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A ESTIGMATIZAÇÃO DA MULHER NA CONTEMPORANEIDADE
EM “CASAMENTO: RELAÇÃO DEGENERADA”, DE SILVA DIAS
Robério Pereira Barreto

Resumo:
Neste artigo procuramos analisar a imagem da mulher no corpo social como objeto de repressão sexual, a partir do discurso contido no cordel “Casamento: relação degenerada” de Silva Dias, destacando os papéis sociais que lhes são destinados como imutáveis dentro de uma sociedade machista, na qual sempre a deixam à margem. Além disso, enfatizamos a repressão sexual feminina que nasce na história da humanidade através dos dogmas da Igreja, e são inseridos em determinadas culturas como regras que definem o sexo simplesmente como função procriadora. Lembramos que, apesar de tudo isso, a mulher busca sua auto-afirmação identitária, social e, principalmente, sexual.
Palavras-chave: Mulher; Repressão sexual; Poder; Sociedade

A ESTIGMATIZAÇÃO DA MULHER NA CONTEMPORANEIDADE NO CORDEL “CASAMENTO: RELAÇÃO DEGENERADA”              
                                                                                 Elaine Honorato de Souza
                                                                              Leila Patrícia M. de Carvalho
                                                                              Telma Pereira da Silva
                                                                             Robério Pereira Barreto

     Este trabalho tem por objetivo analisar a imagem da mulher no corpo social como objeto de repressão sexual, a partir do discurso contido no cordel, Casamento: relação degenerada, de Silva Dias e fundamentado em Anthony Giddens, Affonso Romano de Sant’Anna, Marilena Chauí, Marcelo Bulhões e Michel Foucault.
Durante séculos, a mulher foi predestinada e vista como objeto a ser moldado para obedecer ao que era pregado pela Igreja, para satisfazer as expectativas dos pais e, posteriormente, do marido, que era escolhido por sua família. Ela crescia submissa ao pai e continuava pela vida a fora submissa ao marido – só trocava de senhor – continuando “serva” do marido e dos filhos.
     A sociedade, por exaltar sempre a superioridade masculina, fez com que a vontade própria e a demonstração real dos sentimentos da mulher não fossem reveladas. Toda a sociedade, de alguma forma, exerce forte pressão sobre a sexualidade feminina e, deste modo, imposta pelas leis e pelos costumes, a mulher é obrigada a resistir à tentação sexual.
     Hoje, mesmo a mulher tendo conquistado seu espaço na sociedade, na área da sexualidade ela continua em posição de desigualdade em relação ao homem. A mulher que busca o prazer sexual é tida pela sociedade falocrática como “perdida”, ou seja, aquela que só serve para oferecer gozo sexual aos homens solteiros e aos casados insatisfeitos. Esse discurso machista é percebido na literatura de cordel Casamento: relação degenerada que enfoca esse problema na relação entre homens e mulheres, mostrando tanto o ponto de vista masculino quanto o feminino dentro dessa relação. A escolha dessa obra se deu por entendermos que o seu estudo é de fundamental importância para a compreensão da posição que é dada à mulher no atual contexto social do mundo em que vivemos.
      Na voz do eu lírico, os valores e as idéias da sociedade brasileira contemporânea trazem as marcas do autoritarismo, patriarcalismo e machismo segundo o qual, o homem tem o direito legal de chefiar, enquanto a mulher deve ser submissa a ele.

Marujo experiente
Não deixa o leme à-toa
Pois a colisão da proa
Poderia ser fatal
E não seria normal
Ele ceder numa boa
(SILVA, 2005, p.13)


     Para o eu lírico, a mulher no comando estaria indo contra as regras. A voz masculina teme perder o poder. Tudo isso seria para ele uma desonra perante a sociedade falocrática.
     Apesar de a figura feminina ter adquirido um espaço notório na contemporaneidade, a mulher que, hoje, protagoniza funções fundamentais dentro de uma sociedade preconceituosa, infelizmente, ainda não possui um papel tão relevante no universo literário. Percebe-se que em algumas obras literárias, por exemplo, ela ainda aparece de forma apagada, isto é, as funções desempenhadas são secundárias.
     No Naturalismo, a figura feminina perde aquela imagem estereotipada de delicadeza e de fragilidade estabelecida pelos romances românticos, deixa de ser idealizada e passa a ser retratada de forma mais sensual. Na obra “O cortiço”, a mulher apesar de imponente, é secundária em relação ao homem, possui funções domésticas e é vista como objeto de prazer. Personagens que merecem destaque neste contexto são: Bertoleza, que foi reduzida em simples objeto, “escrava” ao realizar os afazeres domésticos e trabalhistas e, em objeto sexual, pronta a todo o momento a satisfazer as necessidades do marido, por quem ela era extorquida. Já Rita Baiana, era uma mulher expansiva e liberada que atraia os homens através da dança, que segundo Sant’Anna “... é um jogo de sedução branda, onde a violência se matamorfoseia em ritmo de expectativa” (SANT’ANNA, 1993, p.39).
     O corpo erotizado passa a ser objeto perseguido, uma vez que é efeito do poder instituinte. Diante deste aspecto, percebe-se que o sujeito possui funções definidas dentro do corpo social, que tem papéis sexuados construídos numa realidade refletida pelo próprio sujeito. Giddens diz que “... o corpo torna-se um foco do poder disciplinar. Mas, mais que isso, torna-se um portador visível da auto-identidade, estando cada vez mais integrado nas decisões individuais do estilo de vida” (GIDDENS, 1993, p.42). Esses papéis sexuados podem ser vistos no cordel Casamento: relação degenerada:

Eu prefiro uma loirinha
É muito mais sensual!
Seu instinto é animal
No quarto ou na cozinha
Se entrega inteirinha
Como a leoa no cio
(SILVA, 2005, p.20)
     
     O papel da mulher loira, aqui, contrapõe a idéia imposta pela sociedade escravocrata de que a mulher branca era para ser esposável, enquanto que a negra era para ser comida. Segundo Sant’Anna: “... a mulata é o espaço mestiço onde a ideologia, também mestiça, exercita ambiguamente jogo de sedução e da dominação erótica e econômica” (SANT’ANNA, 1993, p.33). Porém, no cordel, a simbologia erótica não está mais em termos de mulher negra, mas, da mulher em geral.

Preta, loura ou morena
A satisfação é plena
Se há uma no pedaço
     [...]
Seja bem vindo corpinho!
(SILVA, 2005, p.21)


     O cordel também traz a idéia de que a mulher é portadora natural do pecado original, tendo Eva como precursora e responsável por toda a desgraça da humanidade. A partir dessa idéia de pecado original, é que surge a repressão sexual feminina.

O pecado original possui duas faces: é o deixar-se seduzir (tentação) pela promessa de bens maiores do que os possuídos (como se houvesse alguém mais potente do que Deus para distribuí-los) e é transgressão de um interdito concernente ao conhecimento do bem e do mal. Seu primeiro efeito: a descoberta da nudez e o sentimento da vergonha, de um lado, e o medo do castigo, de outro. Seu segundo efeito: a perda do paraíso. (CHAUÍ, 1991; p.86)

       Diante dessa idéia, compreende-se que a repressão sexual nasce na história da humanidade através dos dogmas da Igreja, que foram inseridos em determinadas culturas como regras que definem o sexo simplesmente como função procriadora e, o que fugir dessas regras (a busca do prazer por parte da mulher, a masturbação, a homossexualidade, o sexo oral e o anal) é considerado imoral. Dessa forma, a mulher para ser virtuosa não pode demonstrar seus desejos sexuais. No discurso do cordel analisado:

Mulher precisa saber
Em tudo se comportar
     [...]
Ainda tem que mostrar
Submissão exemplar
(SILVA, 2005, p.17)


A mulher, desde a infância, é educada para ter boas maneiras, ser cuidadosa e controlar suas vontades e anseios. Na adolescência, por exemplo, sua educação é para renegar o prazer, manter-se longe dos perigos carnais, isto é, sua sexualidade é negada e aniquilada por uma formação discursiva baseada nos preceitos da Igreja na Idade Média.
Seja em qualquer aparelho ideológico (Escola, Estado, Família.) sabe-se que o lugar admitido à mulher na sociedade em que estamos inseridos, ainda é de total submissão e dependência ao homem. Os vínculos familiares paternalistas reforçam a idéia de que as mulheres são inferiores, frágeis, incapazes e não conseguem conquistar o melhor para si mesmas.
Segundo Chauí, podemos dizer que a repressão sexual se liga a um conjunto de valores, regras estabelecidas histórica e culturalmente para controlar o exercício da sexualidade, pois, como inúmeras expressões sugerem, o sexo é encarado pela nossa sociedade como uma torrente impetuosa e cheia de perigos.
E o que dizer dos estudiosos como Freud que dizia que os seres humanos já nascem com um instinto sexual, que foi denominado libido? Ou seja, se é algo biológico e natural tão quanto a vida humana, essa insistência em manter isso trancafiado na alma e gerado de conflitos psíquicos, somente nos leva a compreender de maneira mais significativa o que relata Foucault, ao afirmar que o poder em si não existe, ele é exercido e praticado e nisso acontece o que se denomina relação de poder.
Como já retratamos anteriormente, a sociedade é falocrática, nisso supõe-se que o lugar do macho deve ser considerado solo sagrado e embora atualmente exista uma visão um pouco menos preconceituosa sobre a sexualidade feminina, a liberdade sexual plena ainda é um sonho, principalmente em sociedades mais conservadoras. Como é perceptível nos versos do cordel:

O homem tem o direito
Legal de ser capitão,
Segurar bem o timão
Pra o trajeto ser feito
E o seu modo aceito.
Mas a mulher quer tomar
Do homem esse lugar
Seu desejo é conseguir
O comando assumir
Nem que tenha que brigar
(SILVA, 2005, p.12)

Neste trecho fica evidente que o eu - lírico masculinizado reconhece sua posição de comando fixada pela sociedade durante épocas de manutenção de poder, mas também admite que a mulher deseje assumir uma posição de igualdade em relação a este e compreende que há a pretensão de equiparar regras e valores.
Para Foucault “O poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada”, (FOUCAULT, 1993, p.89), ou seja, a concretude desse tipo de poder se dá através do corpo, que é o meio material do indivíduo e, o feminino, como se sabe, sempre foi estigmatizado, quer na família, ou no casamento.
Os papéis sociais destinados à mulher são imutáveis dentro de uma sociedade machista, na qual sempre a deixam à margem, sujeitando-se ao pai, irmão ou marido e o pior, a sociedade condena todas pelo erro de uma, não analisando as mudanças de ordem social, sexual ou cultural. Um comportamento feminino fora dos ‘moldes sociáveis’ é estritamente condenável. No trecho abaixo se pode perceber:

Mulher é como a cobra
Cascavel, naja ou coral
Do seu veneno mortal
Quem experimenta sobra
Sua presa, ela dobra
Pela cabeça engole
Faz o duro ficar mole
Sem nenhuma reação
Joga o forte ao chão
E tranqüila escapole.
(SILVA, 2005, p.14)

A metáfora relatada no cordel nos remete a Bulhões quando ele diz:
“... a serpente é uma imagem simbólica das mais poderosas e aplicadas ao contexto do erotismo e da sexualidade, [...] o aspecto demoníaco associado à serpente pode ser a responsável pelo pecado original, seu poder de hipnotizar e seduzir, sua forma fálica de sugestão libidinosa e obscena” (BULHÕES, 2003, p.137).


Além disso, podemos perceber que a sedução provocada pela mulher, torna-a ainda mais alvo de preconceitos e estereótipos. Nessa busca incessante pelos direitos iguais, o jogo da sedução já perdeu o sentido, Giddens nos alerta sobre esse fato “... a ‘sedução’ perdeu grande parte do seu significado em uma sociedade em que as mulheres tornaram-se muito mais sexualmente ‘disponíveis’ aos homens do que jamais o foram, embora – e isto é importante – apenas mais como uma igual”. (GIDDENS, 2002, p.96).
   Vale ressaltar também que o ato de seduzir perpassado durante décadas como uma característica extremamente feminina nos remete as escrituras sagradas que colocam Eva como a culpada pela expulsão do paraíso, afinal, não soube resistir às tentações e surge daí a justificativa de que o papel feminino é reservado à submissão e essa idéia fica evidente no cordel ao retratar o verdadeiro lugar de um homem em não se desdobrar aos caprichos de uma mulher.
Se tivesse sido forte
Homem macho, consciente
Teria livrado a gente
Do pecado e da morte
Teríamos outra sorte
E ele outra amada
Diferente da safada
Fogosa e infiel
Pois não cumpriu o papel
De mulher séria, honrada.
(SILVA, 2005, p.04)
   
Segundo essa assertiva fica patente que, a posição de Adão não foi digna de um homem, pois, este merecia uma mulher melhor e assim, a humanidade teria outro destino, ou seja, apresenta um eu-lírico bastante impregnado da concepção de uma sociedade faloegocêntrica. Outro ponto visível é a posição designada à mulher, que mesmo buscando, hoje, o que lhes é de direito, tanto biológico, quanto emocional, muitas vezes lhes é negado pelos homens, por desconhecimento sobre a sexualidade feminina, preconceito ou desinteresse pela questão.
A sexualidade se faz presente em todas as etapas do desenvolvimento humano. Embora se trate de uma questão quase sempre silenciada e, ao referir-se ao lado feminino, ainda é tratada como tabu, e quando seus desejos são manifestados, são vistos como uma das aberrações da natureza. Assim, é imprescindível o controle sobre a sexualidade, a qual deve ser oprimida e nisto, as relações de poder em nossa sociedade deixa bem esclarecidas quem está no comando.
O domínio rígido sobre a sexualidade feminina impõe um padrão comportamental que deve ser adotado de maneira generalizada e mesmo reconhecendo a arte de sedução na mulher há uma contradição no seguinte trecho do cordel.

Toda mulher de verdade
Tem um pouco de maldade
Sua dose de defeito
Infeliz é o sujeito
Que confia plenamente
Se ela tiver contente
Considere mal-sinal
Pode te causar um mal
Depois sair lentamente.
(SILVA, 2005, p.18)

Essa contrariedade provocada neste trecho condiz com o perfil feminino inserido na sociedade, herdada de uma cultura medieval, que considera a mulher um ser muito próximo da carne e dos sentidos e, por isso, uma pecadora em potencial. Afinal, todas elas descendem de Eva, a culpada pela queda do gênero humano.
Ora, se é necessário a sedução no jogo da conquista seria apenas pela manutenção do poder que o homem não admite à mulher uma posição equivalente?
É reservada, então, para a mulher a categoria de objeto manipulável, um corpo dócil, capaz de ser transformado e aperfeiçoado. Segundo Foucault, “Em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações” (1986:125-6). Uma das limitações impostas à mulher está relacionada ao seu comportamento no ato sexual, que por muito tempo, era para ela, mais incômodo do que prazeroso, pois a mulher não podia demonstrar que gostava de sexo, reprimindo assim, os seus desejos.

Considerações temporárias

De acordo com tudo o que foi apontado neste trabalho, fica evidente que o mundo ainda funciona num padrão masculino, mas tem mudado bastante. A mulher aceitou o desafio e foi em busca de sua auto-afirmação identitária, social e, principalmente, sexual. Não é difícil perceber que a nossa sociedade foi “adestrada” aos moldes medievais e com isso, o papel destinado à mulher ainda é de dominada, estigmatizada e inferiorizada.
As mulheres estão insatisfeitas com a vida social, emocional e sexual que levam. Querem mais. E querem melhor. Assim, surge uma interrogação: deve-se aceitar essa estigmatização imposta e reprimir a sua sexualidade só por causa da coerção faloegocêntrica?

Referências:

BULHÕES, Marcelo. Leituras do desejo: o erotismo no romance naturalista brasileiro. São Paulo: Edusp, 2003.
CHAUI, Marilena. Repressão sexual. 12.ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.
DIAS, Silva. Casamento: relação degenerada. 1. ed. Irecê: Salobro, 2005.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: UNESP, 1993.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. O canibalismo amoroso: o desejo e a interdição em nossa cultura através da poesia. 4. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.


Biografia:
Professor, EscritoR, Poeta, minicontista e haicaísta
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