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A Batalha do Canal
Pedro Mayall

Muitas cidades são cortadas por rios. Cabo Frio tem um canal de água salgada. Para a maioria das pessoas, não faz a menor diferença. Rio ou canal, é só um curso d’água indiferente. Para os garotos de doze, treze anos da Turma do Portinho, naquele ano de mil novecentos e setenta e oito, fazia muita diferença. Como cenário de aventuras, um canal é muito mais divertido do que um rio.

O Canal do Itajuru serpenteia por Cabo Frio ligando o mar à Lagoa de Araruama. Por causa das marés, a corrente do canal muda de sentido quatro vezes por dia. Já os rios correm sempre na mesma direção. Ao contrário dos rios, o volume de água no canal varia abruptamente quase todos os dias, sobretudo nas marés de lua cheia e nova. Enquanto os rios são invariavelmente gelados, no canal a temperatura da água é agradável, quase morna na maré vazante que leva para o mar as águas quentes que buscou na lagoa. O canal parecia ter sido feito de encomenda para brincadeiras de meninos já robustos e independentes o bastante para correr riscos longe da vista dos pais.

A turma se formara naquele mesmo ano, entre os alunos da quinta série do Colégio Alexis Novelino. Com o desembaraço típico da idade, malgrado tivessem se conhecido naquele momento, em poucas semanas já eram amigos de infância. O ponto de encontro era a casa de Cesar, no bairro do Portinho, perto do canal. Os pais dele trabalhavam fora o dia inteiro, de modo que os garotos ficavam à vontade e a casa servia como sede de clube. Além disso, era o ponto mais central e para lá convergiam Pedro, Eduardo, Paulinho, Marcos e outros, todos de bicicleta, depois da aula e do almoço, no início da tarde. Reunidos, decidiam o que fazer.

A cidade toda era um campo de aventuras, as praias e a lagoa, as salinas e as pedras do Forte São Mateus, os morros e os terrenos baldios. E, claro, o canal, cujas águas naquela época eram limpas e claras. A escolha variava segundo o tempo e as preferências da hora – desde que fosse ao ar livre. De bicicleta não estavam a mais de vinte minutos de qualquer ponto da cidade. Ver televisão não era uma opção, salvo quando chovia muito - o grupo então nem se reunia -, e ainda não existiam videogames e internet. Raramente tinham paciência para jogos de tabuleiro, como o War, que estava na moda.

Decidir a aventura do dia normalmente só depois de muita discussão, mas naquela tarde ensolarada de setembro a escolha foi rápida e unânime. Alguém tinha notado uma traineira tombada e abandonada na outra margem do canal. A idéia era nadar até lá e explorar o local. Em minutos estavam todos mergulhando rumo ao objetivo.

Era um dia luminoso oferecido pelo sol primaveril das duas da tarde. Não havia nuvens no céu de um azul profundo e belo, que se estendia homogêneo em todas as direções, confundindo-se com a cor do canal. A maré estava cheia no ponto máximo, já próximo o momento de inverter o curso, de forma que não havia a força da corrente a vencer. Os meninos nadavam preguiçosamente, sem precisar se esforçar. A água estava tépida e tão cristalina que se via facilmente os contornos do fundo, a areia alva, os peixes apressados. O vento tinha parado e a cidade, sem o movimento da temporada de turismo, parecia mais silenciosa do que nunca, vista de dentro do canal. Enquanto nadavam, sem fazer a algazarra de costume, sentiram-se parte de uma paisagem ideal fixada na eternidade por um pintor impressionista. O tempo parecia ter parado e a finalidade do universo bem poderia ter sido produzir aquele momento perfeito.

Alcançaram a traineira e se regozijaram por ter ido até lá. Era o lugar exato para estripulias juvenis. Traineiras são embarcações de pesca de tamanho razoável, com cabina, mastros, guinchos e porão. Esta tinha uns quinze metros por três e estava encalhada dentro do canal perto da margem, adernada e parcialmente inundada. Durante uma hora os garotos se divertiram usando o teto da cabina e os mastros como trampolins para saltos acrobáticos na água, arriscando-se dentro do porão alagado, mexendo nos aparelhos e testando os mecanismos. Imaginaram-se piratas e exploradores, dispararam canhões, saquearam cidades e tomaram posse de terras virgens. Depois, esgotados, deitaram no convés inclinado da traineira, em silêncio, para largatear ao sol.

A quietude foi interrompida pelo ruído surdo de um objeto pesado chocando-se contra a madeira do barco. Alarmados, os garotos despertaram de seu torpor e procuraram a origem do barulho. A traineira estava virada para dentro do canal, de maneira que a borda voltada para a margem erguia-se uns dois metros acima da água, impedindo a visão da terra. Escalando o convés até a lateral do barco, tiveram a desagradável surpresa de constatar que não eram a única turma de moleques turbulentos interessada na embarcação.

Protegidos pelo costado da traineira, que funcionava como uma muralha, viram uns quinze garotos da Turma da Gamboa, o bairro do outro lado do canal. Estava claro que eles julgavam, não sem razão, que, por se encontrar naquela margem, a nau era parte do território deles. A Turma do Portinho, uns seis ou sete meninos, era intrusa e os da Gamboa vinham expulsá-la. Carregavam paus e pedras aos montes e os invasores, além de sobrepujados em número, não tinham "armamento” algum para se defender. O assustador barulho que cortara o silêncio da tarde fora uma pedrada, a primeira salva de uma barragem de artilharia que prometia ser mortífera.

Nesse momento, Cesar, que era dado a atitudes um tanto temerárias – para alguns, completamente malucas -, deixou a proteção que a traineira oferecia, ficou em pé na borda e desafiou os inimigos a uma luta justa, sem armas, mano a mano. O bando rival hesitou por alguns segundos, na dúvida se estava diante de um herói dotado de poderes sobre-humanos ou de um louco varrido. Talvez Cesar quisesse que os outros garotos se juntassem a ele em uma carga épica contra um exército superior em número, como nos filmes.

Eles, porém, avaliaram a situação com mais realismo e resolveram tirar partido da momentânea vacilação dos contendores. A ocasião pedia uma retirada estratégica. Cesar olhou para trás e viu que o pelotão não se juntaria a ele no combate suicida, muito pelo contrário. A garotada já saltava no canal rumo à outra margem. Quando Cesar, o último soldado da Turma do Portinho a evacuar o campo de batalha, mergulhou precipitadamente no canal, as pedras e paus inimigos já voavam e caíam com estrépito na água, muito perto dos garotos, que nadavam freneticamente, em ritmo de olimpíadas, para longe dali.

Felizmente nenhum projétil atingiu o alvo e, fora do alcance da artilharia hostil, no meio do canal, os meninos relaxaram. Bradaram insultos contra os inimigos e prometeram vingança. Passaram o resto da tarde bolando estratégias, convocando reforços, juntando munição. Voltariam em breve, devidamente preparados, para retomar a traineira em uma operação digna do Desembarque da Normandia.

Na tarde seguinte, verificaram, consternados, que a traineira não estava mais lá. Certamente o proprietário a resgatara de manhã e a levara embora para reparos. Removendo a causa do conflito, o dono do barco, sem saber, interompera uma guerra entre a Turma do Portinho e a Turma da Gamboa que prometia ser emocionante.

O entusiasmo guerreiro dos meninos ainda durou um ou dois dias, mas logo murchou. As atenções dos garotos de treze anos estão voltadas para a aventura de agora ou nos planos para a próxima. Projetos frustrados não ocupam o espírito por muito tempo. A vida seguiu seu curso e, em poucos dias, na ausência de qualquer registro além da memória de cada protagonista, a Batalha do Canal fora completamente esquecida.







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Outros títulos do mesmo autor

Ensaios O Fim da Idade de Ouro Pedro Mayall
Crônicas O Pai da Noiva Pedro Mayall
Contos Noites Suburbanas Pedro Mayall
Contos A Batalha do Canal Pedro Mayall


Publicações de número 1 até 4 de um total de 4.


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