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O inferno são os outros
(Nós, Jordan Peele e a xenofobia social na grande nação)
Roberto Queiroz

Quando escrevi recentemente na minha crítica cinematográfica sobre o filme Infiltrado na Klan, do diretor Spike Lee, que a América (leia-se: Estados Unidos) está debilitada eu sabia do que falava e ratifico aqui minha posição. Nunca se viu na história da humanidade um país idolatrar tanto o ódio ao seu semelhante - ainda mais se ele for estrangeiro - como hoje em dia na terra de Donald Trump. Aquela velha moral que eu sempre achei arcaica nos discursos americanos de "somos a maior nação", "somos imbatíveis" ganhou contornos do maquiavelismo mais puro. Em outras palavras: odiar virou um grande esporte na terra do Tio Sam.

Mais uma prova viva disso? Saio do cinema após assistir ao longa Nós, do diretor Jordan Peele, extasiado. Mais ainda: perplexo. E penso: "estamos diante da veneração à barbárie".

Jordan Peele é um cineasta curioso. Começou sua carreira atuando em séries de comédia e acabou por escolher o terror como viés para sua faceta diretor. Até aí, nada demais. Até porque hollywood possui um grande mercado nesse gênero. Porém, o terror de Peele é ácido, negro, de um amargor profundo porque reflete as mazelas de sua tão querida nação. E pior: ele é negro. E ser negro nos Estados Unidos... Já viu!

Em seu longa de estreia atrás das câmeras, Corra!, ele utiliza-se do discurso do racismo nas entrelinhas de uma história aterradora, das coisas mais atemorizantes que eu assisti nos últimos anos. Digo mais: foi a primeira vez, desde os clássicos Wes Craven e Dario Argento, que um cineasta mexeu de fato com meus brios. Resultado: ele faturou o Oscar de melhor roteiro original e decidiu partir numa nova empreitada, cheia de novos temores.

Agora, em Nós, ele conta a história de Adelaide Wilson (Lupita Nyong'o, simplesmente fantástica!) e sua familia. No passado, quando criança, ele sofreu um trauma envolvendo um passeio num parque de diversões que mexeu profundamente com sua cabeça. Já adulta, viaja com o marido e os dois filhos para passar as férias de verão numa cidade à beira-mar e se depara com versões maléficas de si e seus familiares, trajados de vermelho e portando tesouras. Com apenas esta informação você pode pensar: "é mais um daqueles filmes slasher, na linha Jason, Freddy ou Michael Meyers. Não, meu caro amigo cinéfilo! Você não conhece Jordan Peele.

A história verdadeiramente por trás da trama começou quando a versão do mal de Adelaide diz: "eu sou americana". Neste exato momento eu me lembro do que representa ser americano no século XXI, pós-11 de setembro. E imediatamente um letreiro se abre diante de mim com a palavra em neón, piscando: XENOFOBIA.

Acompanhem os jornais e tablóides assim que possível e vejam como nossos amigos norte-americanos tratam os imigrantes, os refugiados, os não-nativos. Sim, porque desde que me entendo por gente eu percebo que ser americano de fato é ser nascido no país, filho de país também nascidos no país. Não há espaço para mestiços, latinos e cidadãos emprestados. Não há meio-termo. Sorry!

Portanto, a saga de Adelaide, seu marido e filhos é a luta por uma cidadania construída a fórceps, um direito que não deve ser maculado, distorcido ou transformado de forma alguma. Os outros, os estrangeiros, não passam de bárbaros, de invasores, que adentraram nossas terras para tomar tudo o que temos. A eles, que fiquem atrás de muros, que vão cometer seus atos terroristas bem longe, que entendam que aqui quem manda somos nós, descendentes dos fundadores dessa grande nação.

Eu sei, eu sei... Vocês vão dizer que trata-se de uma família negra, logo não aceita por certas instituições conservadoras e hipócritas. Contudo, mesmo eles se vêem como legítimos quando diante dos fantasiados assassinos. E a jogada proposta pelo diretor com a campanha dos anos 80 pedindo que todos dêem suas mãos e peçam paz no mundo mostra de forma clara, ao invés de conscientizar cidadãos distintos da necessidade de aceitarmos nossas diferenças, o hiato que existe nesta "grande nação".

Tudo em Nós é perturbador: desde a voz das versões do mal da família Wilson até a trilha sonora incômoda (houve, aliás, um momento em que eu fiquei pensando se não teria sido mais eficaz para o diretor trabalhar com o silêncio, como fez o ator John Krasinski no seu ótimo Um lugar silencioso. Eu fiquei muito perturbado com todo aquele ruído!). E isso tem uma razão de ser: o longa exprime o sentimento de repulsa de um país que simplesmente perdeu relevância mundial nos últimos anos, tentando recuperar o tempo perdido na marra, às custas de outras nações.

A consequência disso: um ódio gratuito e uma busca desesperada por protagonismo no mundo, em detrimento de escolhas e vontades alheias. Bem a cara do país que dilacerou o México no passado e agora os acusa de serem canalhas, bandidos, usurpadores.

Chego em casa após a sessão ruminando tudo o que vi, num sentimento quase claustrofóbico, e pensando comigo qual será a próxima artimanha dele. Dizem que seu próximo projeto será uma releitura da clássica série de ficção-científica Além da imaginação. E meu coração já começa a palpitar!!!

Para aqueles que acreditam que o terror é gênero morto, estão enganados. Vejam esta pequena jóia (e com direito a pitadas de humor negro, é bom que se diga!). E para aqueles que ainda acreditam no discurso neoliberal da grande nação, a terra dos homens livres... Na boa. fiquem com Jordan Peele. Pois não custa nada duvidar da classe dominante. Nem que seja só um pouquinho.


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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