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A semente da dúvida
(Todos já sabem: um teatro de máscaras pós-moderno)
Roberto Queiroz

Vivemos neste século XXI uma cultura da indiferença atroz, nunca antes vista desta forma. "Aquilo que atinge aos outros não me interessa", dizem a todo momento os homens e mulheres que se dizem cidadãos de bem nesta civilização globalizada. Contudo, trata-se de uma indiferença cretina se levarmos em consideração que quando o atingido é o indiferente ele cria uma série de distorções e situações confusas, sempre tentando colocar os outros em xeque. Como se ele nunca fosse de fato o culpado e sim a vítima.

Esta semana assisti em dvd um longametragem que me mostrou de forma clara e objetiva um pouco desta cultura confusa e torpe que vêm ganhando mais e mais adeptos dia-a-dia. Trata-se de Todos já sabem, do diretor iraniano Asghar Farhadi, vencedor de dois Oscars de melhor filme estrangeiro. E desde já adianto: moralistas de carteirinha ficarão indignados com o desfecho.

Todos já sabem conta a história de Laura (Penélope Cruz), que chega à sua cidade natal - que não visita há anos - para assistir o casamento de sua irmã. Com ela, vem seus dois filhos. E a princípio tudo leva a crer que se tratará de uma festa alegre, do reencontro com familiares e amigos. Entretanto, é perceptível no clima da festa antigas cicatrizes à mostra, como por exemplo, a da atual esposa de Paco (Javier Bardem), com quem Laura namorou no passado. Naquela época, Paco era apenas um reles empregado da vinícola de seu pai. Já hoje, um empresário bem sucedido, sua presença incomoda a muitos membros da mesma família.

Durante a cerimônia sua filha mais velha, Irene, desaparece e todos começam a procurá-la desesperadamente. Minutos depois, Laura recebe uma mensagem pelo celular. Trata-se de um sequestro e seus perpetradores avisam que caso ela avise à polícia sua filha será assassinada. E neste exato momento nasce uma semente de dúvida que irá pairar por todo o seio familiar.

As trocas de acusações entre parentes são as mais diversas. E com a chegada do marido de Laura, Alejandro (Ricardo Darín), um homem falido com histórico de alcoolismo que quase tirou sua própria vida, o clima acirra ainda mais por conta da descoberta da real paternidade da moça sequestrada.

Farhadi, que é mestre em transpôr para o cinema dilemas morais (vide o que ele fez nos longas A separação e O apartamento) realiza aqui sua trama mais intrincada, cheia de reveses os mais distintos. Desde a mulher que está se separando do marido e cria sozinha a filha até a figura do pai, um homem destruído pelo tempo, e que vive aprisionado ao passado de glórias, quando seu patrimônio era muito maior do que é hoje, o que se vê na tela é uma grande ciranda de estereótipos os mais preconceituosos possível. E por conta disso é fácil entender o porquê de todos acusarem todos a todo momento.

Trata-se de uma família que passou boa parte da vida vivendo de privilégios conquistados por anos e anos de trabalho duro. A partir do momento em que o padrão de vida geral cai (algo que não é problema exclusivo da América Latina e sim do mundo contemporâneo como um todo), fica notório e visível o ressentimento daqueles que não querem ficar por baixo ou admitir suas dificuldades financeiras e sempre acusam os outros de seus próprios problemas ou frustrações. Na verdade, o que a película parece dizer em suas entrelinhas muito bem justapostas é que o que todos parecem saber de fato é que os dias de glória já se foram, o mundo já não é mais o mesmo e é preciso encarar a realidade dos fatos. O problema é: como?

Estamos falando de burguesia e burguesia nunca gosta de dar um passo atrás e vislumbrar novos horizontes.

É fácil entender por que um longa desses foi tão mal distribuído em nosso circuito exibidor. Lembro que quando foi lançado em nossas cinemas eu desisti imediatamente de ir assistí-lo, por conta dos horários e salas de projeção extremamente inacessíveis. Nada mais comum hoje em dia em se tratando de um circuito mais afeito à produções fantásticas e sobrenaturais. Porém, mesmo assim, é preciso desabafar aqui: as redes de cinema perderam uma grande chance de exibir um filme que é a cara dos tempos atuais, marcados por discursos idiotas e por vezes inverossímeis por se esconderem atrás de velha e arcaica moral monetária.

Como para nossa felicidade (e aqui me refiro aos cinéfilos de fato e não aos meros espectadores de fim de semana) também possuímos a facilidade de adentrar o mundo da internet, com seus Googles, You tubes, fóruns de cinema e outras interfaces que volta e meia disponibilizam material para download, convido os leitores deste artigo a procurarem o longa na rede e o quanto antes.

Mais do que um mísero drama, Todos já sabem é um exemplo pós-moderno de ótima qualidade do clássico e ainda atuante teatro de máscaras que rege nossa vil sociedade até hoje. E aos que ainda acreditam no mundo real, estão esperando o quê para ir atrás dessa pequena jóia que passou despercebida no nosso circuito comercial?


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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