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O TUBARÃO CACHORRO
Laerte Tavares


    A história que eu conhecia em parte e a confirmei, ocorrida em praia de pescadores artesanais do litoral catarinense, local onde fui criado, passou-se há muito tempo, mesmo assim, guardo várias lembranças e um episódio em particular. Os habitantes dali eram, em sua maioria, de descendência portuguesa com a predominância de pessoas vindas dos Açores em meados do século XVIII, e ali se estabeleceram dedicando-se à faina pesqueira. Muitos viviam em função de uma armação baleeira que, à época, servia de base à extração do óleo de baleia, produto usado na iluminação e à exportação.
Em razão de meu esquecimento dos detalhes, conferi alguns dados do causo em foco, com pescadores do lugar, onde possuo uma enormidade de amigos e com meu primo Cláudio Bersi de Souza, emérito conhecedor da história da região, cujo fato teria acontecido com nosso tio-avô, o senhor João Nepomuceno de Souza.

    Sabe-se que tio João costumava ir à lida sem camarada, por gostar de pescar sozinho. Contava apenas com a ajuda da força de um madrugador para colocar sua canoa no mar, feita de um só tronco de garapuvu. E ainda na pouca luz do dia nascente, lá ia ele à força do remo de pá ao encontro das presas, a cerca de quatro milhas da praia. Levava na balaia, já iscado, o seu espinhel fino de uns duzentos anzóis e fundeava-o um pouco mais em terra. Enquanto ficava no aguardo do que seria capturado naquele aparelho, remava mais para fora, e pescava de linha e de caniço. Estava sempre munido de iscas adequadas às águas profundas, destinadas às presas maiores como mero, cherne, cação-mangona ou um cação-cambeva, considerado o mais saboroso e tenro tubarão. – Recordando o ditado popular que: “cação é o tubarão que a gente come e o tubarão é o cação que come a gente”.

    Assim, passadas horas, Titio retornava ao porto com o pescado auferido. Como sempre viveu sozinho, ao chegar, no horário próximo ao meio-dia, consertava[1] o melhor peixe e preparava o almoço lauto, embora simples a ele.

    Em certa manhã de sol e brisa mansa, em sua costumeira pescaria, lançou o espinhel com um velador de tamanho grande, não muito usual, para poder enxergar à maior distância e remou em rumo de fora ao oceano aberto para tentar a sorte. Fundeou a embarcação com uma poita pequena, deixando o cabo bem curto, quase a prumo, e arremessou a linha munida de anzol grande iscada com metade de uma combreia (enguia). Passou um tempo sem qualquer beliscada, enquanto tio João se distraía com algumas palombetas miúdas que ia desferrando do anzol pequeno do caniço curto que usava.

    Eis que de repente, a linha trançada ao banco do meio tesou e por pouco não emborcou a canoa. Ele, imediatamente, fez peso com o corpo no bordo contrário, equilibrando a flutuação a dar estabilidade. Guardou o caniço e deu mais fieira ao peixe que tentava arrastar a embarcação, pela popa, fundeada com a amarra na proa. A luta se estendeu por mais de uma hora entre o lobo do mar solitário e a enigmática presa que parecia enorme. Ora, tio João soltava corda de amarra ancorada na poita e colhia linha de pesca, ora a soltava indefinidamente, içando o cabo de amarra da âncora para cansar o que havia ferrado, que parecia não ceder tão facilmente.

    Pela luta contínua, as energias de ambos iam se esvaindo. Finalmente, a capitulação ou preito do vencido e a expectativa de triunfo do pescador cansado, que pôde recolher a poita e deixar a presa ir conduzindo a canoa a seu bel-prazer que, casualmente, era em direção a terra, no mesmo sentido que levava ao velador do apetrecho de pesca fundeado. E, pouco a pouco, João colhia a linha sem que o oponente sentisse. Já com poucas forças para o embate final, o peixe estava perto, embora em maior profundidade da água turva causada pela lestada da semana anterior que provocou enormes marolas no mar. A cada onda que vinha, a nau pendia e por pouco não bebia água pela borda tracionada à força do enorme peso. A contrabalançar o adernamento, o marinheiro safo mantinha o contrapeso no bordo oposto, o que lhe cansava, deixando-o tenso ante o naufrágio iminente. A poucos metros da canoa, o tubarão surgiu, a tempo suficiente para aquilatar seu grande porte e arquitetar o embarque.

    João, homem de grande experiência, conhecedor das artimanhas, sabia que se provocasse o segmento de ré do animal, ele soltaria o estômago pela boca e morreria. Por essa razão, é que a fim de liquidar o tubarão com maior facilidade, pescadores tentam laçar ou bucheirar o rabo dele, tracionando-o para trás, na direção oposta ao seu deslocamento natural, já que o estômago é solto no interior da barriga e, qualquer movimento contrário à frente, pode fazê-lo expelir pela boca. Outra prática usual seria golpeá-lo na cabeça.

    Tio João preferiu bucheirá-lo pela boca para depois golpeá-lo. Apesar das poucas forças que lhe sobravam, trouxe o peixe à borda e enrolou o seio da linha na toleteira do lado oposto da embarcação, mantendo-a estável e a presa seguramente ferrada.

    Munido do porrete de ipê caçaranha na mão direita e o bucheiro[2] de cabo em madeira de lei amarrado por uma corda que a trançou ao banco da proa, passando-a pelo escovém, o velho se preparou ao desfecho do embate. Daquela forma, conseguiu cravar o robusto anzol do bucheiro no canto da boca do tubarão, imobilizando a cabeça junto à borda. Foi ali que pôde analisar a espécie, reconhecendo ser uma mangona, excelente ao consumo humano.

    Ao tencionar o cabo, tracionando-o pela corda, João colocou o foucinho do cação para o lado de dentro da canoa, em seguida desfechou várias bordoadas à cabeça do animal que pareceu desfalecido. Mantendo a borda próxima ao nível da água, com sacrifício ele conseguiu embarcá-lo, estimando que, pelo esforço dispendido, pesasse uns setenta quilos.

    Semidesfalecida, a mangona agonizava no fundo da embarcação, enquanto João pôs-se a remar até ao aparelho de pesca fundeado. Remava em pé junto ao rabo do peixe, por ter ciência de que exemplares daquela espécie quando colocados sobre o convés de um barco, vivos ainda, são capazes de rastejar e atacar o que estiver pela frente, semelhante a um cachorro. Por isso, o cuidado de ficar posicionado atrás da fera – alerta ao estado de letargia do cão.

    Não demorou, já perto do espinhel, o tubarão-mangona deu um pinote, quase a cair ao mar, voltando-se em sentido contrário, a cento e oitenta graus da posição em que jazia ao fundo da canoa. Ato contínuo, abocanhou a perna do homem que não conseguia desvencilhá-la daquela bocarra parecendo ter por último movimento vital, o cerramento dos dentes cravados à sua panturrilha esquerda. O velho lobo do mar com toda a fleuma, grande característica do experiente pescador, abandonou o material fundeado e singrou calmamente até seu porto de origem, com a mangona agarrada a ele, que ao chegar, recebeu socorro, ocasião em que serraram as laterais da enorme mandíbula para liberar sua perna.

    Eu conheci o tio João, o João Mariquinha, como o chamavam por ser filho da tia Mariquinha, já velho e ainda solteirão, sempre mancando. Lembro-me que quando ele arregaçava a calça até aos joelhos, para entrar no mar, notava-se a falta da barriga de sua perna esquerda.


[1] É o procedimento para limpar o peixe: tirar as escamas (escamar) e desviscerá-lo.

[2] Grande anzol, munido de cabo de madeira amarrado a uma corda, que serve para bucheirar, ou seja, prender a presa para então içá-la à embarcação.

* Do livro CONTOS E CAUSOS CONTADOS - Ebook

Laerte Sílvio Tavares
http://silolirico.blogspot.com.br/







Biografia:
Defino-me como um apreciador da poesia e construtor de versos no meu humilde cantinho Silo Lírico.
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