SEM LESCO-LESCO
Capítulo I
Era do tipo “comigo ninguém tira farinha”. De andar sestroso e, às vezes. malemolente, ela fazia furor pelos salões do Operário, Batelzinho, Caça e Tiro. Trazendo no rosto o viço da idade, com olhos arteiros e sorriso largo, despertava desejos e invejas. Para não dar vaza à malandragem só saía para dançar com quem lhe agradasse por saber dizer o samba nos pés. Aí não tinha pra ninguém: o salão ficava mais iluminado com o seu brilho. Levou muitos a buscarem o consolo no copo após o “obrigado... depois dançamos outra”. E lá ficava o par (que desejava ser efetivo), com olhar pidão, esperando a fila andar e chegar novamente sua vez. Para as outras restava repetir a frase: “deixa só... um dia ela paga”.
Não deu outra. Praga pega. Inda mais quando leva consigo cargas de rancor, ciúme e inveja. E aí não há sal grosso que proteja. Para ela, a defesa era só mesmo as pequenas marcas das varas de marmelo que levou no lombo quando criança. Até chegar àqueles dias percorreu longo caminho. Se poucas marcas ficaram pelo corpo muitas outras ficaram na lembrança. Essas só estavam visíveis em seus olhos tristes quando o pensamento viajava pelo tempo até os infelizes dias de sua infância. Agora, porém, era hora de virar o jogo.
E virava o jogo a todo instante quando desfilava pelos salões como se ali fosse a passarela de seu reinado. Se algum mais ousado se aproximasse com olhos gulosos e mãos afoitas apenas dizia “anda, desafasta”.
Tantas vezes o vaso vai à fonte, que um dia lá se quebra. Foi o que se deu com Yonara. Dodô chegou e não respeitou o ipsilone. Jogou para a garganta toda a cerveja do copo, desencostou do balcão do bar e foi em direção de Yonara como o perdigueiro que levanta a caça para o abate no tiro certeiro do caçador. Ajeitou as ombreiras do paletó para lhe dar um aspecto espadaúdo, deu um brilho nos sapatos, esfregando-os na parte traseira das barras da calça, e foi em direção àquele pitéu.
Parou junto à mesa, deu uma olhada na moça de alto a baixo, com paradas nas saliências apetitosas e arfantes. Deu uma tragada profunda e apagou o cigarro no cinzeiro cheio de bitucas sobre a mesa. Nem seguiu a praxe do convite à dança. Simplesmente a pegou pelo braço. Ela viu em Dodô aquele da canção de Betânia. O tipo do “mal sei como ele se chama, mas entendo o que ele quer”. Assim ele se instalou feito um posseiro dentro do seu coração.
|