Login
E-mail
Senha
|Esqueceu a senha?|

  Editora


www.komedi.com.br
tel.:(19)3234.4864
 
  Texto selecionado
O NEFALISTA
Caliel Alves dos Santos

O homem caminhou debaixo de chuva e entrou no bar mais próximo que encontrou. Com os poucos trocados que trazia no bolso, ele poderia comprar alguma coisa e passar o estio da garoa. Quando ele a sineta da porta anunciou sua entrada, todos viraram suas cabeças para ele, como se estivesse com os imãs nos bolsos que atraísse tanta atenção, embora indesejada. Meio desconfiado ele sacudiu sua jaqueta ensopada.
    Arrumou a mochila dependurada, retirou o boné e passou a mãos nos cabelos molhados. As botas deixaram o carpete de Seja Bem-vindo enlameado. Os olhares deixaram de acompanhá-lo, até ele pôr os pés no piso e o ranger de sua bota ecoar mais alto do que os trovões lá fora. Ele não se incomodou e caminhou até o balcão, onde uma senhora de quarenta anos e ainda graciosa atendia mascando um chiclete.
    — Vai querer o que garotão?
    — Bom... — o rapaz hesitou por um momento. — Se houvesse eu gostaria de um lanche...
    — Joaquim! — gritou a garçonete. — Traga os ovos em conserva.
    — Espere moça, não tem outra coisa?
    — Tipo o quê? A cozinha já fechou meu filho, são dez da noite.
    — Tudo bem.
    No fundo do bar, alguns caminhoneiros jogavam um carteado. Alguns motoqueiros estavam perto da vitrine do bar assistindo o volume de chuva aumentar no estacionamento, em pouco tempo as motos seriam levadas pela correnteza. Um casal de turistas e um velho idoso com camisa de time lendo um jornal completavam o cenário. O ar estava impregnado com a fumaça de cigarros vagabundos.
    — E para beber? — perguntou a garçonete alisando a prateleira cheia de bebidas.
    — Ah, não obrigado.
    — Vai comer sem molhar o a garganta? — ela retrucou.
    — Desculpe mais eu...
    — Não quer beber para não pagar para os amigos é isso?
    A voz veio do fundo da sala não como uma pergunta, mas como uma ordem. O homem de boné se virou e depois fez que não com a cabeça. Um motoqueiro levantou-se.
     — Se pagar para eles, tem que pagar para nós também.
    A garçonete pegou no braço do homem e lançou um olhar de advertência. No entanto ele pareceu não se importar retirou as moedas correspondentes a dois ovos. Pegou o garfo, abriu o tampo do jarro e retirou um ovo gosmento do meio do líquido da conserva. O segundo ao cair no prato se partiu no meio. O cheio do conservante fez seus olhos lacrimejarem, depois ele pode comer, mas não em paz.
    — Você é surdo? — perguntou o líder dos motoqueiros.
    — Ei, mas ele disse que pagaria para nós primeiro — os caminhoneiros se levantaram após um deles dizer isso.
    O bar ficou divido entre caminhoneiros e motoqueiros. O casal se aproximou do homem e tentou fazê-lo mudar de ideia.
    — Cara, paga logo um rodada, toda vez que você chegar num bar desconhecido, pague uma rodada para todo mundo, isso está no manual de sobrevivência moderno.
    O homem continuou a comer os ovos saboreando a clara. O turista calvo parecia mais amedrontado que a sua jovem esposa. O velho continuou a ler o seu jornal e a garçonete pousou a mão debaixo da caixa registradora e pegou uma espingarda e dois canos. Joaquim pousou as mãos nos ombros da mulher tentando a fazer mudar de ideia, mas ela arrancou a arma e colocou na mira dos brigões.
    — Nada de brigas no meu bar!
    — Guarda isso velha maluca — disse um dos motoqueiros.
    — Ninguém precisa morrer aqui — falou o velho colocando o jornal encima da mesa. — Guarde isso Jane, ninguém gostaria que seu bar fechasse por causa de um homicídio.
    — Tudo bem Gerson — a garçonete pôs a arma embaixo da caixa registradora.
    O recém chegado continuou mastigando alheio a todo aquele clima pesado. O velho mirou os olhos fundos no rapaz e perguntou:
    — Ele tem um bom motivo para não beber e nem pagar rodada para ninguém, não é?
    — O mal que eu não quero para mim, jamais praticarei com os outros.
    O homem pousou o garfo no prato e se virou. As pessoas se sentaram, haveria uma longa história para ser ouvida. Jane fez um café mesmo com a cozinha tendo sido fechada. O vento continuava uivando lá fora como se uma alcateia de lobos tivesse descido nas gotículas de chuva. Um trovão ribombou e esse foi o último facho de luz no recinto. A energia cessou e Joaquim ascendeu um velho lampião.
     — Eu não saberia por onde começar.
     — Vá desde o início e siga até o final — retrucou Jane. — Joaquim meu filho, ponha uma xícara de café para que esse moço refresque a cuca.
    Ele agradeceu com um sorriso amarelo. Depois iniciou sua história desse modo:
    — Eu tinha um conhecido, e hoje ele só aparece em lapsos de memórias, ele não existe mais. Por um longo período de tempo eu acreditei que ele era realmente o meu amigo. Mas no fundo ele só queria me arrastar para o buraco que ele mesmo cavou com as próprias mãos. Depois que eu descobri isso, nós tivemos uma briga feia, cada um foi para o seu lado, mas voltávamos a nos encontrar em pouco tempo... Tive que matá-lo.
    “Vocês sabem o que significa a palavra álcool? Não? Pois bem, diferente do que as pessoas pensam, ela não foi criada por alquimistas, e o dicionário não consegue definir sua essência. A palavra álcool significa ‘Conflito de Espírito’, esse líquido era usado em rituais nas antigas civilizações do Oriente Médio. Seu uso provocava a liberação do seu demônio interior, que tentava se apossar do seu hospedeiro.
    “Não sou o cara mais místico do mundo, mas pensem bem, cada pessoa alcoolizada tem um comportamento totalmente diferente do habitual. Alguns se tornam frágeis e chorões, outros violentos e mal-humorados, muitos tem fuga da realidade e chegam em casa quase por precognição. Não sou a melhor pessoa para falar sobre isso, mas a primeira maldição rogada, foi dum pai alcoólatra a seu filho, leiam a bíblia se quiserem.
     “Ele tinha tudo que um jovem gostaria de desejar. Gozava da sua juventude com toda vontade do mundo, ele tinha uma namorada sabe, o nome dela era Camila. Na escola, apesar dele ser um cara meio descolado, no seu círculo de amigos as meninas não podia ser mais virgem aos catorze anos e os caras tinham que fumar ou beber. Ele não queria bancar o cara chato para sua namorada e começou a beber, odiou tragar o cigarro.
    “Para esconder o cheiro, ele mascava um chiclete de hortelã, e depois seguia para casa em uma bicicleta. Aquilo para ele o transformava em um homem. Sentiu uma liberdade tão grande que parecia que não existia mais Lei, tudo para ele era permitido quando encostava a boca numa garrafa de cerveja. Da primeira vez que ficou chapado, os amigos o esconderam dos pais, que achavam que ele dormia na casa da namorada.
    “O pai dele nunca estava em casa para perguntar: ‘Meu filho, mas que olhos vermelhos você têm!’, a mãe no começo achou que era conjuntivite, mas depois da primeira semana, ela sabia o motivo, não seu até hoje se por medo ou vergonha, mas ele não o colocou na parede, e o cara continuou a bebericar com os amiguinhos da escola. A namorada depois disso começou a oferecer a ele outras coisinhas mais, ele negou.
    “Muito mais por medo da mãe do que por medo daquele pó branco que mata mais rápido do que as balas na Faixa de Gaza. Dia após dia ele secava mais e mais garrafas, os amigos competiam para ver quem secava garrafas mais rápido, era o campeão.
    “As notas na escola caíram tanto que nem mesmo o instituto de assistência aos autistas o matricularia. O laboratório de uma faculdade foi trocada por uma mesa de bar. Ele não tava nem ai para isso. Puxa como eu adorava aquele carinha. Era tudo para mim. Mas nunca me escutou. Continuou as noitadas, dormindo na casa de um, desmaiando no balcão de outro. A namorada dele dormia com os amigos quando ele brochava bêbado.
    “Depois as conversas começaram a sair, na cidade pequena as notícias voam como os abutres no céu, sempre atrás de uma nova carcaça. A mãe foi buscá-lo de carro numa boate, quando a senhora entrou na pista, o DJ parou de tocar, parecia que um velório estava acontecendo. A mãe ninava o filho no colo como se ele tivesse morrido, sirenes de polícia e ambulâncias cortaram o choro da mãe.
    “De menores foi apreendido pelo Conselho Tutelar e o dono do estabelecimento foi levado para prestar esclarecimentos. Após recobrar a consciência, ele se viu na cama do hospital, tinha entrado em coma alcoólico e só não morreu graças à medicina, assim pensava o médico, para a sua mãe foi o terço debulhado em sua intenção. O pai não estava lá, ele estava trabalhando embarcado, o pai sempre trabalhava...
    “A mãe tentou esconder os fatos, mas como eu tinha dito antes, a micro-cidade trouxe a notícia, com algumas edições aqui e ali, ele entrou no quarto do filho, os dois discutiram, trocaram xingamentos e acusações. O pai deu-lhe um soco tão forte que um dente saiu voando pela janela do quarto. A mãe tentou parar a briga e saiu como vilã da história. Mas no fundo eu não culpo nenhum dos dois, o moleque era teimoso.
    “Destemido por causa da raiva, o rapaz pôs umas mudas de roupas numa sacola, CDs de suas bandas preferidas e os documentos. Disse à mãe que iria morar com a namorada. O pai não fez objeção, disse apenas que caso ele saísse com aquela mochilinha de escoteiro nas costas pela porta da frente, que não voltasse mais nunca. O garoto respondeu que não voltaria. Saiu pela porta e nunca mais voltou.
    “Um mês depois os pais dele se separaram... O pai morreu num acidente de trabalho três anos depois e a mãe morreu de desgosto e sozinha meses após a morte do ex-marido. O rapaz arrumou um emprego de meio período e morou com Camila poucos meses num quarto alugado. Com os programas, ela botava mais dinheiro em casa do que o bebum. Depois de um pontapé na bunda, ele saiu da cidade natal.
    “Em períodos alternados ele arrumava emprego e durante alguns poucos dias da semana, parecia integro e asseado como um bom homem deve ser. Mas algum colega de fala macia lhe falava de certo lugar de garotas fáceis e tragos baratos. Em poucas horas a fisionomia de um homem trabalhador se tornava a mesma de um mendigo bipolar.
    “O cara via coisas, as coisas o perseguiam aonde quer que ele fosse. Brigava, xingava, bebia, apanhava, beijava as mulheres de mini-saia e era roubado antes da transa, um misto de ações e loucura noite adentro. Quando não lhe demitiam, saia do local onde estava trabalhando sem avisar a ninguém, vez ou outra seus pertences ficavam para trás. Odiava sua vida, odiava a si mesmo, odiava a falta de perdão, a falta de dinheiro...
    “Odiava a falta de coragem de largar de beber. O próprio cheiro do álcool lhe dava uma fusão de sentimentos, não sentia mais dor, era rico, bonito, engraçado, todos o adoravam enquanto tivesse cédulas e moedas para gastar. Por isso se refazia no dia anterior e trabalhava, à noite tudo era perdido em doses e garrafas que secavam logo eram colocadas na mesa. Não tinha o que perder, eu lhe repreendia sempre, mas nunca me ouviu.
    “Nosso conflito se tornou tão grande que eu acabei o abandonando a própria sorte. Foi ai que veio o segundo coma alcoólico. O rapaz pediu eutanásia, mas médico lhe deu um panfleto. Reunião dos Alcoólicos Anônimos... Aquilo foi como terem anunciado a salvação para ele, foi difícil, ele morreu no processo...”
     Por um momento houve silêncio. A garoa tinha cessado. Só o vento assoviava uma melodia fúnebre lá fora. Jane olhou para Joaquim e pôs o dedo em sua cara:
     — No dia que eu te ver bebendo, eu estouro seu miolos — depois o abraçou.
     O turista que viajava com sua bela amante, ficou curioso e perguntou:
     — Espere ai amigo, como sabia de todas essas coisas da vida do seu amigo se ele e você não se davam bem e acabou morrendo sem se curar do alcoolismo?
     O homem ajeitou o boné na cabeça e perguntou a Jane quanto era o café, ela disse que tinha pagado com aquela história incrível. Ele caminhou até e saiu balançando a sineta na porta. Os caminhoneiros voltaram a jogar seu carteado e os motoqueiros saíram atrás de suas motos. Gerson procurou o andarilho no breu lá fora, mas depois desistiu e voltou a ler o seu jornal, queria saber o resultado dos jogos.


Biografia:
Caliel Alves nasceu em Araçás/BA. Desde jovem se aventurou no mundo dos quadrinhos e mangás. Adora animes e coleciona quadrinhos nacionais de autores independentes. Começou escrevendo poemas e crônicas no Ensino Médio. Já escreveu contos, noveletas, resenhas e artigos publicados em plataformas na internet e em algumas revistas literárias. Desde 2019 vem participando de várias antologias como Leyendas mexicanas (Dark Books) e Insólito (Cavalo Café). Publicou o livro de poemas Poesias crocantes em e-book na Amazon.
Número de vezes que este texto foi lido: 53056


Outros títulos do mesmo autor

Resenhas Poetize a vida Caliel Alves dos Santos
Artigos O Brasil não é hexa, mas Lula é tri! Caliel Alves dos Santos
Artigos O romper das cordas Caliel Alves dos Santos
Resenhas Mirar na lua acima das estrelas Caliel Alves dos Santos
Artigos Representação política como parâmetro da divisão do Brasil Caliel Alves dos Santos
Artigos O que é dívida histórica? Caliel Alves dos Santos
Resenhas Iraci Gama: intérprete de Alagoinhas Caliel Alves dos Santos
Ensaios Militares como fator de risco a democracia Caliel Alves dos Santos
Resenhas A cidade em palavrório Caliel Alves dos Santos
Resenhas A poética feminina Caliel Alves dos Santos

Páginas: Próxima Última

Publicações de número 1 até 10 de um total de 139.


escrita@komedi.com.br © 2024
 
  Textos mais lidos

Microsoft Office Access Database Engine error '80004005'

Unspecified error

/escrita/publica_lidos.asp, line 6