Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
Recordação
Cristina Estevão

Resumo:
Todo dia a gente mata um pouqinho de quem a gente ama, e se a gente não mata, a gente morre. Porque alguns amores florescem pra machucar a alma e por mais que doa é preciso arrancar tal amor, nem que seja a facadas.

     Já não sabia mais pelo que esperava. A fila parada, pessoas em volta, pés batendo firmes no chão, dedos apontando para ponteiros ociosos. Agonia.
     Esperava. O quê?! Ah, já chegaria sua vez. Papéis na mão. Próximo! Ei, próximo! Chegaria sua vez.
     Uma espera que já não era mais uma espera. Entrara num devaneio lento, desde que cruzara a porta giratória. Era um mundo íntimo, seu, só seu. Que brisa leve lhe veio à mente, ao olhar a fila murcha que já dava voltas em torno de si mesma. Terapia na fila. Lá mesmo, sentia tudo de novo e novo.
     Na quietude de um rosto morno e sonso, mau se podia ver o que dentro se passava. E o que se passava dentro dela, nem ela mesma sabia. Deve ter sido ali - na fila-, que descobriu que não sabia que sentia, nem mesmo o que sentia. Não sabia o tamanho de si, julgava ter alma pequena. Agia pequenamente, vivia no seu ódio do mundo.
     Lembrou do antigo amor - talvez seu único amor: a traíra. Traição cruel. Prometeu nunca mais amar. E não amou mesmo: aprendia a maldade da vida, a perversidade dos homens. Matou o fio de romantismo que havia no peito: "não sou romântica" - repetia em frente ao espelho.
     Ria de suas desgraças, da inocência dos homens... Brincava como eles: dizia amar, prometia ligar - não amava, não ligava. Fazia-os acreditar naquelas meias verdades bobas, e talvez não a levassem tanto a sério, e vice-versa. Coitada.
     Mas era ainda menina. Menina de alma, com papéis na mão. Esperando sua vez, que demorava. Pensou em maldades, sem dó de ninguém. Olhou para o chão: uma criança esquisita agarrada à mãe. Odiava crianças, e gente grande também. Não fazia questão - e nem sabia como -, de parecer boa. As pessoas, no todo, agradavam-se dela, achavam-na doce. Coitados mesmo. Criava era ódio do mundo. Devaneava vinganças doces no seu íntimo. Olhava os papéis segurando-os preguiçosamente.
     Lembrava-se daquele homem a quem amara loucamente, perdidamente, a quem entregou sua pureza de menina boba. Traída. Enganada. Traída. Ali estava com papéis na mão e cara de trouxa. Traída.
     Tanto tempo passado e raiva não passara. "Cara de trouxa mesmo eu devo ter" - pensava. Pareço mesmo uma idiota, palhaça! Pensava já na vingança, no sangue... Desgraçado. Suava frio.
     Chegou sua vez, soltou os papéis no balcão, jogou o dinheiro. E troco na mão. Saía. Já sabia bem aonde ia. Passos firmes: ia, ia lá mesmo. O chão tremia.
     Olhavam-na passar, no seu desfile compenetrante, andava como uma mulher. "Lá vai, lá vai" - diziam. Onde? Matar? E lá ia mesmo. Na casa dele, matar mesmo. Filho da puta!
     - Quero o sangue dele espalhado pelo chão. Quero grito de misericórdia, quero que implore - pensava - E eu vou rir! Rir mesmo, filho da puta. Vai morrer desgraçado, morrer... - Tremia de prazer - Achou que fosse ficar barato? Ia não! Não ia mesmo! Você me matou primeiro e matou de morte bem mais doída: matou e me deixou viva, agonizando todo dia. - Chorava por dentro, ria por dentro, sentia raiva e alívio.
Tocou a campanhia. “Abre desgraçado, abre!" Gargalhava! Os olhos sangravam e gargalhava.
Abriu! Pediu licença, entrou. Num passo voou num passo a faca já ia fazendo, cumprindo seu papel, já docemente cortava a carne e arrancava-lhe a alma. A alma do desgraçado. Ria mesmo, ria na cara dele. Na cara ensanguentada dele. Morre, morre mesmo. Morre pra não esquecer nunca mais do que me fez.


Biografia:
Pra enfeitar a vida, quebrar a mesmice de todo o dia, um bom texto, um bom livro... Engana a mente e encanta a alma...

Este texto é administrado por: CRISTINA ESTEVÃO
Número de vezes que este texto foi lido: 52819


Outros títulos do mesmo autor

Crônicas Volta CRISTINA ESTEVÃO
Poesias Me fez lembrar CRISTINA ESTEVÃO
Crônicas Ímã CRISTINA ESTEVÃO
Poesias Amor versado Cristina Estevão
Crônicas Lacônico Cristina Estevão
Frases Maturidade Cristina Estevão
Crônicas Fuga Cristina Estevão
Contos Recordação Cristina Estevão


Publicações de número 1 até 8 de um total de 8.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos
JASMIM - evandro baptista de araujo 69021 Visitas
ANOITECIMENTOS - Edmir Carvalho 57928 Visitas
Contraportada de la novela Obscuro sueño de Jesús - udonge 57565 Visitas
Camden: O Avivamento Que Mudou O Movimento Evangélico - Eliel dos santos silva 55847 Visitas
URBE - Darwin Ferraretto 55132 Visitas
Entrevista com Larissa Gomes – autora de Cidadolls - Caliel Alves dos Santos 55086 Visitas
Caçando demónios por aí - Caliel Alves dos Santos 54966 Visitas
Sobrenatural: A Vida de William Branham - Owen Jorgensen 54906 Visitas
Coisas - Rogério Freitas 54839 Visitas
ENCONTRO DE ALMAS GENTIS - Eliana da Silva 54835 Visitas

Páginas: Próxima Última