LINA, CAROLA, CAROLINA*
E muito ainda há de falar o povão das bandas de Nossa Senhora da Conceição de Camporá, nas tardezinhas, cadeiras nas calçadas. Ou logo cedo, como é de costume dos machos, parando bem ali no cruzamento das ruas do centro, a regatear o boi em pé e a barganhar letras bancárias. No sussurro, como sempre foi e há de ser. Para sorriso dos mascates, que ali chegaram há quarenta lustros e hoje ainda se resguardaram de mesclar sua gente, e até de negociar com os filhos da terra, de quem dizem ser descendentes de grande tribo de índios falastrões – pois que também muito fazem por onde levar essa pecha – e fincam, logo, moirões de angico e longas cercas entre suas terras e as dos nativos. E justo por esses bem-nascidos alardearem as virtudes de sua prole, mais desponta, em todo o Bambual, uma acontecência como essa, a mostrar que, vez por outras, as novilhas de dois pés procedem como as de quatro e cruzam ou acasalam com tourinho de outro pasto, além dos retiros.
Assim foi com dona Carolina Carvalhais de Albuquerque e Mello Garcia, moça que já nasceu boa para o corte – no dizer da peãozada – herdeira única dos muitos hectares de Donato de Albuquerque, a que Ramão de Mello Garcia juntou os seus, muito bem cobertos de colonião , para tristeza e angústia de velho Donato e dona Maria, pois camporeense não tem que juntar o que é de seu a gente que cruzou o rio na fronteira para fazer fortuna no Bambual. Mas a cheia engolia a pouco e pouco as reses dos Carvalhais de Albuquerque, e as terras altas de Ramão fizeram o velho esquecer que aquele mestiço podia ser pai de Lina, embora ainda falasse grosso, comesse uns três pintados – que ele mesmo pescava na voadeira e escamava – ou acertasse de uma só vez, com a doze-cano-serrado ou a quarenta-e-quatro , no meio dos olhos de um queixada ou um catingueiro que seu capataz Lupércio, no rancho, acabava de carnear para a rapaziada.
Foi assim que muito se falou daquele casamento, na Matriz. E quantos não desceram a ladeira, no cortejo, atrás do carro de Ramão, a buzinar, como se faz em Camporá, para mostrar que aquela era donzela.
E Lina, a das ancas preciosas, das pernas grossas e seios duros e pontudos, mais aquele falar arrastado, mole e gostoso de camporeense, abrindo bem as vogais – “Como não?” – deu de andar toda de preto, os olhos puxados entristecidos, vestidão fechado na gola e nos punhos, a bainha nos tornozelos, e um tal de missa e igreja e igreja e missa e vez que por outra um passeio na Avenida, pela pracinha, bem guardada pelas irmãs mais velhas de Ramão – senhoras de respeito, tementes a Deus e que jamais perderam a virtude – nos sábados à tarde, que aos domingos os mascates soltavam suas balconistas que lá iam se encontrar com os rapazes do Tiro de Guerra, para um sorvete de bocaiúva e uma caminhada, antes de descerem ao porto para um mixê assustado entre as palmeiras. E isso não era ambiente para senhora honrada.
E ia assim quando, nas falas das comadres, começou a parecer estranho que não vinha o esperado herdeiro de Lina e Ramão. E se dizia da má sorte da moça, que perdera os estudos causa de um primo que lhe pedira a mão – para das famílias que assim somavam, ao invés de dividir – mas esse apartando o gado, levara um tropeço em cova de tatu; não ele, mas o cavalo, e bem o santantonio de sela lhe amassara a virilidade, o que veio Donato a saber por sua cozinheira, contraparente de uma decaída a quem o peão do rapaz tudo contara numa dessas sextas-feiras em que descem de lancha ou de trem para camporá e deixam a féria nas mãos dos mascates, de quem compram munição nos fundos das lojas, e das mulheres-damas que os deslumbram com suas calcinhas de náilon, tão diferentes das ceroulas das empregadas das fazendas. E quanto embora o desmentisse o pai do capão, tanto fez o Donato que lá se foi o pobre para o norte do estado, a zelar por uma chácara e plantar arroz, evitando os sorrisos irônicos e os convites cínicos das duas mais famosas donasde-rendevus da cidade; essa, sim, senhoras de respeito, pois que de tudo compravam sem fiança ou aval, já que à noite os comerciantes depositavam nos porta-seios de suas raparigas a renda que lhes davam as mil-e-não-sei-quantas reses. E bem o sabem as esposas, mas não desacatam as duas na rua, nem lhes cruzamos olhares, para que seus amos e senhores não lhes bloqueiem as contas eternas de sedas, sapatos e brilhantes e tenham que viver como umas e outras, a prometer que pagam mês que vem, “nesse não deu, sem falta daqui a quinze dias, precisei de um remédio, mas daqui a uma semana, não, não, amanhã de qualquer jeito, não proteste o título, que meu marido não sabe, lhe dou um cheque para...”
Mas Lina... Sim, pois Lina era filha dessa gente de Camporá, como se vê, de boa cepa, muito decente e honesta, sem cochichos nem maledicências, diferente daquela sem-vergonheira do Rio de Janeiro.
Mas o neto não vinha. E conquanto Ramão não fosse homem de ser dobrado assim por qualquer coisa, tanto insistiu o sogro, que levou a moça ao velho doutor Agapito, homem ilustre e famoso naquelas bandas e a quem ninguém desmentia; pois esse esculápio, que zelava muito por Lina, que vira nascer – e mais ainda pela sitioca hipotecada a Ramão, que o salvara assim dos danos da cheia e das garras de um rábula local, antigo adversário político de ambos – assegurou a dona Mariquinha que o aparelho da moça é que estava um pouco desregulado, e não o de Ramão. E muito recomendou um outro doutor, estabelecido no Rio, colega e co-estaduano, outrora também fazendeiro no Bambual e que realizara o sonho de todos os nascidos naquela bandas, montando casa frente ao mar, na praia do Leblon.
Ramão trovejou, esmurrou mesa, comeu cinco rabos de jacaré,mais um de teiú , a inquirir Donato sobre como lhe dera uma potranca que não podia parir. Donato quase busca o trinta e oito cavalinho que já amansara muito politiqueiro novo em priscas eras, mas a dor no peito cresceu e ele apanhou mesmo foi a grosa e ralou mais um pouco do pão de guaraná , que tomou com paçoca . Vontade danada de jogar aquele bastardo mateiro na moita de cansanção . Vai-que-não-vai, entre um gole e outro de licor de pequi feito ali mesmo por dona Mariquinha, e Ramão decidiu mandar a mulherzinha para o Rio. Mas não de avião de carreira ou trem. Iria no cesninha dele, com o piloto Antonico e mais Lupércio, que a deixariam em seu apartamento no Rio, onde morava a filha de seu primeiro casamento, solteira e honrada.
E lá se foi Lina em busca do colega de Agapito, muito bem escoltada pelo capataz e o piloto. Que por sinal muito lhe queriam bem e respeitavam. Tanto que, já quase pousando em São Paulo, lá uma turbulência qualquer fez a moça resvalar e a saia subiu, mostrando um bom pedaço de coxa, que Lupércio saboreou com o canto dos olhos, logo fuzilando com a carranca o companheiro, que quisera também tirar uma casquinha. Ora, o Antonico... Aquele magricela, de bigodinho, sempre a palitar os dentes compridos e amarelos, com um sorriso malandro, feito um guaxinim... a olhar as coxas da patroa....
Mas ficou só no olhar, que os dois não eram bestas e conheciam bem como Ramão manuseava a faca de castrar porco, e ficaram quietinhos até entregar a moça, sã e salva, para a enteada, por sinal da mesma idade que a jovem madrasta, no Santos Dumont.
Angelita de Mello Garcia, a solteira e honrada filha de Ramão, bem podia ser irmã de Lina. Ambas ainda não tinham dobrado os trinta. E recebeu-a muito bem em seu apartamento, é claro, frente ao mar. Tão logo chegaram, tirou o vestido preto e longo e, num resmungo, soltou os cabelos presos presos num coque: “Isso é p’raqueles dedos-duros não mexericarem com o meu coroa. E você, boneca, vai tratando de se vestir como a gente aqui da praia, que não vou dar vexame de andar com mulher de roupa caipira.”
E Lina, ainda que escandalizada com toda a prosopopéia da entrada, tratou de ir se acomodando à vida no Rio de Janeiro. No começo ainda com uma certa timidez, misturada àquela malícia da gente do interior, desconfiando se aquela rapariga não estava ali a lhe atazanar as idéia e a tentá-la, a ver se não desmerecia o nome que lhe dera Ramão.
Mas não. Angelita era mesmo da pá virada, tinha o capeta no corpo, mostrava ser filha de dançarina de cabaré do outro lado da fronteira. Trabalhava para passar o tempo, que precisão não tinha de dinheiro, sobrando e muito para suas traquinagens o que o pai lhe enviava a cada quinze dias. Pois não conseguiu fazer com que Lina fosse à praia? E morria de rir vendo a camporeense metida num duas-peças pela primeira vez na vida, com um chumaço de cabelos a sair pela beira do biquíni. “Raspa isso, sua boba. Pô, aquele velho ta gagá, é? Acho que ele não reparou ainda no pedaço de mulher que tem...”
E Lina se acariocando... Um jantar aqui, um passeio ali... Puxa, como Angelita tinha primos... Mas todos muito decentes, bons rapazes, tão educados, não se incomodavam que ela fosse dormir, ficavam fazendo sala para Angelita, coitadinha, que sofria muito com aquela insônia: nem chá de hortelã nem queimada de leite com canela para lhe dar sono; e aqueles moços todos ali para fazer companhia até ela pegar no sono...
As cartas de dona mariquinha iam ficando mais freqüentes: como é, esse neto vai ou não vai sair, e Ramão também querendo saber dos exames do tal doutor... e Lina a responder pacientemente, que tudo ia bem, a Angelita era moça muito boazinha, já a tinha levado ao médico, logo estaria de volta, tinha saudades daquele cheiro de mato, do leite tirado na hora, do quebra-torto , mas o Rio não era tão ruim assim, já vira todos aqueles lugares de que o pai lhe falara... e dormia ouvindo o barulho do mar, enquanto Angelita fugia da insônia, na sala, com um daqueles primos.
Pois foi quando o doutor a examinou e perguntou que história era aquela de esterilidade, que não tinha era coisa nenhuma. Um aparelho perfeito. E danou a lhe perguntar coisas de sua intimidade, de tal jeito que Lina enrubesceu e chorou, que isso não é pergunta que se faça a uma senhora, e teve logo medo que Ramão viesse perguntar pessoalmente ao médico se não respeitava mulher casada; e pegou-se no braço de Angelita, que emendou lá como pôde a situação e carregou Lina pra casa, dizendo consigo mesma: “Então o gavião velho está brocha e querendo botar culpa nessa pombinha idiota... Deixa comigo”.
E Lina tome a chorar e a maldizer a vida, que não podia ser mãe, e que ia embora, e que só mesmo o doutor Agapito ia conseguir dar um jeito, e que em último caso ia até a curandeira de Camporá, mas havia de dar um filho a Ramão, ou se jogava na baía com uma manta de carne fresca para atrair as piranhas, que gente errada assim tem mais que ir arder nas caldeiras de Pedro Botelho .
E logo se pôs a refazer as malas e a devolver a Angelita todas as roupas que lhe tinha tomado emprestadas; mas avião e trem para Camporá não é toda hora que se acha. Melhor era telefonar para que o Lupércio viesse buscá-la, como na vinda. Mas chegar lá e dizer o quê? E toca de chorar e se lamentar e a querer procurar outro médico, que aquele não era como os de sua terra; ela sabia que o aparelho dela era desajustado, seu marido, sim, era forte e sadio, um homem muito bom, e aquele renegado a querer saber se ele dormia com ela, diacho.
Pois foi quando Angelita a sossegou e disse que ficasse calma, que ela telefonaria, mas tivesse paciência enquanto isso; o dia seguinte era sábado, faria uma reuniãozinha de despedida para ela, para pouca gente, só a Mônica, o Renato, a Verônica, o Paulinho, o Beto, o Zequinha, a Andréa, a Carla, o... o... como é o nome daquele cara que toca violão? Ah, o Fernando, é isso mesmo, amigo do Juca...
No sábado de manhã a praia estava boa, o sol dourava pele de Lina... Angelita resolveu puxar conversa... Fez umas perguntinhas... Que Lina não tivesse receio; afinal de contas, era a atual esposa de seu pai, sua madrasta, portanto... E vai-que-não-vai, com jeitinho, começou a explicar umas coisinhas para Lina e a saber de outras... E tome de conversa no almoço, nas compras, no cabeleireiro... E os olhos de Lina foram se arregalando... Foi se lembrando do que a mãe lhe falara na vésperas do casamento...E quando deu por si, lembrando-se do que lhe dissera o doutor, começou a entender porque é que não tinha filhos...
A noite de sábado recebeu uma Lina bem diferente. O vestido provocante não era de Angelita. Ela mesma o comprara, à tarde, numa das lojas ainda abertas do bairro. Os longos cabelos soltos, o tecido levemente transparente, deixando entrever a tanga bem cavada, e as botas pretendendo esconder aquelas pernas privilegiadas que o corte da saia insistia em mostrar... e um sentimento esquisito, misto de curiosidade, de algo novo, brigando dentro dela com uma idéia qualquer de infidelidade, de pecado mortal, que frei Aureliano lhe incutira na cabeça nas aulas de catecismo do Colégio das Irmãs de Camporá: “Bolas, não telefonei; faz mal não; amanhã; hoje eu quero me alegrar um pouco”. E estava entretida nessa idéias, defronte ao espelho, sem ver que a enteada a observava lá da porta do quarto, com uma cara de quem andou aprontando alguma, com aquele sorriso de malandra bem vivida...
A reuniãozinha estava agradável. Lina acabou não resistindo e provou o Martini, sentiu um ardor no estômago e de repente se surpreendeu dando risadas das piadas do Juca e notou que tinha esquecido de pôr a aliança. Um calor lhe subiu pelas faces e ela viu o Fernando olhando para suas pernas. Êta, moço danado... Sem querer, cruzaram os olhos: ela baixou os seus, tímida, e ele lá, a encará-la... e ela volta e meia tentando ver se ele ainda estava olhando, e estava mesmo... brincando com o violão... cantando lá umas músicas que pareciam estar lhe mandando algum recado... Lina sentiu vontade de cantar, mas não, deixa isso de lado, tenho mais é que voltar para a fazenda... e aquela leveza, aquela sensação de estar pisando em nuvens...mas agora o moço está cantando é para aquela outra dona... e Lina arriscou um olhar furtivo para as virilhas do violonista... esquisito... que calça mais apertada... que volume é aquele? Deu um risinho... apanhou qualquer coisa na bandeja, para beliscar... arriscou mais uma olhadela e o olhar de Fernando apanhou-a em flagrante... que sorriso cínico... melhor olhar para o outro lado... mas esse demônio não pára de me fustigar... e agora está sério... está cantando para mim... E estava mesmo. E parou de sorrir. A música era bonita... a turma foi silenciando... Lina olhando para Fernando... Ele era danado... Ficou de banda para ela e só ela pôde ver o que o violão estava escondendo dos outros... o tal volume... que começou a se mexer...e o rapaz a encará-la...e aquela coisa enorme a forçar a braguilha da calça dele... E Lina começou a sentir um formigamento pelo corpo, e as partes lhe começaram a arder, o coração bateu mais forte, as pernas rijas bambearam, sentiu os seios se enrijecerem nas pontas... e uma coisa líquida e quente desceu de dentro dela, molhando a calcinha... A música estava terminando... Lina descerrou os olhos, levantou-se com cuidado e foi até o banheiro pensando: “Que horas mais errada para ficar de chico”, mas não era chico nenhum; que diabo, também não tinha feito xixi; que negócio era este? E já ia apanhando outra tanga no armário quando entrou Angelita com aquela cara de safada: “Pô, você tá no atraso mesmo, hein? Só de olhar para o Fernando... Ei, qual é, nem vem com essa de ficar vermelha, não, que agora não cola mais. Te manca, mulher, não vou te cagüetar pro velho, não, pombas. Bora lá pra sala, o negócio agora tá quente, a turma resolveu dançar; vem logo.”
Pela primeira vez na vida Lina acordou tarde, no domingo. Angelita já se levantara. A casa estava um caos, uma desordem. Lina começou a se lembrar de como dançara, na véspera... Das pernas de Fernando se esfregando e entrando pelas dela... As conversas dela na varanda... “É... Vou ter que me confessar”.
O telefone tocou durante o almoço. “Dona Carolina... É para você... Um cara que toca violão... Cuidado, madrasta...” Angelita não tinha jeito, mesmo. Bem podia dizer que ela não estava... Mas sentiu uma pontinha de alegria e foi atender... E quando já conversava há boa meia hora, bateram à porta. Angelita abriu... e Lupércio entrou, olhando com um jeito irônico os cinzeiros cheios, as garrafas pela metade, os copos sujos... e dona Carolina Carvalhais de Albuquerque e Mello Garcia vestida só com uma camisola transparente, curtinha, as pernas para cima da mesa, dando risada no telefone...
- Seu Ramão cansou de esperar, dona. Eu vim lhe buscar.
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Fim de tarde na praia. Juca e Fernando bebericam uma cerveja num barzinho elegante. Juca, mais tarimbado, desvia o assunto do papo. Claro que o assunto é Lina. Mas o rapaz é teimoso e não se assusta com a possibilidade de ser carneado como novilha lá no Bambual:
- Cara, te juro que vou apanhar essa mulher...
- Desiste, malandro. Olha, aposto meu carro. É teu, bicho, se ganhar aquela dona e não te castrarem.
A viagem de volta foi uma tortura para Lina. Lupércio, matuto velho, viu logo que ali tinha coisa. Aliás, a vida não muda muito, não. Podia ser no escuro dos recantos das fazendas ou nas casas dos bacanas do Rio, homem e mulher juntos só pode dar uma coisa... E sorria, olhando de esguelha para a patroa, perguntando se tinha se distraído muito... O patrão estava saudoso... E Lina lhe adivinhava as intenções... Ele poderia muito bem esquecer o que praticamente adivinhara, se ela...
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Fazia hora que dona Carolina regressara a Camporá. E como de costume, as coisas foram se acomodando, que o sol do Bambual é muito quente e a modorra vem e tudo vai ficando para depois, que ninguém é de ferro, e dia vai, dia vem, o passeiozinho à tarde, o vestido preto, e só uma e outra comadre ainda pensava no neto que Lina não dera a Donato; o rio encheu, o rio baixou, vem aí a eleição...e chega a Camporá frei Agostinho. Missionário, está de passagem, vai para as reservas de índios lá bem ao norte. Moço ainda, mas impondo muito respeito só pelas barbas. Correu que era milagreiro, a porta do Palace Hotel se encheu de aleijões, um vereador quis logo dar-lhe um diploma de cidadão camporeense pelo destemor em ir se meter com índios, não por eles, que já não são mais selvagens, mas pelo que iria topar de bocas-de-sapo , caranguejeiras, burricos , doenças e mau tempo. Mas o prefeito, ex-pessedista, escorregadio, foi ouvir primeiro a voz de frei Aureliano, pastor daquelas almas há quarenta anos, e a coisa foi morrendo, e a vidinha continuando, a peãozada tomando sua caninha... e olha que lá vem Ramão em sua perua Chevrolet quando frei Agostinho, dirigindo a Rural que o conduziria às missões, avança o único sinal de Camporá e afunda a porta direita do carro do marido de dona Carolina. Acontecimento, movimentação geral, finalmente o delegado Clodoaldo vai ter trabalho, lá vem o cabo Fortunato de Jesus impor sua autoridade... Não fosse a batina e frei Agostinho virava churrasco nas mãos de Lupércio, que andava por ali e viera acudir o patrão. Mas Ramão respeitava homem de Igreja e o estrago da Rural decrépita era bem maior que o da sua Veraneio novinha. Nem bem tirara o chapéu para falar com o frade e este logo se adiantou, puxando da manga um maço de notas reluzentes, todas de quinhentos, e chorava, dizendo que pagaria tudo, que aquelas poucas economias eram para ajudar os índios, mas fora ele o causador de tal tragédia, que Ramão o perdoasse, ele esmolaria por alguns dias, em penitência ao seu pecado, e logo o cabo e o delegado se puseram a favor, que cumpridores eram de seu dever, mas “seu” Ramão era homem querido e decente e, não querendo o processo, não se faria, mesmo porque a delegacia está sem máquina de escrever, já foi solicitada seis vezes à Regional por ofício, o último malcriado, que Clodoaldo Figueira não é homem de se atemorizar com nenhum chefão da capital... e lá se desfaz o repentino tumulto... o repórter local começa a rabiscar umas notas numa sebenta agenda Laemmert, mas desiste quando Lupércio o olha de mau jeito. A turma que jogava truco no boteco em frente empurra a Rural para debaixo de uma árvore e Ramão leva o grupo para sua casa, onde podem conversar mais à vontade. No caminho, uma notinha de quinhentos, estalando, escorrega das mãos de frei Agostinho para o bolso do delegado, que comenta que o cabo tem uma filha abobalhada, o senhor compreende, e lá vão mais cem para a autoridade... e ficam os dois na praça, que já é tarde, têm que voltar ao xadrez, tudo certo, “seu” Ramão, não vamos perturbar a paz de seu lar nem incomodar dona Carolina... enquanto lá se vai o missionário provar um cafezinho feito na hora pela mulher do fazendeiro.
E Ramão: “Não se preocupe, sua Eminência, que em Nossa Senhora da Conceição de Camporá se respeita o nome de Ramão de Mello Garcia, que saberá restituir às missões essa perda de hoje e, se Deus quiser, o próximo futuro vereador Ramão proverá a matriz desta terra do órgão com que sonha o coro dominical formado por este ilustre povo, e...”
Frei Agostinho sorria, beneplácito, elogiando aquele bom homem, dando graças por sua caridade, e prometia, não servir-lhe de cabo eleitoral – que tal coisa não dizia bem com sua condição de pastor – mas um bom sermão tem lá seus efeitos... e trocavam olhares de gente sabida, a piscar o olho, quando chegaram ao imponente sobrado do futuro edil; pois justo ao descer do carro, a perna de frei Agostinho falseou e ele foi ao chão. Ramão e Lupércio logo o acudiram: “É... a pancada afetou essa minha perna defeituosa... Upa! Pronto. Obrigado”.
E lá seguiu manquejando, amparado pelo fazendeiro e seu capataz, que, supersticioso, já começava a achar que dava azar acidente com padre... Melhor ajudar mesmo aquele missionário...
Lá na solteira, apreciando aquela pândega e já sabendo de tudo – que em Camporá logo de tudo se sabe mais depressa que o vento – a senhora dona Carolina Carvalhais de Albuquerque e Mello Garcia.
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E muito ainda há de falar o povão das bandas de Nossa Senhora da Conceição de Camporá, nas tardezinhas, cadeiras nas calçadas. Ou logo cedo, como ainda é de costume dos machos, parando bem ali no cruzamento das ruas do centro, a regatear o boi em pé, a barganhar letras bancárias e, no sussurro – como sempre foi e há de ser – relembrarão do candidato a vereador, o rico e valente mestiço Ramão de Mello Garcia, que levou para sua fazenda o missionário frei Agostinho, para que lá, na paz dos campos e cerrados, se refizesse de sua perna acidentada. E que por ser homem temente a Deus e crente da honestidade dos pastores de almas, não receara deixar aquele santo sacerdote em companhia de dona Lina, a pedido mesmo desta, que precisava desde há muito se confessar. E, por infelicidade ou obra de alma penada, caíra com o cesninha nos alagados do Bambual, desaparecendo no pântano a que hoje chamam a Furna da Carolina, com mais seus fiéis Antonico e Lupércio. E corre ainda nas bocas das comadres que Marianinha Garcia, a quem Carolina adotou como filha, não foi parida por empregada que morreu ao dar à luz, mas saiu mesmo foi do útero de Lina, tanto que tem os olhos, as ancas e os peitos como os da mãe, a excomungada Marianinha, filha do padre e do diabo encarnado na filha de Donato. Mas pena ou sorte, é que só um milagre daria a fala à Jacintinha, mucama de Lina e muda de nascença, mas nem tão catacega nem tão surda que, naquela tarde fatal, sentada do lado de fora da sede da fazenda, debaixo da janela do quarto de frei Agostinho, não o tivesse visto pelas frestas, a tirar barbas e batina, vendo surgir um moço bem apessoado, que entreabriu a porta do quarto, por onde entrou de mansinho a Lina, coberta só por uma pala de campear, os longos cabelos soltos, os olhos puxados, os bicos dos seios pontudos e enrijecidos, as ancas salientes, aquele jeito de égua no cio, caminhando devagar, bamboleando levemente os quadris, avançando de mansinho as pernas perfeitas em direção ao moço bonito, que começava a lhe alisar a penugem das partes pudendas, mais aquela fala mole, gostosa e arrastada de camporeense, abrindo bem as vogais, quase murmurando:
- Será que é pecado botar um quilo de pó de guaraná no tanque do avião? – E dando uma gargalhada – Quero me confessar; frei Fernando...
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