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O passado nunca foi tão presente
(Coisa mais linda é o Brasil que não sabe olhar para frente)
Roberto Queiroz

Nas minhas horas vagas, volto e meia me pego divagando acerca da hipocrisia humana, da eterna mania que a sociedade tem de permanecer conservadora alegando que "o mundo é menos infeliz desse jeito". Como se trata de um assunto irritante e enfadonho logo caio na real e faço meu cérebro pensar em outras questões mais urgentes. Contudo, de vez em quando a televisão me surpreende e traz o tema à baila de novo de forma inteligente. E em se tratando de produções nacionais (que nos últimos anos perderam minha audiência por perderem tempo com os mesmos estereótipos, as mesmas strippers e garotas de programa, os mesmos canastrões e misóginos de sempre!), isso é muito raramente.

E não é que a série nacional Coisa mais linda, criada pela dupla Giuliano Cedroni e Heather Roth para a Netflix, chamou a minha atenção por abordar o assunto para lá de espinhoso de forma competente?

A série, que passa no final dos anos 1950 - em pleno surgimento da Bossa Nova no Rio de Janeiro -, traz como protagonistas quatro mulheres de temperamento forte: a ousada Malu (Maria Casadevall), a talentosa, porém omissa Lígia (Fernando Vasconcelos), a jornalista à frente do seu tempo Thereza (Mel Lisboa) e a humilde, porém batalhadora Adélia (Pathy Dejesus). Com dramas e dilemas que a perseguem por toda a vida vêem na construção de uma clube de jazz uma redenção para suas vidas (que às vezes parecem estagnadas).

Malu não tem nada a perder. Abandonada pelo marido em plena cidade maravilhosa e sem um tostão no bolso, decide transformar o restaurante que o cônjuge iria construir num clube de música. Lígia é a sonhadora, que imagina uma carreira como cantora, mas não consegue se libertar do marido machista cujo único interesse é se tornar o próximo prefeito do estado da guanabara. Theresa é casada, mas um relacionamento aberto e se envolve sexualmente também com mulheres enquanto luta para que o sexo feminino tenha mais espaço na imprensa e na sociedade. E Adélia é moradora de favela, empregada em casa de família rica, que engravidou do filho de um de seus patrões no passado, cuja vida esbarra na de Malu, que a chama para sócia em sua empreitada (empreitada? quem dera fosse fácil de explicar assim!).

É nesse exato momento que o périplo central do seriado começa. Seus criadores recorrem ao passado para falar de um tema por demais presente em nossa sociedade (vide os inúmeros casos de feminicídio ocorridos no último ano). Refiro-me ao papel da mulher como secundária na sociedade brasileira. Para aqueles que reclamam que as mulheres andam sendo cerceadas por demais nos últimos tempos, imagine essa mesma realidade 60 anos atrás.

Coisa mais linda faz uma interessante crônica sobre o desrespeito à mulher na sociedade brasileira desde que o mundo é mundo. Reforça o velho discurso machista na linha "lugar de mulher é na cozinha", "a mulher tem que entender o seu papel de conformada dentro da estrutura familiar", "atrás de um grande homem, há uma grande mulher", "mulher que canta, que trabalha, que é independente, é vagabunda", etc e tal.

Entretanto, essas quatro mulheres, expoentes máximos do feminismo (que voltou a crescer nos últimos anos) decidiram não se abater ou aceitar o discurso opressor masculino e vão à luta. Com a ajuda, é claro, dos outros homens (aqueles poucos que entendem que elas, assim como nós, também têm direito ao seu lugar ao sol).

Boa música, sexo (já sei, já sei... Vai ter gente reclamando como reclamam em todas as produções nacionais, mas não adianta: são mulheres que lutam por sua independência com unhas e dentes e, além do mais, o corpo é delas!), preconceito corporativo, crítica ao conceito de família tradicional - um dos maiores equívocos promovidos pela humanidade desde que o mundo é mundo - e até mesmo uma pequena e irônica referência à república dos guardanapos que levou à cadeia o governador Sérgio Cabral Filho (sinal de que a falsidade e a mentira são uma doença crônica nesse país) compõem o pano de fundo dessa deliciosa e curta (são apenas sete episódios nessa primeira temporada) história.

Os velhos demagogos de sempre dirão que tudo não passa de uma utopia bonitinha para gringo ver. Que na vida real, uma pessoa como a protagonista jamais escolheria como sócia uma mulher negra que não sabe nem mesmo ler. E esse é o velho problema dos demagogos: não sabem distinguir a ficção da realidade, isso quando não preferem uma ficção onde eles possam debochar das classes menos favorecidas (como acontece em algumas peças teatrais exibidas na zona sul todo ano). À parte este detalhe infeliz, recomendo a série para aqueles que acreditam que o preconceito contra a mulher é um mal-estar da atual civilização. Longe disso!

E ao final do último episódio, me peguei perguntando: "quando é que iremos virar esta página maldita?". Honestamente... Espero que eu ainda esteja vivo para ver esse sinal de evolução do ser humano.


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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