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No caminho de Damasco
Aníbal Benévolo Bonorino



Olhando pela janela procurava algo que   lhe despertasse interesse. Qualquer coisa : uma paisagem menos monótona, um bicho maior que aqueles lagartos feios correndo em “ésses”, um cavalo selvagem, um avestruz ou até mesmo uma vaca gorda. Parecia que os animais estavam junto às árvores por causa do calor... e as árvores estavam tão distantes.

Não tinha noção do que era ali plantado, pois   a terra parecia seca. Havia uns sulcos paralelos que deveriam servir para alguma lavoura , mas não estava interessado em saber, não lhe dizia respeito. Certamente era uma terra abandonada, mas não pelas cobras. Acabara de ver algumas amontoadas e com as cabeças erguidas assemelhando-se a uma medusa.

Lamentava ter sido indicado para aquele trabalho. O lugarejo só era alcançado via terrestre e por estrada sem asfalto. Taxi seria impensável e os ônibus, que faziam o trajeto, pareciam fruto de uma geração que não deu certo. Os revendedores devem ter mudado de produto, dedicando-se ao comércio de moedores de carne.

Evidente, que o lugar que lhe coube para fiscalizar, tinha sido escolhido pela ausência de pistolão. Não era apadrinhado por ninguém, seu cargo fora conquistado por classificação em concurso público, o oitavo que havia disputado. E não seria a falta de vacas, avestruzes, cavalos e árvores que o fariam abdicar de seu posto. Um senhor fiscal de rendas do Ministério da Fazenda.

Por orgulho, nada perguntou aos seus superiores sobre o local onde estariam as firmas (?) a fiscalizar. Por essa razão estava viajando para o desconhecido (até para o Google), o que não lhe causava medo, apenas um desconforto pela falta de conforto que, certamente, teria que enfrentar nas próximas semanas.

Em sua bagagem, nada além do” notebook “ e de roupas comuns - de trabalho, de banho, íntima e a total ausência de gravatas. Era só o que faltava, pensou, me obrigarem a trabalhar de terno! Nenhuma saudade de pessoas com quem se houvesse relacionado nos últimos anos. Os amigos eram de ocasiões, de lugares ou de trabalho, mas não do coração. Mulheres ? Nunca encontrou uma Rebecca, eram todas esquecíveis. Os encontros sexuais eram todos comerciais e, muitas vezes, gratuitos revelando necessidades mútuas e apenas físicas.

A chegada foi um alívio por ter deixado o ônibus, mas a pousada do sr. Felismino era uma infelicidade. Coitado, até que se esforçava, mas móveis mais bonitos ou modernos, comprar de quem e aonde? Para que o suicídio não acenasse ao longe, o jantar foi a salvação, nenhum requinte mas simplesmente gostosíssimo. Quanto à cerveja nenhum problema, o local já tinha sido descoberto pela Ambev.

Conversar com quem ? O assunto deveria ser colheita, sementes melhores, previsão do tempo, eliminação de pragas, lucros ou prejuízos. Isso não lhe conduziria a uma boa digestão. Mas, aleluia, havia televisão a cabo. Não era exatamente isso, mas quase, pois dependia de antena e isto estava bem ali por perto.   E, estranhamente não fazia calor, pelo menos à noite.

Levantou-se e sem perceber deixou cair ao chão o guardanapo, alvo e com um monograma “SR”. Curvou-se para apanhá-lo, mas alguém mais rápido o alcançou. Em frente ao seu apareceu um rosto sorridente e jovem.   Olhos meio acinzentados e sobrancelhas espessas e negras. Belo e impressionantemente simpático. “ Obrigado amigo”, “de nada senhor eu sou o Josias”. “Legal e eu sou Ernesto e mais uma vez obrigado e boa-noite“.

Tornaram-se amigos. Josias era sedento de informações sobre a vida das grandes cidades, Ernesto gostava de transmiti-las e surpreender-se com a inteligência do rapaz, que pelas condições de vida daquele local, era totalmente inesperada, ou melhor, deslocada. Inteligência independe de local, portanto o que lhe parecia estranho era a cultura, os conhecimentos que Josias possuía e que eram um exagero a ser utilizado por ali.

O mais velho era matemático, fiscalizador, calculista. O jovem, calmo e aconselhador . O que não seria muito normal, receber-se conselhos de um menos experiente. Pessoas mais atualizadas ou, digamos, modernas creditavam a amizade dos dois como sendo um homossexualismo campestre. Cidade e campo unidos num mesmo orgasmo. Perfeitamente aceitável (moderníssimo) , mas não imune a uma série de piadinhas maldosas. Mas não era nada disso. Caso soubessem dessas suposições, ambos sentiriam intenso nojo.

Ernesto estava trabalhando, há dias, nos exames dos documentos contábeis das pequenas firmas, a maioria individuais e , para sua surpresa constatou que todas apresentavam o mesmo problema. Uma irregularidade crônica, que sujeitava todos ao pagamento de multas, em muitos casos bastante significativas.   Alguns teriam que encerrar suas atividades pela incapacidade econômica de absorverem os valores das punições.

-“ Ah, então foi isso cara ? Você fez a contabilidade de toda essa gente, ganhou um salarião e entregou todos ao leão. Pelo que eu saiba você nem é contador. Isso é fraude sabia, falsidade ideológica? Dá cadeia.    Josias, como você me enganou!”
-“Ernesto, pelo amor de Deus, enganado está você agora. Olha aqui a carteirinha, sou contabilista sim senhor. Acontece que gosto mais de me ocupar da venda do arroz, que me exige mais energia, inclusive física. Cara , você me magoou de uma maneira que, tenho certeza, nem pode imaginar. Salarião, que idiotice...
-“Vá embora.…tenho que ficar calculando as multas que serão impostas aos seus clientes, ou cúmplices, não sei.”

-“Ernesto você é muito inteligente..., tenta arranjar um jeito não de burlar o fisco, mas de
amenizar os estragos na vida dessa gente. Todos os plantadores são honestos eu garanto’.
-“Você não está em condição de garantir nada. O que você fez foi me subestimar. Que que há, tava achando que me apaixonei por você ? Parece até que teu solilóquio está no YouTube:
- O cara já tem quase quarenta anos, não é casado, não tem namorada fixa, não fica de olho nas garotas que passam pela rua... tá na cara, é veado. Vou me fazer, talvez até tenha que segurar sua mão, posso mesmo dar um beijinho na boca, sem língua, mas valerá a pena. A grana vai ser boa.”
- Cara você fala com tanta propriedade que eu estou até desconfiado que essa tua paixão por mim é verdadeira. –“ Fora daqui seu filho da puta.”

Após o jantar e uns copos de cerveja, Ernesto conseguiu acalmar-se. Chegou ao quarto pronto para ligar a televisão e só então reparou na Bíblia aberta sobre a mesa de cabeceira do lado oposto ao que dormia. Ficou curioso e pegou o livro. Estava aberto exatamente onde falava em São Paulo, ainda coletor de impostos, no caminho para Damasco.

Sugestionado, abençoado, escolhido ou idiotizado, Ernesto convocou uma reunião com todos aqueles cujas firmas haviam sido fiscalizadas. Instruiu a todos que deveriam corrigir as declarações de renda que haviam apresentado e parcelariam seus reais débitos, pagariam alguns juros , é claro, mas nenhuma multa.

Assinou todos os formulários que ficariam com os envolvidos e por diversas vezes instrui-os sobre o que teriam que fazer. E principalmente sobre os erros que não deveriam voltar a cometer. Isso, naturalmente, importava no afastamento da contratação dos serviços de Josias.

Poucos passos após despedir-se das vítimas, lembrou dos sulcos na terra seca – eram para a água correr, o arroz era plantado no “molhado”. O “SR” dos guardanapos queria dizer “sem reserva”, quem diria? E a sua caneta ” Mont Blanc” , único presente que recebeu de uma mulher , havia deixado na sala dos arrozeiros. Voltou rapidamente. A porta entreaberta denunciou a presença de Josias sorridente. Recebia o pagamento em dinheiro e não em cheques   de cada um dos beneficiados pela boa vontade de Paulo, ou melhor, de Ernesto.

Aquele pedaço de ancinho cravado na garganta de Josias só poderia ter sido obra do ladrão, que levou todo o dinheiro que ele havia recebido pelos bons serviços prestados

Rio, 27/11/2011


Este texto é administrado por: ANIBAL BENEVOLO BONORINO
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