É com extrema vergonha e remorso que lhes narro alguns acontecimentos da minha vida. Acontecimentos estes que eu poderia guardar apenas para mim, mas que acho importante compartilhar, mesmo que a estória a ser narrada desperte a repulsa de muitos pela minha pessoa.
Quando criança eu morava em um sítio aos arredores da cidade de Vila Rica, interior do estado do Mato Grosso, e sempre tive um temperamento calmo, gentil e amoroso. Meus pais, agricultores, me criaram livre e me ensinaram desde cedo a tratar bem pessoas, animais e plantas, e eu, nunca os decepcionava. Com sete anos ganhei meu primeiro animal de estimação, um coelho, que eu o chamei de Papel, devido ao fato dele ser totalmente branco. Depois disso já tive um jabuti, um pato, dois gatos, um papagaio e até um bezerro. Cuidei de todos eles com muita dedicação e carinho e eles me retribuíram com o entretenimento e a amizade, e me acompanharam por anos.
Já adulto, me casei e fui morar na cidade de Barra do Garças, também no Mato Grosso. Minha esposa, que compartilhava da mesma vontade e carinho pelos animais, viu em mim o quanto aquela mudança estava afetando minha vida. Morávamos em um apartamento no subúrbio da cidade, sem árvores, rio, espaço, liberdade e, principalmente, sem animais. E isso me fazia muita falta, principalmente porque Flávia, minha esposa, passava o dia inteiro fora de casa, trabalhando, e eu, desempregado.
Certo dia, Flávia voltou do trabalho trazendo três filhotes: um gato, um coelho e um cão. Foi uma surpresa e tanto. Fiquei muito feliz, e agradeci pelo seu gesto tão carinhoso. Ela não fazia ideia do quanto aquilo significava para mim.
O gato, eu chamei de Thomas. O coelho, de Harry. E o pequeno pastor alemão, eu decidi chamá-lo de Rex, em homenagem a outro cão criado pelo meu falecido avô. Os três animais eram muito brincalhões, sujavam a casa toda, rasgavam o sofá, mordiam chinelos, roubavam comida, mas eu não ligava para isso, cuidava deles e me divertia enquanto minha esposa estava fora.
Rex era o meu preferido, talvez pelo fato de ser o meu primeiro cachorro. Era só eu sentar na poltrona para assistir televisão que ele saltava no meu colo e se ajeitava aconchegadamente para assistir comigo. Todas as manhãs ele empurrava a porta no quarto, entrava e subia na cama. Era o nosso despertador. E o que mais me chamava a atenção nele era sua fidelidade, gratuita e incondicional. Ele se apegou a mim de tal forma que me tornei insubstituível, e mesmo quando minha esposa tentava agradá-lo de todas as formas, não era suficiente, ele queria a mim, somente a mim.
Por três anos eu vivi assim, e estava feliz com nossa amizade, mas a falta de emprego estava me consumindo e aos poucos passei a beber. Essa foi minha perdição — Maldito elixir do Demônio, que se aproveitou da minha fragilidade para me possuir. Saía de casa durante a tarde e bebia em um boteco ali perto até anoitecer. Minha esposa não gostava e começamos a discutir constantemente por causa disso. Meu temperamento e caráter foram modificando ao longo do tempo, de modo que fui me tornando mais rude, impaciente, desagradável e sem consideração com outras pessoas. Passei a agredir minha mulher de forma física e verbal e por vezes, vizinhos tiveram que interferir para interromper nossas brigas. Meus bichos, como era de se esperar, também sofreram com meu temperamento agressivo. Por Rex, no entanto, eu ainda mantinha um nível de consideração razoável, que permitia a ele escapar dos maus tratos, diferentemente de Thomas e Harry.
Mas eu estava doente, preso no vício da bebida que me tornava cada vez mais indiferente com o mundo que me cercava, e até Rex passou a sofrer com minhas mudanças bruscas de humor, tanto que me evitava, receoso.
Certa noite cheguei em casa embriagado, resultado de um dia inteiro de boteco, e quando abri a porta flagrei o cão mastigando meu sapato de couro. Tomado de uma fúria descomunal, corri em sua direção e golpeei-o com um chute nas costelas. Rex soltou um latido alto e caiu perto da janela. Eu estava completamente descontrolado e nem eu mesmo me reconhecia. Peguei meus sapatos coloquei-os na caixa enquanto o cão agonizava no chão. Naquele momento não houve tristeza, nem arrependimento, e muito menos remorso pelo ato praticado, apenas um ódio incontrolável e assustadoramente diabólico se apossava da minha alma, como se uma maldade, inconsciente, adormecida por toda minha vida houvesse naquele momento despertada. Não satisfeito com a punição dada, arrastei-o até cozinha, peguei uma faca na gaveta e arranquei-lhe o rabo! O cão estava sem forças para reagir, ou talvez, simplesmente não quisesse.
Fui para a sala e liguei a televisão. Não demorou muito para que eu adormecesse sentado na velha poltrona de couro enquanto meu estimado cão sangrava e agonizava no piso da cozinha.
Pela manhã, quando acordei, a embriaguez já havia sido dissipada pelas horas de sono. Naquele momento fiquei enrubescido diante da abominável atrocidade por mim cometida. Vi-me sentado na poltrona, com a televisão ligada e, no meu colo, Rex repousava aconchegadamente. Sem cauda e sem vida.
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