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De volta ao paraíso
Bia Machado

“Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca. ” (Borges)

Entrou no prédio, uma construção tão desfigurada pelo tempo e pela desgraça quanto ele mesmo se sentia. Imaginou há quantos anos aqueles livros não eram tomados pelas mãos de leitores ávidos. Antes da fatalidade ele também lia muito, sedento por histórias que lhe proporcionavam viagens a lugares inimagináveis. Não entendia a sensação daquele momento: um misto de alívio e tristeza, um tanto de alegria, encoberta pelo desânimo. Não vira qualquer pessoa naqueles últimos dias, mas não podia negar estar se escondendo do restante do mundo. A sensação de ser o único homem da face da Terra era cada vez mais forte e até preferia se sentir daquela forma, tornaria tudo mais fácil.

Se procurasse mais, se fosse mais longe, encontraria alguém, isso era certo, mas estava cansado. Exausto para qualquer resistência. Poderia, sim, encontrar alguém vivo, porém tão ou mais desafortunado. Talvez os não-infectados fossem ainda mais infelizes do que aqueles que vagavam com a chegada da noite. Sabia que tinham tido uma vida, com trabalho, família, sonhos, planos, mas nada podia fazer a não ser lutar por sua sobrevivência. Até quando, já não tinha mais certeza. Ou não queria saber. Para falar a verdade, onde estava agora o que fora sua vida? Trabalho, família, sonhos, planos? Diante disso, também podia se considerar ainda completamente humano? Mesmo os que não tinham sido transformados, como dizer que estavam vivos, plenamente vivos? Era forte a sensação de ter morrido há muito tempo, quando todos os familiares e amigos se foram durante seguidos ataques, já nem sabia mais há quanto tempo. Perder a conta dos dias tinha sido sua saída para não enlouquecer.

Passou os dedos sujos pelas lombadas empoeiradas, uma sensação familiar, algo como aconchego, como ser tomado nos braços e confortado. Lombadas parecendo dizer “bem-vindo”, convidando-o. Quanta coisa preciosa tinha se perdido: pessoas, livros, vidas...
Algumas edições estavam no chão, onde o homem notou várias marcas. Pés e mãos gravados na poeira. Os seres que agora precisavam se locomover com a ajuda dos quatro membros. Tinham estado ali. Poderiam voltar ao anoitecer.

Resolveu não fugir, estava mesmo cansado. Já não se alimentava quase e do que sentia mais fome era de sentar-se e ler, de se esquecer de todo o resto, de não ter qualquer outra preocupação, de não pensar mais em nada. Por isso tinha voltado àquele local. O preferido de sua juventude, onde passava horas distante dos problemas do cotidiano, escolhendo a próxima aventura a ser vivida, o próximo mundo a ser conhecido, qual civilização descobriria.

Na estante de literatura fantástica, após tantos títulos observados, um chamou-lhe a atenção por ser velho conhecido: “Vinte mil léguas submarinas”. Verne. Nunca tinha estado próximo ao mar, mas era sua aventura preferida. Chegava a ter fobia quando o assunto era nadar, mergulhar, quase se afogara algumas vezes tentando aprender e, no entanto, quantas vezes desejara estar ao lado de Nemo e Aronnax, a bordo do Náutilus? Quantas vezes tinha relido aquela aventura? Perdera a conta.

Sentou-se em uma velha poltrona para ler aquela história mais uma vez, voltando a ser quem era por algum tempo. De novo o mar tal qual um velho conhecido, tal qual um mundo de fantasia, há muito abandonado. Não sentiu cansaço, fome ou sede. Tudo o que queria era viver aquela história uma única vez mais, o que importava era estar a bordo do submarino uma vez mais, reencontrando velhos amigos.

“Borges tinha razão. Estou no paraíso. É aqui que vou ficar”, agora compreendia o que o escritor queria dizer ao comparar tudo aquilo com o Jardim do Éden. Aqueles livros eram como frutos e por um tempo tinham sido proibidos para ele. Ler qualquer um deles faria com que seus olhos se abrissem novamente.

Durante a leitura passaram-se horas. Ao anoitecer vieram as criaturas, que já não mais sabiam o que tudo aquilo significava. Tampouco entenderam o ser imóvel na poltrona, abraçado a uma coisa estranha, no rosto molhado um sorriso.




Este texto é administrado por: Bianca Costa Machado
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