensar nessas coisas. Não podia nem pensar no dia da minha saída, porque eu enlouqueceria. Na cadeia conheci mais caras com estilo do que fora dela, mesmo que lá dentro fossem poucos os que tivessem estilo. Se eu tivesse estilo e fosse um escritor convincente conseguiria expressar como o mais idiota dos humanos que está do lado de fora daqueles muros parece ser alguém de sorte do ponto de vista de quem está ou já esteve lá dentro. Alguns dos meus companheiros de penitenciária eram verdadeiroslordsenquanto outros não tinham qualquer chance de recuperação e ainda faziam o diabo pra corromper ainda mais os outros. Pelo que vi e vivi lá dentro, não acho que hoje eu possa ser considerado um cara amargurado. Provavelmente eu era mais amargurado antes de entrar lá. Talvez eu tenha aprendido a controlar os nervos, ainda que tenha sido a duras penas. Talvez eu tenha aprendido a não levar a vida tão a sério, porque se eu não conseguisse ter o mínimo de equilíbrio teria me deixado matar na cadeia. De uma maneira tortuosa aprendi a ter um pouco de discernimento. Aprendi a enxergar algum sentido para viver aqui fora. Isso lá dentro é chamado de liberdade. E também não guardo grande consideração pela maioria dos humanos que jamais pisaram e nem pisarão do lado de dentro de uma cadeia. Ali eu precisei lidar com um crioulo gigantesco que era meio atrapalhado da cabeça, e a taróba dele era tão descomunal que matou duas bichas de hemorragia interna. Eu dormia de calça jeans e com um olho aberto toda noite. De vez em quando arrumava um dente de alho e colocava no sovaco, porque isso aumenta a temperatura corporal e a impressão que se tem é que a pessoa está com febre e os funcionários da prisão me levavam para a enfermaria, onde eu tinha um amigo enfermeiro que dividia cigarros comigo. - disse Pétrus certa vez.

Pétrus ganhou de Valtinho alguns livros de Jean Genet e descobriu que na verdade não queria ser escritor, mas pretensioso que era, queria ser ele mesmo o elemento a ser retratado por alguém competente do ramo das letras. Valtinho sempre o lembrava que o que faltava no país eram justamente os bons escritores, mas que personagens emblemáticos para serem descritos existiam aos montes, não só nas cadeias, mas nas ruas e em todos os lugares. E não era preciso ser bandido ou malvado para que alguma dessas pessoas pudesse ser considerada um personagem interessante. As circunstâncias da vida fizeram com que ele se sentisse carente de uma casa com uma mulher para lhe prestar assistências domésticas e sentimentais e foi no salão de danças da Rua Guaianazes que conheceu sua companheira. Uma boliviana de aproximadamente 30 anos de idade. Pacífica e tímida, sentia saudade das músicas e comidas de seu país.

O salão de dança dos bolivianos tocava músicas que a faziam aplacar um pouco do sentimento de dor que o preconceito da qual era vítima a fazia sentir. Lá podia dançar e como não sofria de alcoolismo, tomava apenas algumas cervejas, ficava cansada e voltava para o prédio onde morava, que ficava no mesmo quarteirão. Thales e Valtinho freqüentavam vez ou outra o salão, que cobrava cinco reais pela entrada dos homens e vendia cerveja por um preço justo. Mulheres não pagavam para entrar. Os dois sentiam atração por garotas bolivianas jovens mas geralmente não as abordavam por cautela. Isso poderia ser feito fora dali, até mesmo em filas de supermercado. Já tinham ouvido falar de brigas entre bolivianos e peruanos no salão por causa de mulher e bebida.

Para Pétrus bastavam poucos copos de cerveja para que ficasse saliente e se comportasse de maneira pouco adequada aos lugares que frequentava. Thales nunca tinha parado para beber num certo bar que era o mais próximo de sua casa. Bastava que atravessasse sua rua para chegar até lá.. Era lotado de nigerianos e bolivianos. Os nigerianos falavam muito alto em seu dialeto, o que atraía a atenção de Thales, e não eram caras propriamente assustadores, mas pareciam exaltados e como o bar era muito pequeno e sempre estava lotado, Thales passava por ali sem que parasse para ouvir os papos e tomar uma cerveja. Nunca tinha visto uma briga ali por causa da proximidade com a delegacia, mas algo fazia aquilo parecer uma panela de pressão. Pétrus numa ocasião parou Thales para que tomassem uma ali. Thales tinha descido de seu apartamento só para comprar cigarros enquanto deixava algumas latas de cerveja gelando. Como fumava Carlton, só os achou na Avenida São João com a Rua dos Timbiras.

_ Ei, Thales! Tem duas cervejas pagas aí. Vamos dividir comigo.

Thales entrou no bar para buscar uma das cervejas pagas e também o seu copo, e o dono do bar era um tiozinho cinqüentão cujo semblante o fez pensar que ali não haveria assassinatos em série. Voltou com a cerveja, deixou a garrafa na guia da calçada, onde os negros não estavam aglomerados e onde podia ouvir razoavelmente o que Pétrus dizia. Pouco tempo depois que Thales voltou para fora do bar, Pétrus entrou para buscar a segunda cerveja que estava paga. Ele voltou e os dois apenas fumavam e olhavam os arredores. Terminaram suas cervejas e Pétrus acintosamente jogou com força o copo no chão. Thales nunca entendia as razões pelas quais Pétrus fazia tanto esforço para chamar para si as atenções.

_ Porra, tá doido? – perguntou Thales.

_ Caiu, porra! – respondeu Pétrus.

Olhando ao redor Thales pôde constatar a indiferença dos nigerianos em relação a ele e a Pétrus, um segundo depois de o copo ter estourado no chão. Provavelmente já o conheciam de vista e estavam acostumados com ele. Era um pobre diabo. Thales não tinha em casa nenhum copo que não fosse roubado dos bares, o que o fazia pensar que aquilo era um desperdício.

O filho da mulher de Pétrus era um garoto que simbolizava para Thales e Valtinho o que convencionaram chamar de Bobinho Sagrado. Esse apelido usado por eles para se referirem ao garoto não tinha origem em nenhuma desconfiança de que o garoto fosse portador de alguma debilidade mental. Para Thales e Valtinho, esse tipo de diagnóstico não era válido para aquela época em que o conceito de normalidade relativo ao ser humano já não significava nada. Aquele garoto, como todos os outros humanos que já viveram na história da humanidade tinha seu ‘eu’ e sua circunstância. As circunstâncias evidentemente eram comuns a todos ali, mas talvez o ‘eu’ do garoto fosse mais complexo do que a maioria de seus vizinhos. Isso poderia ser explicado simplesmente pelo fato dele ser um observador mais atento. É conhecido o fato que os bons escritores devem ler mais do que escrevem, os músicos devem ouvir e treinar mais do que compor e assim por diante. Não é tão fácil pensar na razão pela qual a maioria das pessoas acha que o melhor é falar demais e se expor, ao invés de escolher pela discrição.

Por tudo o que aquele menino conhecia e principalmente pelo que não conhecia da vida e dos seres humanos, parecia haver nele uma alegria ingênua que era acentuada por uma estranha paz boliviana do Centro de São Paulo. E também uma timidez grande. Vivia com a mãe e com Valtinho numa quitinete igual a de Thales onde à maneira deles constituíram uma família onde as carências de cada um parecia ser suprida pelos outros dois de modo que quando a porta deles estava fechada e sendo vista por fora por algum vizinho a coisa parecia funcionar bem. Não se ouviam brigas, o cheiro da comida era bom e o Bobinho Sagrado era uma criança calma, não era descontrolado como as outras crianças do prédio, que jamais conseguiam ficar quietas dentro de suas quitinetes.

É claro que essa inquietação por parte da maioria das crianças era plenamente justificável. O espaço de 30 e poucos metros quadrados das quitinetes seria suficiente apenas para um adulto solteiro. Aquelas crianças com alimentação rica em açúcar precisavam canalizar sua energia e não tinham qualquer chance de fazê-lo ali. Brincar na rua era algo que não podia sequer ser cogitado, por que em alguns dias o consumo de crack acontecia até mesmo durante o dia.

O Bobinho Sagrado não era tão agitado mas aquilo parecia ser o resultado da vida claustrofóbica que levava, a falta de espaço e a relação tensa com os colegas da escola. Naturalmente era ameaçado e ridicularizado pelos colegas. Era chamado de ‘indiozinho eunuco’ pelos outros garotos. Na escola passava por situações como ganhar no bingo das festas e ter vergonha de ir até lá na frente buscar o prêmio. Preferia observar as pessoas e as coisas do que fazer perguntas. Sua jovem mente boliviana formulava pensamentos tristes sobre o comportamento da maioria das pessoas com as quais tinha contato, exceto sua família e por Thales e Valtinho, porque o garoto os considerava diferentes do resto dos vizinhos. Era bobinho mas não era burro. O tempo que passava em casa era gasto em seu próprio mundo, porque não tinha videogame, só um pequeno televisor que transmitia a programação dos canais abertos e alguns brinquedos improvisados. Era como se fosse um sábio muito jovem e paciente que sabia que algo importante aconteceria logo para vingar o sofrimento histórico de seu povo e também o seu próprio. O garoto parecia saber de um modo muito peculiar colocar freios no descontrole e no deslumbramento de Pétrus, fazendo com que as conseqüências da existência daquele sujeito na sua vida e na da vizinhança não causasse tanto alvoroço.

Pétrus decorava sua quitinete com carrancas compradas numa loja de nigerianos na Rua Guaianazes, fato que intrigava bastante os vizinhos, a ponto de não tocarem no assunto, apesar da grande curiosidade. Preferiam pensar que aquilo era colocado ali pelo valor estético.

Capítulo 10-ACHILLES LAST STAND

A antítese do que Pétrus representava para Thales quando se conheceram estava na figura de Achilles, um velho senhor parecido com o Tolstói, com uma barba realmente grande e tudo. Ele recebia aposentadoria pelo tempo de serviços prestados nos Correios. Durante os 35 anos em que trabalhou para os Correios morou em várias cidades do interior de São Paulo por que era transferido com uma certa regularidade. Nunca foi casado e gostava de morar em diferentes cidades depois de algum tempo residindo num mesmo lugar. Thales também gostava do fato daquele homem ter um nome imponente e que não era dos mais comuns, como ele mesmo também tinha.

Para ocupar seu tempo livre depois que se aposentou escrevia grandes textos sobre suas vivências como andarilho, já que seus ofícios ao longo da vida assim o fizeram. Aos olhos de Thales aquele homem parecia alguém que poderia ser considerado verdadeiramente livre. Era uma espécie de beato, mas parecia ser na verdade um ateu convertido, até mesmo pelo conteúdo de seus textos mais antigos, que de uma certa forma ele renegava. Thales simpatizava com Achilles porque apesar da qualidade dos seus escritos ser muito superior ao que se publicava no mercado editorial nacional nos últimos anos, ele permaneceu sempre incógnito. Dizia amar o prazer e a paixão característica do amadorismo. Parecia acreditar que a profissionalização em atividades pelas quais se é apaixonado poderia ser algo ruim. Isso ia de encontro à obsessão de Thales por ter uma fonte de renda que não fosse o que se poderia chamar de um emprego comum. No entanto, Thales não era ingênuo o bastante para acreditar que todos os dias de sua vida como escritor bem pago seriam perfeitos. Crises de falta de idéias, dias sem conseguir escrever uma só linha, produção de textos sem inspiração e com temas repetidos o fariam sofrer, naturalmente. Ainda assim sabia que de nada adiantaria culpar terceiros, o que o fazia se sentir melhor, pois estaria em contato com suas limitações técnicas e intelectuais para a produção literária.

O velho Achilles dizia que se não tivesse sido funcionário dos Correios gostaria de ter trabalhado como jornalista. Dizia que apesar de para ele este ofício não ser considerado uma paixão, seria uma atividade que o credenciaria a buscar uma possível carreira de escritor na maturidade porque aprimoraria sua escrita, seu poder de síntese e seus conhecimentos gerais ao longo da carreira, além do fato de que no tempo em que era jovem o significado do jornalismo era outro. Era necessário coragem, inteligência e alto nível de informação. Dizia se sentir muito mal com o jornalismo tosco que vinha sendo praticado nos tempos de internet. Além da semelhança física com Tolstói, seguia também a premissa do autor russo de que ‘basta você falar de sua aldeia para falar do mundo’, o que também influenciava Thales na sua vida e na criação de seus textos.

Distribuía seus livrinhos artesanais como se fosse um Walt Whitman (com quem ele também tinha uma certa semelhança física) do centro de São Paulo. Era um verdadeiro mentor do que realmente mereceria ser chamado de cultura alternativa, em tempos em que qualquerindiebrasileiro de barba se considera gonzo ou marginal ou o que quer que seja cultuado por estar fora domainstream. Vestia-se como um camponês e se dizia surpreso por ter conseguido chegar a viver uma vida simples mesmo em meio ao caos do centro. O velho fazia Thales pensar em si mesmo quando estivesse com idade já avançada. Depois de uma vida atribulada, com muito rancor tendo sido digerido. Saberia que a superação de seus problemas financeiros, que era o que realmente lhe preocupava seria um parto. Depois de vencida essa luta, pensava que não mais se depararia com grandes obstáculos, a menos que alguma doença terrível o pegasse de jeito. Mas além da saúde e do dinheiro para a sobrevivência não lhe restavam mais tantos tormentos. O velho Achilles despertou em Thales o interesse por algumas questões místicas. Thales era um ateu convicto, achava impossível que aderisse a uma futura conversão ao cristianismo, mas desenvolveu interesse por certas coisas do além. Algumas tendências místicas o instigavam, mais por curiosidade do que por fé ou por busca de respostas.

Thales estava longe de ser um humanista. Não tinha pena do sofrimento do povo porque não gostava dele. Na região central da cidade ele sofria com a inviabilidade da metrópole ao mesmo tempo que podia ver a massa sofrer, o que lhe dava um tipo de prazer que lhe fazia não sair de São Paulo. Gostava especialmente de ver o caos diário no transporte. Tudo o que estava errado naquilo que se convencionou chamar de viver em sociedade o interessava. Sabia no entanto que sua presença física na cidade o faria sofrer junto, ao menos em parte. Sofreria junto às vezes mesmo se considerando um vírus citadino ao invés de cidadão. Pensava em como se tornou o elo entre as pessoas que conheceu ao longo dos últimos anos, pessoas que na maioria das vezes não se conhecem. Seu desafio pessoal era tentar se sentir melhor observando que essa gente realmente sabia o que é passar por apuros de verdade. Comiam o pão que nem o diabo queria amassar. Isso deveria pelo menos lhe servir de consolo.

Nos sebos do Centro da cidade os velhos livros e discos documentavam o fato de que velhos artistas deram duro para conseguirem a glória de eternizarem seus nomes. As circunstâncias nas quais esses trabalhos foram produzidos pareciam pouco importar para Thales. O que importava era o fato de terem sido produzidos e terem se tornado marcos da cultura. Edições com capa dura de ‘Por quem os sinos dobram’, velhos discos de Alice Cooper em sua fase legal, no começo dos anos 70. Álbuns temáticos de bandas de rock progressivo cujos artistas criadores eram hippies devem viver agora em sítios na Finlândia. Isso se não estiverem mortos. Foram varridos pelo movimento punk muito tempo antes para nunca mais voltarem. Alguns desses caras ainda lançavam álbuns solo.

Quem ligaria para um disco solo de algum membro do Van Der Graaf Generator que fosse lançado no século 21? Claro que novos e velhos dinossauros que freqüentam lojas de discos de vinil especializadas em Rock Progressivo e que usam óculos e cabelos compridos bem cuidados diriam que Peter Hammill permaneceu lançando discos depois do fim da banda, mas ele ainda poderia mudar os tristes rumos da música moderna? Por onde andariam os integrantes do Tubeway Army que não eram o Gary Numan? Eles haviam feito música que ainda soava moderna décadas depois. Thales via na desolação dos velhos prédios do centro de São Paulo um provável destino para esse tipo de gente. Esses caras evidentemente jamais viveram em São Paulo, mas a idade avançada pode tê-los lançado num tipo de desolação visível ali pelo Largo do Arouche.

Thales gostava de pensar nas dificuldades que os grandes escritores do século 19 tinham para publicarem seus livros. Eles próprios em sua época não deviam considerar que as dificuldades eram tão grandes como pareceriam 150 ou 200 anos depois, mas de qualquer forma havia menos distrações estéreis para as pessoas naquele tempo, o que as faziam recorrer à literatura e a uma vida mais perto da natureza. O mundo era menos povoado, os andarilhos não tinham as estradas pavimentadas e para alguém poder se autodenominar escritor era preciso muito mais do que ter um blog. Nos velhos tempos as dificuldades realmente credenciavam melhor os homens das letras. Também havia vantagens para os caras mais antigos. O tempo que podiam se dedicar à prática da escrita e também à leitura e principalmente à maneira mais apaixonada com que faziam com que a humanidade fosse presenteada com textos que não eram descartáveis. Ao contrário, eram atemporais e não pereciam.

Durante um período de sua vida queria ser professor de Geografia ou Literatura, mas à medida que o tempo passava foi descobrindo que as reais dificuldades da profissão estavam mais ligadas às dificuldades de domesticar jovens estúpidos do que transmitir seu conhecimento. A intolerância que tinha para com a burrice e a arrogância das gerações posteriores à dele o deixavam desencorajado para a empreitada. Isso se tornaria só um emprego comum, talvez até com boa remuneração, caso conseguisse trabalho numa escola de elite. E numa ocasião, no meio de uma tarde fria e ensolarada na frente da Catedral da Sé, falou sobre esse tema para Thales, justificando em parte seu desprendimento do dinheiro excessivo:

_ Nós não temos o que se pode chamar de elite no Brasil. Temos a classe alta, quase toda ela constituída de gente ignorante e grosseira. O rico brasileiro nunca primou pela educação e nem pelo bom gosto. A classe é uma algo que independe da quantidade de dinheiro que se tem, e ela é algo que quem tem nunca perde, esteja o cara rico ou pobre. Eu já tive experiências com dor e fome e posso dizer que foram preciosas para mim. Não a fome do rico, pois essa é muito fácil de passar. Quem vive sem lamúrias atinge mais facilmente o seu melhor. Agora que estou velho posso dizer que já senti desde a chateação máxima até o prazer extremo. Os poucos jovens brasileiros que tem acesso à escola tem seus sonhos afogados logo na mais tenra infância, o que faz com que a função da educação seja invertida. Qualquer potencial para a rebelião é reprimido. Aprendem a serem frouxos e medrosos. A classe média é o que há de pior. Morrem de medo de serem rebaixados para a classe baixa e sonham com um glamour que não deveriam enxergar na classe alta. O dia tem 24 horas tanto para os milionários como para os mendigos. A maioria das pessoas se recusa terminantemente a viver um dia de cada vez e isso é algo estúpido. Acabam por perder todos os dias de suas vidas de uma vez só.

Thales gostava de conversar com o velho, principalmente quando estava em crise. Na véspera do encontro na Praça da Sé, Thales tinha bebido antes, durante e depois de um ensaio que fazia com sua banda num estúdio na zona norte e pegou o último trem do metrô para voltar para casa e dormiu logo no começo do caminho. Entrou na Estação Tucuruvi e desceria na Estação São Bento. No entanto, só acordou quando estava na Estação Jabaquara e teve que voltar a pé para o centro, esgotado, com uma cueca que lhe arranhava demais as virilhas, fazendo-as sangrar. Teve que jogar a cueca fora quando chegou em casa, porque as manchas de sangue jamais sairiam e além do mais ela estava gasta e grossa na parte que ficava em contato com as virilhas. Era uma peça irrecuperável. Já era experiente em situações desse tipo e sabia que o importante era andar até que o caminho de volta parecesse menos amedrontador. Pôde constatar que a experiência não encurtava o caminho, apenas o faz não parecer invencível.

Outros tipos de experiência que vem junto com a idade podem fazer outros tipos de caminho ficarem mais longos e mais penosos. Aquele percurso sofrido e solitário da zona sul até o centro não foi o primeiro, nem seria o último. Ele nunca se sentia mais experiente quando atingia seu destino. Apenas mais velho e insatisfeito. Quando os danos físicos dessas peregrinações se curavam até sobravam boas lembranças da aventura, mas não boas o bastante para pensar que valessem a pena. Valiam mais para que se acostumasse a superar esse tipo de obstáculo e para lembrar do aspecto hostil das ruas em noites mortas quando estivesse numa boa dormindo em casa, sabendo que essas mesmas ruas continuavam desoladoras de madrugada. Cães e gatos vira-latas parecem ter suas vidas plenamente resolvidas enquanto são observados por algum andarilho que perdeu o último ônibus e está longe de casa sem saber como e quando vai conseguir chegar para se recolher.

Sempre que esteve nessas circunstâncias, Thales pensava ser o mais solitário entre os vagabundos que vagam cansados pela madrugada, mesmo entendendo com clareza que a solidão é inerente ao vagabundo. Ele às vezes sente a fome do rico nessas horas, pois sabia que não era um tipo qualquer de vagabundo. Poderia ter tido outro destino se assim o escolhesse. Ele vai comer um beirute quando chegar à sua casa, independente de quantas horas tenha andado até chegar lá. Ele sempre chega sem ter que parar pelo caminho para descansar, como os velhos vagabundos dos velhos tempos que sentem a fome que não é a do rico. Ele nunca ficava sujo o bastante nas ruas para se sentir solto como um vira-lata legítimo. Esses transcedem a condição de humanos comuns e não olham para trás. Thales queria deixar a condição de cidadão sem olhar para trás também, mas queria habitar um éden de onde pudesse ver de cima a ruína dessa sociedade.

Thales recebeu em seu apartamento a visita do velho Achilles quando já estava de tal modo enlouquecido que precisava manter ligados ao mesmo tempo o rádio, o televisor e a vitrola para que não ouvisse vozes que vinham lhe atormentando. Entregou ao velho homem o roteiro de um faroeste surreal que tinha escrito à lápis num caderno em apenas duas noites. Ganhou de presente de Achilles um envelope de canetas Bic, uma edição antiga de ‘Folhas de Relva’ e um maço de Carlton. Desligou a TV, colocou na vitrola o segundo disco do Barclay James Harvest, intitulado ‘Once Again’ e em seguida desligou o rádio, para que ouvissem somente o disco. Tirou do bolso da camisa um grande baseado, cortou a ponta com os dentes, acendeu-o e se sentou na poltrona de couro que Thales tinha herdado de seu avô paterno. Deu quatro pegas no baseado e passou-o para Thales.

_Sabe, eu sei que vou gostar desse roteiro que você escreveu. Estou convencido de que você tem talento, mas estou convencido também de que você precisa ser pressionado para que esse talento se manifeste. Sou mais velho que você mas também gosto de Rock and Roll. Gosto especialmente das bandas inglesas, do lado sério do Atlântico. Só no norte da Inglaterra há mais bandas boas do que na América toda. – disse Achilles.

_ Hey, você diz isso por causa do tamanho dos baseados que você acende. A América tem outro estilo, é uma cultura de 500 anos apenas. Os europeus sempre vão alegar que americanos não tem e nunca terão cultura. Compreendo perfeitamente que o fato de o Bruce Springsteen ser um ícone da cultura America incomodar muita gente. Mas se o Bob Dylan, o Elvis, o Hank Willians e o James Dean fazem parte desse grupo, então eles tem que ser analisados com mais cuidado. A música tem que estar a parte de questões extra culturais. Eu também prefiro rock britânico, de um modo geral. Mas acho que esse tipo de comparação é perigosa. Talvez no seu caso a preferência seja baseada num gosto específico por Rock Progressivo. Aí certamente os europeus são melhores. Porra, fazia séculos que eu não ouvia Barcley James Harvest. Gosto mais do Spooky Tooth, que é contemporâneo e conterrâneo. São do mesmo estilo e ambas são subestimadas. Poderiam ser bem mais famosas, inclusive no Brasil. Poderiam fazer parte do ladomainstreamdo gênero. Tinham potencial pra serem bem sucedidos comercialmente. Essa sua maconha é a melhor. Quando eu fumo desse beck também gosto de ouvir progressivo. Mas devo dizer que os americanos fazem rock primitivo melhor. É o lado menos sério do Atlântico. Talvez lá esteja a essência e na Europa esteja o molho que dá um sabor diferenciado a essa essência. – disse Thales de pé, encostado na janela, enquanto a quitinete era uma bruma de maconha da boa.

Minutos antes desse papo começar, quando da chegada de Achilles ao apartamento de Thales, o primeiro esboçou uma expressão de tristeza ao entrar e vê-lo naquele baixo astral em meio ao barulho da televisão e rádio ligados para que não ouvisse as tais vozes que o estavam perseguindo. Thales no entanto alegrou-se com a visita do velho Achilles e a conversa sobre rock inglês e americano fluiu enquanto o baseado desaparecia. Aquilo sim era dignidade. Sem aborrecimentos, sem brigas inúteis, com fumo de qualidade.

Thales sempre teve fascínio por artistas que tinham terminado ou interrompido a carreira por causa da loucura. Gente que teoricamente já tinha passado do fim da carreira e que estava mesmo era no fim da vida. Gostava desses párias porque pensava que a sociedade e a medicina os classificava como loucos apenas para enterrá-los vivos. Pensava que esse tipo de loucura era só a autodefesa da alma dos gênios para conseguirem se manter afastados do cotidiano pequeno dos milhões e milhões que não tinham alma. Roky Erickson, Peter Green, Brian Wilson, Arthur Lee, Syd Barrett... Os que sempre foram raros estavam ficando cada vez mais raros. Na cabeça de Thales eles tinham atingido um patamar que lhes permitia saber o porque de existir fisicamente e tinham então se afastado deliberadamente da ‘normalidade’ para que suas vidas não fossem puramente humanas. O mais curioso é o fato de que quem dá o diagnóstico para a loucura desses caras nunca fez nada de relevante para entrarem para a história e como pessoas deveriam ser o exemplo contrário ao de ‘normalidade’.

Para Thales esses caras na verdade passaram décadas rindo do resto dos humanos enquanto assistiam televisão em suas casas ou andavam por seus quintais em dias de semana durante as primeiras horas da tarde ao invés de estarem clinicamente loucos e completamente deprimidos como muita gente pensava, enquanto o resto da humanidade passava os dias correndo em ruas sujas de cidades tristes, sempre atrasados e esmagados pelo relógio e sem sequer saber o que realmente queriam ou precisavam.

Esses idiotas sempre tiveram para si a certeza que os gênios são párias desajustados. Procuram se enquadrar nos padrões de normalidade, como se isso fosse um mérito ao invés de ser a pior derrota. Já nascem obrigados a perder. Sempre tiveram a convicção que suas vidas de merda seriam compensadas por alguma razão a qual ainda não estavam prontos para compreender. Só teriam isso depois de mortos. Aqueles mortos vivos alheios ao que pode verdadeiramente ser chamado de arte são figurantes de um planeta bizarro e correm apressados para a vala comum dos que não são nada raros.

Eles querem ser salvos. Nem sabem ao certo do que ou de quem, pois se conseguissem pensar de modo minimamente coerente, sentiriam repulsa de si mesmos. Dão-se demasiada importância, a ponto de pensarem que os céus estão permanentemente se mobilizando para que tudo termine sem dor. O niilismo de Thales sempre foi sincero, ainda que nem sempre fundamentado, e quando pensava no que realmente o aborrecia e no porque disso acontecer, sempre chegava à conclusão de que era o fato de esses zumbis serem tão burros que podiam dizer que sua fá na salvação era sincera. E eles sempre conseguem se confortar com isso, mesmo vivendo num purgatório. É gente que tem na própria burrice uma tábua de salvação.

Durante a visita de Achilles, Thales começou a repensar no fato de que talvez precisasse se esforçar para não levar as coisas da vida tão a sério. Era um desgaste inútil. Do que adiantaria tentar fazer algo para que uma outra pessoa melhorasse, quando se sabe que ela não quer melhorar, e que ela não tem inteligência para isso, e sobretudo se essa pessoa não merece melhorar, em qualquer que seja o quesito? Deveria ser tão mais fácil tentar manter-se minimamente isolado. Morando em São Paulo Thales não tinha êxito nem ao menos quando tentava ler algum livro por mais de meia hora sem que fosse interrompido. Sua vida às vezes era um verdadeiro pandemônio.

Vivia se perguntando como é que gente como Achilles conseguia aproveitar uma cidade como São Paulo sem que se sentisse tão paranóico. É bem verdade que Thales sabia que Achilles era de uma outra linhagem de ser humano. Era não apenas seletivo, mas parecia ter algum poder para manter os encostos afastados. Ainda assim Thales ficava intrigado e colocava em questão sua própria inteligência, por não conseguir atingir o mesmo nível de qualidade de vida.

Quando Achilles saiu as vozes voltaram a ser ouvidas por Thales, que ligou novamente o rádio, o televisor e trocou o disco do Barcley James Harvest por uma coletânea do Sam Cooke, ‘The Man and His Music’. Tentou se concentrar no fato de que se Sam viveu apenas 33 anos e foi morto por uma puta, ele já não tinha tanto a perder. As vozes diziam a ele que a vida era um nó que quanto mais ele tentasse desatar, mas apertado ficaria. E tentou se concentrar no fato de que enquanto existia no mundo a paz e a segurança psicológica de alguém como Achilles, existia também todo o desequilíbrio de todo o resto.

Sua confusão mental consistia no fato de que por um lado estava convencido de que tinha até então garantido para sempre a condição de pessoa com mais cultura e classe do que a maioria que conheceu em sua vida, e por outro lado sabia que qualquer esforço que fizesse no resto de sua vida provavelmente seria insuficiente para sentir-se realmente satisfeito com o saldo entre perdas e ganhos ao longo de sua trajetória.

Naquela tarde , toda vez em que estava quase chegando a alguma conclusão sobre o sentido de sua vida, as vozes o faziam perder o fio da meada e dava mais um nó em sua cabeça. Não sabia se o pior era estar involuntariamente pensando no sentido da vida ou se eram as vozes dizendo-lhe que a vida não tinha nenhum sentido.

Vulnerável, confuso e desajustado. A vida de um sujeito assim não poderia ser diferente de um grande mosaico de horrores. E ainda assim as vozes diziam que ele não tinha realmente do que reclamar. Elas diziam que tudo podia ser realmente pior e que ele não perderia por esperar.

Capítulo 11- ENFIM SÓ

O problema de Thales não era de auto-estima. Constrangia-se não por ele mesmo e sim pelos outros, e pelos motivos mais torpes. Embora não fosse o tipo de cara que gostasse de dar ordens, adoraria que as pessoas próximas o servissem sem que fosse necessário fazer o pedido. Poderia ser pior se ele fosse a razão pelo qual se sentia mal. Se ele fosse como as pessoas que o deixavam para baixo, certamente teria problemas sérios. Mas nesse caso não teria discernimento para considerar a si mesmo alguém constrangedor. As vozes o atormentavam de uma tal forma que Thales já não conseguia mais se concentrar numa conversa séria e longa com quem quer que fosse. Ouvir vozes era um problema maior que qualquer outro naquele período. Lidar com uma dor de dente violenta seria pior que ouvir as vozes, mas certamente seria algo que poderia ser mais facilmente resolvido.

Sua personalidade havia mudado. Não poderia mais ser considerado apenas um sujeito reservado e quieto. Agora ele era um recluso obstinado na busca pelo isolamento. Quando dormia, sonhava com grandes filas de atendimento presencial em órgãos públicos corruptos e burocráticos. Vivia sonhando com um maldito saci que fumava pedras e mais pedras em seu cachimbo, sempre matreiro e venenoso no trato com as pessoas.

Numa manhã de terça-feira, um sol furioso o acordou para lembrá-lo que ele precisava de dinheiro. Não havia de onde tirar dinheiro. Arrumar outro emprego? Tornar-se um gigolô sério? Ser gigolô sério podia ser tão ruim como trabalhar num velho escritório de advocacia provinciano. Seus antigos amigos já não o visitavam. Não vivia completamente só porque seus vizinhos não deixavam. A idéia de que seu fim estava próximo aumentava à medida em que seus vizinhos também definhavam.

Em sua dispensa havia um envelope de sopa instantânea de carne e legumes, que ele havia roubado do mercado, enfiando o produto no bolso. Aquilo era melhor que nada.Foi nesse momento em que pensava que as coisas não estavam totalmente loucas no mundo que um chamado de Pétrus pelo interfone o fez repensar seu otimismo repentino e moderado. O bobinho sagrado tinha morrido de uma overdose de crack dentro da quitinete em que vivia. Ele tinha fumado quatro pedras dentro do armário, vestido de Robin. Pétrus quis ser o Batman e não abriu mão de sua escolha quando levou o garoto para comprar as fantasias para brincarem em casa nos momentos de descontração em família.

Thales foi então até o apartamento de Pétrus e viu o garoto ainda dentro do armário, com os lábios bastante machucados pelo aquecimento excessivo da lata de cerveja vazia que foi usada por ele para consumir as pedras de crack. Sem olhar para a cara de Pétrus e sem dizer uma só palavra, Thales foi até a janela e olhou para a rua. Depois de alguns segundos virou-se para dentro da quitinete e assim que olhou para Pétrus para pedir-lhe um cigarro, foi prontamente atendido sem que precisasse dizer uma só palavra. Depois de alguns segundos de um silêncio bastante desolador, Thales disse:

_ Meu Deus, como esse garoto foi entrar numa over? Eu acreditava piamente numa superioridade espiritual da parte dele com relação a quase todas as outras pessoas que conheci na minha vida... Cadê a mãe dele?

_ Não chegou em casa ainda. Eu realmente não sei o que fazer nem o que pensar. Acho que vou ali embaixo e trocar minha televisão pelo maior número possível de pedras e entrar numa over também. – disse Pétrus.

Ficou a impressão de que Pétrus estava tendo problemas com as drogas havia algum tempo (algo que até então ele só não havia pensado porque não tivera um motivo) e que o garoto resolveu aderir ao uso da droga para que tivesse alguns momentos de prazer seguidos por um final que chocasse aqueles que o conheciam, como resposta a tudo o que precisou agüentar de comportamentos humanos em sua vida. Será que naquele momento alguém poderia estar vivendo uma vida mais feia que a de Thales?

Lawrence, o japonês pedinte e engajado certamente não tinha descido tanto. Carlos Silas era agora o Phil Lynott da Boca do Lixo e estava numa boa. Baguinho já não tinha um bago havia muito tempo, de modo que seria estúpido lembrar dele como uma referência. Qualquer sujeito que tem os dois bagos intactos poderia sentir-se bem se pensasse naquele caso extremo. Valtinho provavelmente estava investindo seu tempo na manutenção de sua vida relativamente tranqüila. O Saci nóia de seus sonhos só voltaria quando Thales dormisse de novo e naquele momento ele provavelmente estava no éden dos sacis. Achilles tinha coerência, estilo e integridade, e provavelmente não precisava pensar nessas coisas desgraçadas nem em seus piores momentos de crise. Thales sentia vergonha de levar a vida que levava toda vez que lembrava que poderia ter Achilles como exemplo de conduta. Ele na verdade tentava, mas o cosmos parecia não lhe dar trégua, conspirando impiedosamente contra ele. Thales tinha discernimento para escolher o tipo de vida que poderia levar e sabia quais eram os melhores exemplos a serem seguidos. Só não conseguia pensar que mudar para uma pequeníssima cidade do interior para manter-se isolado fosse realmente uma solução. Ele queria o isolamento dentro de sua residência no centro de São Paulo, ainda que isso fosse mais uma tentativa de conciliar o inconciliável.

Thales terminou o cigarro, jogou a bituca no terraço do prédio, que estava infestado de absorventes usados e outras centenas de bitucas. Para manter a mente mais tranqüila, despediu-se de Pétrus, deu uma última olhada no bobinho sagrado, que agora parecia ainda mais sagrado e foi para casa ligar o rádio, a televisão e a vitrola para ouvir as vozes. Finalmente aquilo já não parecia algo tão horrível e desagradável. Sua coleção de discos era realmente maravilhosa. Será que para o Alice Cooper a vida estava valendo a pena naquele momento? Por onde andaria Paloma? Provavelmente fazendo algo que ele não aprovaria, mas como estava ausente, dava a Thales a impressão de que estava bem.

Num canal aberto da televisão um desenho do Picapau mostrava o protagonista aterrorizando seus inimigos de uma maneira que faria com que o mais vil dos inimigos públicos corasse de inveja. No rádio tocava um sucesso dos anos 80 do Def Leppard. Posers miseráveis. Era uma música da fase em que o baterista já tinha sofrido seu acidente de carro e tocava com um braço só. Na vitrola, que era o meio pelo qual Thales tinha o controle da situação para escolher o que preferisse, ele colocou o ‘Radio Ethiopia’ da Patti Smith.

No final daquela manhã, quando o cheiro de comida caseira da vizinhança invadia sua quitinete pela janela e sua fome já não era mais a fome do rico, as vozes começaram a repetir que ele também não escaparia. Não escaparia nem mesmo se chegasse inteiro no dia de seu próximo pagamento e comprasse uísque e pistache. Tudo isso era uma ilusão. Era só uma questão de tempo. As vozes gargalhavam dentro de sua cabeça. Apenas o caminho para um final realmente feio e solitário parecia ser o diferencial entre as pessoas. Os caminhos que as pessoas seguiam eram diferentes, mas o final parecia ser sempre o mesmo.


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Romance Bastardinho Fernando Barreto de Souza Filho
Poesias Leite Moço Fernando Barreto de Souza Filho
Romance EM NOME DO PAIO Fernando Barreto de Souza Filho


Publicações de número 1 até 3 de um total de 3.


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