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O crime é hereditário
(Uma outra análise de O Mecanismo)
Roberto Queiroz

Gosto do título que o diretor José Padilha deu para sua nova série televisiva: O Mecanismo. De fato, no Brasil o crime é uma grande mecanismo ao qual parece impossível impedir o seu funcionamento. E talvez por isso o número de desesperançados no país só tenha crescido nos últimos anos. Chega uma hora, como bem dizia um antigo vizinho meu, que "dar murro em ponta de faca cansa".

Entretanto, O Mecanismo - produção da Netflix - é muito mais do que uma série para investigar os tentáculos do mundo do crime. E mais (quero deixar esta parte bem clara): infeliz daquele que assistir os oito episódios da primeira temporada da trama à luz dos acontecimentos políticos vigentes no país (Leia-se: a lava-jato), pois certamente cairá na esparrela atual que anda em voga de uns acusando os outros de ladrões e da velha ladainha de "no meu tempo não era assim", "o governo anterior não era tão corrupto assim", "tudo piorou desde que o...- nome de certo partido - assumiu o poder", etc etc etc (e haja etc).

Preferi fazer uma leitura à parte da discussão babaca - eu acho, pelo menos - entre mortadelas e coixinhas. Até porque sou de opinião que ladrão não tem partido nem posição ideológica. E não me venham com esse papo de "roubou menos", "roubou mais", porque nem a mídia manipuladora, empresarial, acredita que no escreve quando diz isso.

Deixado isso claro, confesso: tive mais motivos para me surpreender com a série do que me decepcionar. Como toda obra de ficção que se preze realizada pela sétima arte, ela é manipulativa e não há como associar os personagens às figuras políticas da atualidade. Afinal de contas, a vergonha que tomou conta do país nos últimos tempos inspirou o livro de Vladimir Neto que, por sua vez, inspirou este programa. Logo, os mais fanáticos e exaltados irão se incomodar aqui e ali. E certamente ficarão putos comigo, caso leiam este artigo.

Rulfo (Selton Mello) e Verena (Caroline Abras) fazem parte da triste sina que paira sobre nossas terras ensolaradas: são policiais num dos países do mundo que mais idolatra a corrupção e o crime. E não me refiro somente às autoridades da nação. Não, meus caros leitores! É fácil ser corrupto no Brasil. Olhe ao seu redor. O jeitinho brasileiro, preguiçoso, desumano, aleatório, imundo, está presente em todas as esquinas. A sociedade que posa de ética ao se referir a Brasília, bem se vê, não conhece muitas vezes sequer o seu próprio caráter. De novo: aquele história de "rouba mais, rouba menos". Defendem-se os infames dizendo que seus roubos são medíocres perto dos bilhões surrupiados dos cofres públicos. Façam-me o favor! Demagogia é foda...

São eles, Rulfo e Verena (juntos com suas irrisórias equipes) que lutam diariamente contra tubarões em meio a uma sistema onde - palavras do próprio Rulfo - "é mais fácil encontrar uma girafa do que um cidadão honesto".

Eu poderia perder preciosos minutos contando a história, mas ela está presente, de forma inesgotável, em todos os telejornais, redes sociais, programas de humor, talk shows e onde quer que haja burburinho, no país. Parece-me mais interessante olhar o contexto geral que causa o inferno social em que vivemos.

Em determinado momento de uma das delações premiadas feitas pelos privilegiados do sistema podre, ele começa seu depoimento dizendo que a história de crime no Brasil começou com a chegada da família real portuguesa ao país, em 1808. E nesse ponto, apesar de canalha e vendido, o personagem acertou em cheio. O problema da corrupção no Brasil é secular, cultural e hereditário. Não é de hoje que o país é invadido, saqueado, maltratado e tratado como esparro dos interesses internacionais. Some a isso uma sociedade civil iletrada, que a maior parte do tempo gosta de ser ignorante, e está mais interessada com carnavais, realitiy shows e copas do mundo, e bum! o estrago está feito de forma definitiva.

O Mecanismo, série de José Padilha, trata de um país que nunca quis ser nação, que não respeita seus habitantes (desculpe: contribuintes), que não se importa um segundo sequer com quem rala diariamente para pôr o pão na mesa, e ainda aplaude àqueles a quem deveria defenestrar. E não bastasse isso ainda posa de soberano, grandioso, "o melhor país do mundo para se viver" (sempre sob aquele ótica ultrapassada do Deus nasceu aqui).

Empreiteiras, lobistas, doleiros, imprensa, deputados, senadores, prefeitos, governadores, vereadores, presidentes, todos sem exceção, querem o seu quinhão. É a macrocorrupção. São as elites que pagam de reserva moral do país cobrando a fatura por seus "bons serviços prestados". Porém, na outra ponta, mas no mesmo país, há a microcorrupção. Aquela que torna a sua vida um inferno toda vez que você precisa renovar a carteira de habilitação, tirar a escritura de um imóvel, declarar o seu imposto de renda, encomendar um produto na internet. Eles querem o ressarcimento por seu serviço feito, muitas vezes, pela metade como se estivessem prestando um favor. E o seu dinheiro? Com certeza não tem o mesmo valor do deles. É disto que trata de fato o programa que, eu espero (independente dos antipáticos que ameaçaram até mesmo boicotar a Netflix), tenha uma segunda, terceira temporada.

Repito: tente assistir O Mecanismo além do problema óbvio, além de suas frustrações com a política partidária contemporânea (que, aliás, nunca deu a mínima nem a você, nem a mim, nem a ninguém), além de quizilas imbecis com vizinhos que votaram num candidato diferente do seu nas últimas eleições. Até porque ninguém é santo na terra dos inescrupulosos. Paulo Leminski, poeta curitibano, dizia que "o poder é o sexo dos velhos" e isso nunca soou tão verdadeiro quanto agora. Entretanto, mesmo com uma enorme vontade de assistir o seriado aponta seu dedo acusador e dizendo "esse aí é o fulano...", "esse é o beltrano...", resista. Há algo muito maior acontecendo no Brasil e não damos a mínima.

Costumo dizer em minhas brincadeiras com colegas de longa data que se passássemos toda a sociedade brasileira pelo polígrafo (detector de mentiras) acho que ninguém passava de cara, nem mesmo os honestos de fato, pois eles gaguejariam diante da pressão do interrogatório. Para mim, isso é o mais grave a ser denunciado aqui.

Até que ponto seremos um país de pessoas em cima do muro, coniventes, com medo de sermos desmascarados?

Que venha a segunda temporada!!!


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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