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O futuro, esse eterno desconhecido
(Blade Runner: manual de regras para o amanhã?)
Roberto Queiroz

Na minha infância eu assistia o desenho dos Jetsons no SBT e fica no sofá da sala pensando: "será que o futuro demora a chegar?", Na adolescência, por volta dos 17 anos, algumas semanas antes do alistamento militar, perguntei-me a sério: "quando é que o futuro enfim começa?". Naquele tempo, o futuro para a sociedade começava depois do fim do ano 2000. "Um novo século, um novo mundo", pensavam os ingênuos. E o que aconteceu, no máximo, foi a repetição do que aí está e o tal bug do milênio (que até agora não deu as caras). Ah! E o desencanto.

O futuro. O futuro estava logo ali. Ou quem sabe aqui, e não percebemos. Não nos demos conta. Uma propaganda de uma marca famosa de celular promete "o futuro na palma da sua mão". Tolos! Como ousam? O futuro. O futuro já começou? Será que, na verdade, o futuro já aconteceu e nem sequer percebemos? Será que foi isso o que aconteceu? Perguntas, perguntas, perguntas. "O futuro é uma enciclopédia repleta de perguntas não respondidas", me disse certa vez um homem que sentou ao meu lado no ônibus, quando eu ia para o Largo do Machado para assistir uma peça de teatro. Homem sábio!

Enfim... O que é o futuro, afinal de contas?

Depois de 35 anos, três décadas e meia, Blade Runner dá as caras novamente aos cinemas. E mais do que isso: coloca meu cérebro de volta no lugar (ou será que bagunçou tudo de vez e eu estou delirando?). A versão original, de 1982, dirigida por Ridley Scott - que ganhou na época o status de "criador de mundos" - sempre foi uma das minhas coqueluches cinematográficas. Tanto que a princípio fui contra essa nova empreitada pelo universo criado pelo escritor Philip K. Dick. Para minha felicidade (e dos milhões de fãs do hoje fenômeno cult), o diretor Denis Villeneuve prova por a + b que é possível, sim, apresentar novas ideias acerca de um tema já clássico.

A primeira que perturba quando apagam-se as luzes do cinema e os espectadores começam a sair é: por que deixamos de nos contentar com o velho AGTC (princípio genético básico para a formação do ser humano) para nos tornarmos meros 01001011011101 (códigos binários síntese do mundo virtual)? E o que há de tão grandioso nisso?

Se em 1982 tínhamos Rick Deckard (Harrison Ford, que aqui regressa, sem vergonha de mostrar suas rugas e as amarguras passadas de seu personagem) à caça dos replicantes rebeldes, aqui temos K. (Ryan Gosling, que na minha opinião não poderia haver escolha melhor para o papel) em busca de algo maior: o princípio de uma revolução movida pelas criaturas contra seus criadores. E mais uma vez o caçador de andróides fica dividido entre o dever e fazer a escolha certa. Até aí nada de mais.

Entretanto, há um fator motivador que faz com que Blade Runner 2049 (sim, a história se passa 30 anos depois do longa original) seja ainda mais ácido e em alguns momentos até mais genial do que seu antecessor: o mundo. Sim, meus caros leitores. O mundo como nós o conhecíamos até então entrou em colapso. E vemos no dia-a-dia, nas manifestações urbanas, nas capas dos jornais, nos programas televisivos, nas matérias da internet, o mesmo dilema, a mesma dor, a mesma sensação de niilismo de um filme que até então não passa de uma joia rara, uma bola curva dentro do mercado hollywoodiano de cinema. Em outras palavras: a realidade comprou a ficção. Na íntegra.

Na versão sci-fi de Villeneuve, os replicantes (bem como os refugiados do chamado mundo pós-moderno) querem o seu lugar ao sol, e brigarão por ele com unhas e dentes. É o legado insano do que convencionamos chamar inutilmente de globalização. Que, na prática, ao invés de nos aproximar, só fez afastar nações, indivíduos e alimentar ainda mais a discórdia política e interesseira. Os seres humanos, antes pobres sobreviventes (pois é assim que todos os espertalhões do capitalismo adoram se exibir!), agora mostram-se perturbados, temerosos, acuados, à procura de uma fórmula que os cure da invasão dos chamados "diferentes" (homossexuais, negros, mulheres, alguém? Melhor calar-me). E a figura central desse medo chama-se Niander Wallace. O homem que arrematou a antiga corporação Tyrell, criadora dos replicantes, e tornou-se símbolo da luta contra a fome, o guru, paladino da moral, salvador da espécie humano (ou seja: a versão fé 2.0 do mundo atual).

Enquanto K. procura por Deckard para entender enfim qual o problema que está acontecendo com a humanidade, vemos a entrada e saíde de pequenos personagens, quase tipos sociais, que me fazem pensar no quanto o mundo pode ser ainda mais diverso do que pensamos. E é justamente esse o problema social mais grave: aqueles, os que nunca quiseram mudanças, não são capazes de admitir o menor sinal de diversidade. Não à toa há uma nova procura por regimes totalitários, ditaduras, literaturas que enfoquem o conservadorismo, renascimento do fascismo, grupos racistas considerados extintos vindo à tona... Como diria Marlon Brando, o coronel Kurt de Apocalipse now: "o horror, o horror".

Alimentação transgênica (e todo o mistério que ainda existe por trás desse tipo de "comida"), máquinas substituindo homens no mercado de trabalho, relações amorosas artificais, codependência total à tecnologias que nada mais fazem do que institucionalizar a mediocridade e espantar de vez o velho e bom diálogo, o homem e sua eterna sina por querer se passar por Deus, querendo produzir vida a qualquer custo. E ao fim de tudo, um questionamento no estilo Isaac Assimov e seu clássico Eu, Robô: "e quando as máquinas conseguirem criar suas próprias máquinas, o que será de nós, reles mortais?

Passadas mais de 2 horas e 40 minutos de espetáculo visual (thank you, Roger Deakins!!!), chego à conclusão de que, talvez, tenhamos perdido o bonde e com isso o futuro, que não volta mais. Aliás, bem faz ele pois a sociedade anda merecendo quebrar a cara sozinha, pelas más escolhas que fez e vem fazendo até hoje. Blade Runner 2049 é não só uma sequel de respeito de um clássico da ficção-científica (certamente o maior já feito por hollywood até hoje, pelo menos para mim), como um verdadeiro manual para entendermos o que sobrou do amanhã (será que ainda dá para chamar de amanhã?).

Eu e a minha mania Clarice Lispectoriana de deixar a consciência falar por si só. Moral da história: vejam. Vejam muitas vezes, se possível. E assim como Mãe!, filme do Aronofsky e tema do meu último artigo, vejam duvidando de tudo. O tempo todo. Até conseguir chegar às suas próprias conclusões.

Talvez o futuro, no final das contas, seja só um detalhe... Ou apenas um eterno desconhecido..


Biografia:
Crítico cultural, morador da Leopoldina, amante do cinema, da literatura, do teatro e da música e sempre cheio de novas ideias.
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