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DE PERSEGUIDOR A PERSEGUIDO
Rubemar Costa Alves

Vizinhança de pouca instrução impressionava-se fácil com mentiras absurdas e o fulano contava que existiam monstros no garimpo. Monstro era ELE que se aproveitava da ingenuidade alheia, em especial de idosos, ouvintes na rua onde morava. Tentava cercar-se de mulheres, mas não era atraente nem de lábia. Feio, magro, pouca estatura, apenas um tolo metido a galã.
          (Dizem as mulheres mais velhas: “Galã baixinho era o FRANK SINATRA.” Não sei opinar...)
          Garimpo foi ilusão porque ELE vendeu dois terrenos de matagal sem nada construído e um carro. Investiu em maquinaria que em pouco tempo enferrujou, literalmente sonhos foram “por água abaixo”, não achou nada, ouro nenhum. E nem era um garimpo assim nos longes de vida, tão distante como ELE fantasiava: nada de atravessar florestas e chegar perto de fronteira, apenas um Estado fora do litoral, com rios e sem mar. A vida ficou toda atrapalhada. O dinheiro certo de uma anterior aposentadoria se tornou curto. Não se soube muito bem porque, mas despachou mulher e filhos crescidos para morar durante um ano inteiro em Salvador, onde havia parentes dele e uma filha dela, de união anterior, que tinha uma filhinha bem pequena. O apartamento ficou fechado. De tempos em tempos ELE vinha do garimpo, arejava, entrava com almoço pronto e pagava as contas pendentes..
          Casa grande adaptada para apartamentos de aluguel, obra confusa, de modo que esta família residia ao mesmo tempo em dois andares - embaixo, mini espaço para sala e cozinha, mini espaço para dois quartos em cima, dezessete degraus de escada o dia inteiro... Assim, eram três apartamentos. Um em cima, espaçoso, o deles de vai-e-vem, e mãe e filha no térreo, no mesmo espaço do primeiro.
          Houve festa no pequeno prédio, aniversário conjunto de dois menininhos gêmeos e do caçula pouco além de bebê. Minha AMIGA foi convidada, eram moradoras de pouco tempo no ambiente, a mãe sugeriu comparecerem, compraram brinquedos. Pessoal tão bocó que ‘pediu licença’ ao “garimpador fajuto” para fazer a festa na entrada do predinho, um cimentado largo. Consta que ELE fingiu pensar e... “autorizou”.
          O fulano, que ELA só conhecia de vista, a perseguira desde sempre com o olhar. E nessa noite não deu outra. Chegou perto dela, esticou um copo de refrigerante e fingiu-se respeitoso: “A senhora é a nova vizinha?” ELA odeia ‘senhor/senhora, por favor, com licença, desculpe’ - dribla, em caso de pessoa muito mais velha ou autoridade, aí dá uma volta enorme na linguagem e não pronuncia, ninguém se ofende porque não percebe, intimamente ELA sorri vitoriosa. Desta forma, descartou para ELE o pronome de tratamento cerimonioso , afinal eram vizinhos, formal demais não chamá-la de você.
          ELE desde bem antes sabia que ELA era professora, mas não avisado que era muito culta. Sem QI de gênio, aprendia fácil, desde a pré-história até agora (o que não viveu, estudou), memorizava idem, dizia modestamente saber um pouco (muito!) de quase tudo. O idiota falou dos monstros no garimpo, descritos como dragões (iguanas no Brasil?!), ELA citou os Irmãos Grimm e Charles Perrault, criadores de contos de fadas, e de quebra ainda incluiu o mito de São Jorge na Lua, com cavalo branco e dragão... ELE, ó, de queixo caído... Se extremamente necessário (ELA nunca humilha os de baixa ou nenhuma escolaridade - considera crime!), quando ELA de todo não sabe um assunto, faz comparações históricas ou sociológicas, cita mitos e lendas, e o interlocutor antes exibido se perde no que estava falando... “O que era mesmo?” E ELA desvia para um tema em que pareça ‘doutora de sabedoria’.
          (Na atualidade, torce argumentos e mistura a feminista de Brasília com a fascinante Cleópatra e a intrépida Elizabeth I da Inglaterra - ninguém ousa discordar.)
          Debateu praticamente sozinha sobre 13 de maio e 1964 no Brasil, 1968 no mundo, ELE perdido no tempo; em seguida, palestinos, depois ex-colonização portuguesa na África e Japão do tempo dos xoguns (ahn?!...), o fulano pirou total, sem a menor noção espacial de mapas. Nada é cultura inútil. Ficou doido, enlouquecido, ouvira da própria mulher que ELA parecia perigosa (?) e nesta hora ELE entendeu. Não a encantou, tiro saiu pela culatra, ficou encantado. Literalmente fascinado.
           A humanidade adora fofoca e no disse-me-disse alguém contou à mulher dele, pouco depois em casa durante férias escolares de meio de ano, que ELA ‘o chamara’ para conversar, apresentando-se como “a vizinha nova”. Calúnia feminina é impossível apagar. Pior: ELE, covarde, não assumiu e con-fir-mou a mentira. Minha AMIGA ouviu muitas indiretas, sem reagir - no fundo, adorou a comédia, assunto balançado entre novela das 7 horas ou programa semanal na tevê. A desconfiada fez ameaças ridículas, sempre em piadinhas, com ebós da Bahia; muito tranquila, minha AMIGA citou um primo babalorixá, “aquele bonitão que às vezes nos visita...” - bom, se nos ameaçarem com gato, a solução é mostrar gato semelhante... ou cachorro. Em dias, retornaram a Salvador.
           A família de cima foi para outro bairro e as DUAS passaram a residir no alto, sem quintal para varrer.   ELE colocou a televisão na entrada do primeiro quarto onde ficava boa parte das horas nas vindas do garimpo. Arranhava mal e mal um violão e cantava letras de amor (?) mal resolvido - na verdade, torcia as palavras das canções.   Ou colocava gravação dos sonetos melancólicos de VINÍCIUS DE MORAES.
           Numa sexta-feira, ELE veio do garimpo, arranjou um problema qualquer na fechadura do prédio e saiu com as malas. Para tudo há solução. Mãe e filha se perceberam trancadas, da janela convocaram vizinha que ia passando e pediram que chamasse um chaveiro, em minutos foi trocada a fechadura (agora seria ELE do lado de fora) e feitas três chaves. Em poucos dias, ELE reapareceu e engoliu o risinho quando a mãe da minha AMIGA arrasou com ELE sem o menor xingamento e apresentou a conta. Pagou! E precipitado, sem reparar na notinha três chaves, dividiu o valor ao meio - muito sabido, mas sem querer pagou a metade de uma das chaves. Ainda serviu de chacota: “cavalheiro” com mãe ou com filha?       
          De repente, surgiu uma mulher a procura deles. Apresentou-se como baiana, pediu banheiro, pediu água, pediu café, contou que conhecia o fulano desde garoto, relatou intimidades muito graves e feias, inclusive que despachara a enteada, novinha, para Salvador, grávida dele à força. Nossa! Desmoralização total. Minha AMIGA guardou o assunto - podre demais para que outros da rua soubessem...
          Perto do Natal, mulher e filhos voltaram em definitivo.
          Verão, sexta-feira de sol forte e céu azul.   ELA acordou muito bem humorada, fez para a mãe sinal de silêncio e por muitas vezes disse que era feriado. Ora, ELE estava em casa, no sobe-desce constante, arrumou-se para sair, escutou, perguntou à mulher ‘feriado-de-quê’, nem a cunhada visitante sabia, desarrumou-se, olhou o comércio local todo aberto, arrumou-se outra vez. Foi ao banco e imbecilmente perguntou como abriram num dia de feriado... ‘Feriado-de-quê?’ - perguntaram a ELE (minha amiga depois o escutou contar). Ao retorno, subiu a escada e ELA, tranquila e cínica, falou com a mãe sobre feriado em São Paulo, 25 de janeiro, e que um amigo dela talvez tivesse ido para Campos do Jordão, montanha, ou São Sebastião, praia............ Claro que o vizinho deve ter ficado furioso, sem poder dizer que ELA curtiu a cara dele. Como provar?
          Foram muitas as situações equívocas, atrapalhavam-se toda hora e as maldades pensadas caíam contra ELES mesmos. Filho e filha cresceram, “quem sai aos seus não degenera”, encrencas e mais encrencas com a vizinhança e fora dali - os jovenzinhos desde cedo tomaram os piores caminhos: pai valentão, cadê? Muito engraçado quando passou uma patrulhinha e um militar pediu uma informação qualquer. Estavam junto ao portão da calçada, arrumados como quem vai sair, falaram os quatro ao mesmo tempo - “não-fui-eu-moço-eu-juro” - voltaram para o apartamento e se trancaram em casa até a manhã seguinte. De comédia passaram a tragédia?
          Minha AMIGA e a mãe enjoaram do convívio obrigatório, arrumaram nova casa em ambiente longínquo.


                   F   I   M





Biografia:
PARVUS IN MUNDUS EST. (O MUNDO É PEQUENO DENTRO DE UM LIVRO) Ser dedicado, paciente, ousado, crítico, desafiador e sobretudo enlighned são adjetivos de um homem cosmopolita que gostaria de viver mais duzentos, ou quem sabe trezentos anos para continuar aprendendo e ensinando. Muitos de nós acreditam que uma vida de setenta, oitenta anos é muito longa, contudo refuto esse pensamento, pois estas pessoas não sabem do que estão falando. Sempre é tempo de aprender, esquadrinhar opiniões, defender, contestar ou apoiar teses, seguir uma corrente filosófica (no meu caso, a corrente kantiana), não necessariamente crer num ser superior, mas admirar e respeitar quem acredita nele. Entender a diversidade de costumes e culturas denominados de forma polissêmica nas diferentes partes do mundo, falar um ou dois idiomas, se perguntar o porquê e tentar encontrar respostas para as guerras, a segregação racial, as diferenças étnicas, o fanatismo religioso, o avanço tecnológico, o entendimento político. Enfim, apenas estes temas já levaria uma vida para se ter uma compreensão média. A leitura é o oráculo para estas informações, é ela que torna o mundo cada vez menor capaz de se acomodar nas páginas de um livro. É por isso que se diz que não há fronteiras para quem lê. Atualmente as pessoas confundem Balzac com anti-inflamatório, Borges com azeite, Camilo Castelo Branco com rodovia estadual, Lima Barreto com laranja de determinado município paulista, Aristóteles com marca de carro e por aí vai. Embora, eu tenha dissertado sobre o conhecimento culto, os meus trabalhos publicados aqui demonstram o dia a dia das pessoas comuns narrados através de divertidas e curiosas estórias. Meu público alvo são as mulheres. É para elas que escrevo, pois são elas possuidoras de sensibilidade capaz de entender o conteúdo do meu trabalho.
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