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UM CORPO NEGRO
Cesar D

Rua Benjamin Constant, 8:00 da manhã, um corpo negro caído na calçada atrapalha o trânsito das pessoas, um corpo de mulher. Ele está lá, esse corpo, em queda, imóvel, tenso, entre tantos outros corpos, de outros como ela que estavam, diz o senso comum, zumbizando na madruga, loucos de esmalte, farinha, pedra, mas é o corpo negro, corpo de menina, corpo de mulher que está inerte. E é uma mulher pequena, jovem, magra, que veste saia e tem um sapato de salto baixo, bem gasto, feições bonitas corroídas pela droga e noites insones, com a pequena garrafa plástica entre suas pernas, quase encolhida, estática, sólida, dura, tétrica, fria...

É um corpo de mulher, um corpo de mulher negra, um corpo como tantos outros que estão ali, nos arredores da praça da Sé, andando de um lado a outro, ou que estão nas barracas baratas de camping, ou aglomerando na feira do rolo, a maioria sem máscaras, roubando na região e rapidamente vendendo seus produtos, indo nas bocas de rango dos Franciscanos e outras organizações sociais, rindo e brigando depois de muitos goles de pinga, caindo e levantando, discutindo e desistindo, e muitos são como ela, são da cor dela, muitos são negros, mas quem está caída, quem esta inerte é ela, a mulher negra.

E isso incomoda os passantes, os homens sempre fazendo alguma gracinha, alguns até tirando selfies, fazendo poses, algo pra postar no insta, no Tik ou no face, algumas famílias tem pressa em passar pra outra calçada e ignorar aquela cena, de uma mulher jogada em plena segunda na rua, e as mulheres indo pro trabalho ou chegando aos poucos pra fazer suas compras, cabelos, correntes, brincos banhados a ouro ou prata, tendo pena, dó, vergonha de ver uma mulher assim, perdida, sem rumo, e que só Deus salva, ou que, obrigada a se internar numa clínica, essa mulher melhora, ou que essa não tem jeito e que a morte, nesses casos, é a única solução.

Porque é uma mulher, mas é uma mulher negra. E dai?...existem muitas mulheres assim, perdidas, sem rumo, na Sé, na Cracolândia, nas favelas, nas vilas por ai, nas Américas, no mundo. É só mais uma mulher, rebaixada, humilhada, diminuída, mas tudo bem, é só uma mulher, uma mulher negra, entre tantas outras, que estão nas ruas ou em suas casas, sofrendo, caladas, as violências nossas de cada dia, de todos os dias.

E se ela tem sonhos, se ela tem planos, alguém que a procura ou espera sua volta, que se preocupa com ela, que torce por sua recuperação, que gostaria de cuida-la, nada disso importa...Para muitas pessoas que passam, diariamente ou esporadicamente, ela é um corpo, um corpo de mulher, um corpo de mulher negra...algo natural, sem espanto ou assombro, algo que está ali, porque é assim, eles são assim, eles vivem assim...

Depois da chapação ela levanta, ainda atordoada e cambaleando, e vai rumo a praça, sumindo entre o movimento constante dos habitués, sobrevivendo a próxima noite, onde a próxima pedra ou esmalte pode custar, quem sabe, seu corpo e seu sexo em avançado estado de decomposição...matando devagar algo dentro dela ainda vivo.

Mas quem liga?...É só uma mulher, uma menina, uma mulher negra...





Biografia:
De sampa, zona norte, mas a muito morando no centro...me formando em história num país sem memória..é isso, esse sou eu..
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