A primeira versão desta história foi escrita em 2021. Recentemente ao relê-la achei que ela tinha potencial para ser melhorada. Se a matéria prima é boa, vale a pena caprichar um pouco mais no acabamento. Foi isto que eu pensei.
A vida requer estratégia. O amor também. Foi isto que João pensou quando bolou o plano. Na verdade, ele não bolou plano nenhum. As coisas foram acontecendo, ao longo do tempo, de forma natural, naturalmente.
João era dado a um Manoel, um Francisco e um José, mas na cidadezinha onde morava, isto era um problema. Podia cair na boca do povo e como tinha reputação a zelar, era chefe de repartição, ia perder autoridade, e, sem autoridade, como é que ia ser?
Ele costumava ser cuidadoso na escolha. Só escolhia menino novo, destes que ficam pelos cantos, não namoram, passeiam sozinhos na praça, e, nas festas, permanecem de lado, sem jeito, deslocados, encabulados. João observava atentamente, colhia informações, escutava e aguardava.
Aguardando, o tempo foi passando, e, com a chegada do inverno, chegou S. João. Como todo ano, ia ter festa no pátio da paróquia. O forró estava animado, pares dançando juntos, apertadinhos, mantendo a boca do povo ocupada.
João foi se achegando. Manoel estava num canto, não dançava, não puxava conversa com as meninas, tímido, desajeitado.
“Como é Manoel, desanimado?”
“Não, estou cansado.”
“É a coisa aqui é devagar quase parando. Cidadezinha pequena, sabe como é? Atraso de vida. Só dá forró. Voltei do Rio de Janeiro, semana passada. Lá que a farra é boa. Carnaval, boate e folia.” E tacava a falar das suas aventuras, deixando entrever, subentendido, dito sem dizer, os prazeres que lhe interessavam.
O outro, acostumado com a pequenez do interior, jamais saído dos rincões da mata, restrito àquela vidinha de cidade pequena, bebia suas palavras, olhos acesos, boca aberta, fogo na imaginação.
João ficou olhando o fogo se espalhar. Fez uma pausa longa para estudar o efeito. “Qualquer dia te levo lá para passear, se divertir um pouco.”
Mas Manoel era de família humilde: “ai, quem dera, mas e a grana?”
“Ora, isto a gente vê. Para tudo tem jeito. Posso emprestar, depois você devolve.”
E a conversa morreu ali. João tinha dado o primeiro passo, tinha lançada a semente. Agora era esperá-la germinar.
* * *
João tinha comprado uma casinha afastada, na beira da mata. Tinha sido um depósito de material e ferramentas, mas ele foi reformando, no capricho. Dizia que era para alugar, mas, longe de tudo, quem ia querer? Acabava ele usando, de vez em quando, para espairecer, esquecer de tudo, esfriar a cabeça. Era o que dizia.
Morar mesmo, João morava bem no centro da cidade, perto da pracinha principal. Foi na pracinha que ele voltou a encontrar Manoel. Conversaram, trocaram impressões.
“Falei outro dia da minha viagem. Tirei umas fotos. Você não quer ver? Está na minha casinha, na boca do mato. Levei para lá para ver na calma, sem pressa nem afobação.”
E lá se foram os dois. Era meia hora de caminhada. Subia a serra, descia a serra, a estrada ia dando voltas sinuosas e na sinuosidade da estrada foram se enredando os passos, foram se trocando as pegadas, num troca-troca de sinuosidades, passos e pegadas.
Chegando na casinha, abriram a porta e entraram.
Eu, que sou o narrador desta história, não vou entrar. Fico aqui fora esperando, que é para não atrapalhar. Além disso, em função de tudo aquilo que pode acontecer, posso embaraçar as ideias e a imaginação. Posso perder o fio da meada e me enredar também.
Melhor ficar aqui fora esperando, olhando a noite estrelada. É mais tranquilo e eu aspiro o ar da mata e o cheiro da terra, escutando o barulho dos insetos e o coaxar das rãs.
A lua ainda não nasceu. Vejo em volta só estrelas. No céu, as estrelas, astros. No chão, os vagalumes, estrelas caídas do céu.
A única coisa que atrapalha o brilho da noite faiscando nas estrelas, é a luz amarelada que sai da janela da casinha. Mas logo, logo, também isto se resolve. A luz se apaga e agora é só natureza e o seu espetáculo. No entanto, quem olhar bem, quem prestar bem atenção, vai ver que da chaminé da casinha, começam a surgir umas fagulhas, uns pontinhos luminosos, fogo subindo pro céu.
* * *
João e Manoel ainda se encontraram algumas vezes na casinha, mas aquilo era perigoso. Na cidadezinha tudo se sabia, tudo se acabava sabendo. Havia que botar as coisas nos eixos, ou, como se diz, regularizar a situação, porque o que está regularizado, regularizado está.
Para começar, João arrumou um emprego para Manoel. Na repartição, é claro, porque ali quem mandava era ele. Assim, o contato ficava mais fácil. Podia combinar os encontros, ter as conversas, sem levantar desconfianças.
Mas, a longo prazo, era pouco. Havia que dissipar as dúvidas porque a boca do povo está sempre à cata do que é suspeito.
É aqui que entram as três irmãs de João: Rosa Maria, a mais velha, Maria Rosa, a do meio e Rosemary, a mais nova. Três rosas em botão, três botões de rosa. Todas três querendo desabrochar, principalmente a mais velha que já estava mesmo em idade de casar. Muito tímidas, muito recatadas, estavam esperando o irmão apresentar rapaz ajuizado, decente e trabalhador, de preferência com emprego.
Neste sentido Manoel vinha mesmo a calhar. E, de quebra, acabavam-se as dúvidas e as suspeitas. Ficava claro que com a aproximação, a amizade e o emprego novo, João estava só procurando ajudar Rosa Maria a se arrumar na vida.
Não foi difícil convencer Manoel. Ele era flexível, versátil, pau para toda obra. O que ele queria mesmo era se arrumar na vida, sair da pobreza e da miséria que ele tinha conhecido em casa. O emprego ele já tinha arrumado, mas João podia se cansar dele, e aí como é que ia ser? Agora, entrando para a família, era diferente. Rosa Maria era menina bonita, prendada, caprichosa, sabia cozinhar e costurar. Com ajuda do cunhado, ele comprava uma casinha, que Rosa ia mantendo limpa e arrumada. E, de quebra, ganhava prestígio, reputação e ainda ganhava uma família respeitada na cidade. Que mais ele podia querer?
Foi exatamente assim que as coisas aconteceram. Manoel e Rosa Maria se casaram e João foi o padrinho. Um ano depois tiveram um filho, um ano depois mais um, e teriam tido mais, se o tempo permitisse, e se a casa em que moravam tivesse mais espaço, mas João tinha colocado limites.
Os encontros de João e Manoel na casinha da boca do mato tinham rareado, mas, em compensação, volta e meia, eles faziam uma viagem. A viagem era grande e demorada. João já não era mais garoto e queria a ajuda e a companhia do cunhado para carregar as malas, e resolver os problemas que iam aparecendo. Era o que dizia.
Rosa Maria ficava, porque havia que cuidar da casa e das crianças. Na verdade, ela até preferia, porque cidade grande, terra distante, gente desconhecida, barulho e confusão, não era bem o que ela gostava. Além disso, em troca dos cuidados e da dedicação, ganhava uma mala recheada de presentes.
* * *
O arranjo teria durado a vida toda se Manoel não tivesse se cansado. Um certo dia, depois de uma viagem daquelas, longa e demorada, tinha se chegado a João, no maior respeito e consideração. Não era para magoar, não era para ferir. Ele queria a amizade do cunhado, lhe queria bem, lhe tinha carinho e afeição.
Manoel falou com cuidado, porque ali, tratava-se de sentimento e toda cautela era pouca. Mas ele, Manoel, precisava arrumar a vida, acertar o rumo, aprumar o juízo. Rosa Maria sentia sua falta e aquelas viagens longas e constantes perturbavam o ritmo e a vida do casal. E apontando para a barriga disse que já não era mais garoto.
João compreendeu e, além disso, que mais lhe restava se não compreender? Havia que se conformar, ou então, quem sabe ....
* * *
É aqui que Francisco e Maria Rosa entram na minha história. Ou melhor, é assim que a minha história continuaria, se eu quisesse que ela assim continuasse. Os detalhes da história eu só não conto, porque é mais ou menos a mesma coisa que se passou com Manoel e Rosa Maria, a narrativa e os fatos são semelhantes, e eu tenho o maior respeito pelo tempo e pela paciência do leitor.
Depois do Francisco e da Maria Rosa tem ainda o José e a Rosemary. Mas, e depois? Como é que eu continuo a história se João só tinha três irmãs e todo estoque de planos e estratégias é finito?
Como eu já disse no início, aqui não se trata de plano nenhum. Aqui se trata de coisas acontecendo de forma natural, naturalmente.
Naturalmente pode ter acontecido que João, ele também, se cansasse dessa vida de viajante errante. Pode ter resolvido sossegar o facho. Pode ter construído um caramanchão na casinha na boca do mato e hoje planta orquídeas. Senta-se na rede a balançar, aproveita a brisa fresca do final da tarde e observa, como eu naquele velho tempo, as estrelas lá no céu, os vagalumes, esperando o nascer da lua.
Para aqueles que preferem final mais trágico e menos natural, existe sempre a possibilidade, de, em algum momento, em algumas das instâncias, o plano de João não ter dado certo. Em certo instante, alguma das irmãs desconfiou das viagens prolongadas, e resolveu acabar com a farra. Devo, no entanto, dizer, que a probabilidade disto ter acontecido é remota, porque ali todo mundo só tinha a ganhar, mantendo o silêncio e a discrição.
A terceira e última possibilidade é a que mais me atrai e é por isto que eu a deixei por último. Pode ter acontecido que José, o último dos três cunhados, não se cansasse. Pode até ser que José não criasse barriga, nem juízo, nem ficasse interessado em arrumar a vida. Não arrumou a sua vida, porque a sua vida já estava arrumada. José continua por aí, passeando com o João, viajando por este Brasil a fora, aproveitando a vida e os prazeres que ela oferece.
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