Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
Vendedora de feira
Cláudio Thomás Bornstein


Ela era feia de doer. Gorda, as banhas estouravam por todos os espaços não cobertos pela vestimenta. Ainda por cima insistia em trajes reduzidos, decotes ousados, mangas curtas e shortinho, em vez de esconder o que era melhor que ficasse escondido.

A bermuda, acima do joelho, deixava aparecer as pernas cheias de varizes. O cabelo cacheado, empapado com algum creme alisante, engordurado e brilhante, era constantemente arrumado com as mãos, deixando à vista unhas imensas, vermelho carmesim.

Devia se achar bonita e isto a fazia ainda mais feia. A cara muito pintada, a boca pequena crispada, que ela mantinha em forma de cruz e que, de vez em quando, se abria em um sorriso indecoroso, deixando à vista dentes e gengivas, tudo ressaltava o ordinário e o vulgar.

Dizem os moralistas que quem vê cara não vê coração. Só que ali era tudo feio, tanto cara, como coração. As laranjas que ela vendia, umas laranjinhas pequenas, mirradas, cheias de manchas, a casca já enrugada de tanto ficar no sol esperando freguês, eram todas "seleta".

Uma vez, surpreso com o verde das laranjas, tão verdes que doía na vista de tão azedas que deviam ser, eu me acerquei e perguntei: “Que tipo de laranja é esta?”
“Seleta” foi a resposta.
“Seleta?” insisti, incrédulo.
“Seleta!!” respondeu com um olhar desafiador, me mirando bem nos olhos.

Sim, porque além de tudo era brava e desbocada. Alguma gracinha que se fizesse e que ela não gostasse, armava logo um "barraco". Uma vez a vi destratar uma velhinha, que até podia ser chata e inconveniente, mas era uma velha inofensiva, não precisava ameaçar jogar um caixote em cima dela, nem tampouco dizer que ia lhe arrancar os olhos.

Era tarada por homem. Estava sempre aos cochichos, lançando olhares insinuantes para qualquer homem que passasse, não importando se era preto, branco, gordo, magro, velho ou novo.

Andava por ali um mulato, homem jovem, bonito, cabelo rastafári. Ele, gentil, civilizadamente a cumprimentou. Era novo ali, e queria conquistar amizades. Ela jogou pesado: “Não cumprimenta, senão você corre perigo. Aqui tem que passar direto, sem olhar. Olhou, já era. Vai ter que faturar. E olha que eu cobro."

A todo mundo chamava de "amor". Amor prá lá, amor prá cá. E ai de quem lhe desse bola e retrucasse no mesmo tom. Tinha logo que segurar a mão, da mão ia pra o coração, o coração fica no peito, ia-se escorregando mais para baixo, lá no esconderijo, escondido pelo tabuleiro da barraca. Tudo assim na vista de todo mundo, que ali não havia pudor, nem medo de vexame.

Tanto erotismo atraia todo tipo de mariposa. Tinha as meninas, do tipo que gosta de menina, quer dizer, estavam mais para velhas, não tão feias quanto ela, mas o suficiente. Deviam estar à cata de alguma juventude e ela podia ser feia, mas velha não era. Ficavam as mariposas rondando, rondando em volta da lâmpada, mas não se sentavam no prato, porque ela não deixava. Mulher ali não tinha vez.

Tudo na vida tem a sua compensação. O braço da balança não costuma ficar preso de um lado só. Logo surge alguma coisa que restabelece o equilíbrio, recompõe a harmonia e a estabilidade. De tão feia que ela era, feia, sem jeito, sem graça e sem pudor, chego até a achar que era bonita, tinha jeito, graça e pudor. Era bonita no seu jeito feio de buscar a beleza. Tinha graça no seu jeito sem graça de buscar a graça. Era recatada no seu jeito despudorado de afrontar o pudor.


Biografia:
Para mais informações visite o blog CAUSOS em www.ctbornst.blogspot.com.br. Querendo fazer comentários, mande e-mail para ctbornst@cos.ufrj.br
Número de vezes que este texto foi lido: 64207


Outros títulos do mesmo autor

Frases Sexo e obrigação Cláudio Thomás Bornstein
Frases Amor e sexo Cláudio Thomás Bornstein
Frases O simples e o complicado Cláudio Thomás Bornstein
Crônicas Vendedora de feira Cláudio Thomás Bornstein
Poesias Natureza x Civilização Cláudio Thomás Bornstein
Frases O hábito faz ou não faz o monge? Cláudio Thomás Bornstein
Frases Lastro Cláudio Thomás Bornstein
Frases Solidão Cláudio Thomás Bornstein
Frases Hábitos Cláudio Thomás Bornstein
Frases Ódio Cláudio Thomás Bornstein

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última

Publicações de número 21 até 30 de um total de 92.


escrita@komedi.com.br © 2025
 
  Textos mais lidos
Oração de São Cipriano para amarrar alguém - Fernanda Pucca 64264 Visitas
eu sei quem sou - 64262 Visitas
"Fluxus" em espanhol - CRISTIANE GRANDO 64262 Visitas
O “stress” pode ser uma escolha... - jecer de souza brito 64261 Visitas
O estranho morador da casa 7 - Condorcet Aranha 64260 Visitas
Jazz (ou Música e Tomates) - Sérgio Vale 64259 Visitas
Vento Brando - José Ernesto Kappel 64257 Visitas
Jornada pela falha - José Raphael Daher 64257 Visitas
O Cônego ou Metafísica do Estilo - Machado de Assis 64257 Visitas
A ELA - Machado de Assis 64256 Visitas

Páginas: Primeira Anterior Próxima Última