Passaram-se dois dias até chegar a data da apresentação de Carvalho e seus amigos no Forte Coimbra. Foram os dois dias mais angustiantes na vida dele; seu pai não parava de adverti-lo sobre tudo o que conversaram e ele, já não tinha mais paciência e nem saco para ouvir!
O avião Hércules do Exército, saiu do aeroporto do Galeão às 08:00h, chegando em Campo Grande por volta das 10:35h. Carvalho e seus amigos embarcaram no ônibus logo após almoçarem no Comando Militar do Oeste, chegando em Corumbá ao anoitecer. A embarcação do Forte já os esperavam no porto.
Antes da meia noite, Carvalho já estava pisando no Forte Coimbra. Não pode deixar de sentir um calafrio ao lembrar da longa conversa que teve com seu pai no dia de sua formatura. Após receberem as instruções, ele e mais três amigos de turma foram direcionados para uma pequena casa reformada que ficava no fundo do paiol das embarcações. Havia dois quartos, cada um com camas de solteiro; o banheiro ficava em um vão interligado com a pequena cozinha. Carvalho ficou no quarto dos fundos e logo adormeceu de tão cansado que estava...
Ao amanhecer, todos foram acompanhados por um Sargento na caminhada para conhecerem o Forte. Ao passarem pelo campo de futebol e adentrarem em uma rua estreita, Carvalho notou o velho cemitério; suas pernas tremeram e suas mãos suaram, parou e ficou observando as covas cobertas pelo mato:
- Algum problema soldado? – perguntou o Sargento ao notar o estado de Carvalho;
- Não... Senhor!...
- Este é o velho cemitério do Forte! Muitos militares foram enterrados aqui, muitos civis também! Mas já faz alguns anos que ele foi desativado e por isso, que ele está assim neste estado.
- Ainda existe restos nessas covas? – perguntou Carvalho;
- Sim, alguns foram transladados a pedido dos parentes, outros, continuam do mesmo jeito de quando foram enterrados! Resolvemos deixar assim! – O Sargento pôs-se a caminhar e o pelotão seguiu após ele...
No fim da tarde, Carvalho já estava na casa com os amigos quando um deles voltou do fundo da casa com um balde cheio de tamarindo:
- Olha só o que encontrei no fundo da casa; vamos ter doce de tamarindo por um bom tempo!
- Tem um pé de tamarindo no fundo da casa? – perguntou Carvalho, que até então, não tinha passado da cozinha;
- Tem! E está carregado! Não sei como vocês não viram; ele é o único da área! – Carvalho correu para o fundo da casa;
- Só pode ser brincadeira! Tantas casas e eu vim parar justamente nesta?
- Do que você está falando? – perguntou o amigo que estava com o balde de tamarindo na mão;
- Nada não, é que eu não gosto de tamarindo. – deu as costa e voltou para o quarto.
Naquela noite, ele sonhou com seu irmão; eis que ele se encontrava sentado debaixo do pé do tamarineiro, quando seu irmão se aproximava fardado com uma pá na mão e começava a cavar perto dele, de repente, um soldado com um fardamento antigo do Exército surgia com uma baioneta na mão esquerda e decepava o antebraço direito de seu irmão, Carvalho percebeu que este soldado, também não tinha o antebraço direito.
Seu irmão olhava para o braço decepado caído no chão; o outro soldado com um aspecto de esqueleto, o pegava e tentava colocar em seu próprio braço, enquanto seu irmão continuava a cavar a terra com a pá segura na mão esquerda. Carvalho acordou com seus amigos o segurando contra a cama:
- Cara, o que foi que você sonhou? – perguntou um dos amigos;
- Não foi um sonho, foi um pesadelo! – respondeu Carvalho após se livrar das mãos de seus amigos;
- Você estava se debatendo na cama e gritando para alguém largar um braço!
- Um braço?
- Conta pra gente; com o que você sonhava?
- Com nada! Me deixe quieto por um tempo! – pediu Carvalho.
Olhou para o relógio em seu pulso; eram quase três horas da madrugada. Pegou o celular e ligou para o pai, contou-lhe sobre o cemitério e o sonho que acabara de ter. Ouviu seu pai pedir-lhe que desse baixa o mais rápido possível, temendo que o pior lhe acontecesse, mas ele disse que mesmo que saísse, nada lhe garantiria que tudo isso acabasse. Resolveu que iria dar continuidade à procura do saco e ver se com a descoberta dele, poria fim em toda aquela história macabra que caíra sobre sua família.
Esperou o dia amanhecer, era sábado e estaria fora de serviço no fim de semana. Primeiro foi até o cemitério, andou por ente os túmulos tentando encontrar alguma pista sobre a cova de seu avô e de onde ele teria enterrado os ossos desse amigo de Guerra. O mato cobria a maior parte dos mausoléus e estava difícil identificar qualquer nome escrito nas lápides antigas.
Já estava se preparando para sair do cemitério, quando acabou pisando em um buraco na terra; afundou até a cintura conseguindo segurar-se usando os braços abertos sobre a abertura. Com muito esforço, saiu dele e olhou para dentro, onde avistou algo reluzir com a entrada da luz do sol. Esticou o braço e puxou um pedaço de metal, esfregou a ponta da camisa sobre ele e para sua surpresa, era uma placa de identificação. Não acreditou no que via inscrito nela: 1944, SD Carvalho.
Ponderou tudo aquilo em sua mente, seu pai lhe falara a verdade, havia realmente um soldado chamado Carvalho e seu avô o havia enterrado naquele cemitério. Limpou a terra da roupa e seguiu para a casa, esperaria anoitecer para só então, começar a buscar pelo saco enterrado sob o tamarineiro. Fechou os olhos e tentou lembrar do sonho com seu irmão, queria visualizar o local exato onde tinha o visto cavar.
Aproveitou que seus amigos saíram ao cair da noite, e rumou para o fundo do quintal com a pá e uma enxada. Verificou que não tinha ninguém o observando, direcionou a lanterna e deu início à escavação. Passou-se mais de duas horas e ele não havia encontrado nada! Sentou sobre uma raiz que se projetava para fora da terra para descansar, sentia-se exausto e frustrado por não haver encontrado nada até aquele momento. Limpou o suor do rosto e se preparou para dar continuidade à sua busca, quando ouviu em sua mente para cavar debaixo da raiz a qual estava sentado.
Carvalho olhou rapidamente para trás, tinha certeza que ouvira aquilo de alguém! Olhou ao redor, mas não viu ninguém. Olhou para a raiz à sua frente, resolvendo cavar sob ela. Bastou dez minutos, para ele sentir a pá bater em alguma coisa; rapidamente lançou a pá para longe e começou a tirar a terra com as próprias mãos. Não pode conter a felicidade e assombro ao contemplar um saco rasgado preso em uma parte da raiz e que deixava à mostra um osso de antebraço sequíssimo. Retirou o saco com cuidado e correu para dentro da casa.
Carvalho colocou o saco no chão e sentou-se em frente, contemplando aquela parte do esqueleto que tanto perturbara seu pai e que fora a causa da morte de seu irmão. Tentou organizar as ideias na cabeça, lembrou que o dono daquele antebraço pediu um enterro digno e com honra. Entrou no banheiro e tomou banho, vestiu o uniforme da formatura, pegou o osso e pôs dentro de uma fronha branca e seguiu para o cemitério, para sua sorte, não havia pessoa alguma na rua.
Ligou a lanterna somente quando chegou em frente ao cemitério, sentia medo, aquele lugar causava arrepios em todo o seu corpo. Mas sabia que precisava dar fim naquele conto de terror. Chegou no lugar que descobrira por acaso (ou será que não foi?), pegou a fronha com o resto mortal e deitou com calma dentro do buraco. Com um pedaço de uma cruz velha de madeira, puxou a terra para cobrir a fenda na terra. Ficou de pé e começou dizendo:
“Sei que você não me conheceu, mas isso não tem importância agora! Só quero te pedir, que agora que você está com todos os seus ossos juntos, possa deixar a minha família em paz! Meu avô te trouxe de volta para o seu País, não sei como ele conseguiu guardar seus ossos, ele tentou te dar um enterro digno, de um herói, também não sei por que ele não deixou essa função para o próprio Exército. Mas eu, em nome de meu avô, do meu pai e do Exército, te desejo agora um descanso em paz eternamente. Não posso dar-lhe salvas de tiros, mas deixarei vinte e uma munições enterradas sobre seu túmulo. Vá em paz”!
Carvalho pegou as munições e as enterrou uma por uma naquela cova. Saiu o mais rápido que pode e voltou para casa, tirou o uniforme, tomou outro banho e deitou para dormir...
O resto do ano passou sem incidentes, nem sonhos, nem vozes ou qualquer outra coisa que tirasse a paz de Carvalho. Era sexta-feira e no dia seguinte, ele e seus amigos voltariam para o Rio de Janeiro, tinham cumprido o tempo determinado para servirem no Forte Coimbra. A turma resolveu que iriam comemorar a despedida naquela noite no quiosque do quartel.
Por volta das sete horas da noite, todos já se dirigiam para o local. Os amigos de carvalho também já estavam saindo e deram pressa nele para que os acompanhassem:
- Vão na frente, eu encontro com vocês lá, dentro de vinte minutos! – gritou ele do banheiro para os amigos;
- Vinte minutos! Vê se não passa disso! – respondeu um deles.
Carvalho estava debaixo do chuveiro quando a casa entrou numa escuridão profunda; enrolou-se na toalha e saiu do banheiro resmungando que não era hora para faltar energia. Tateou a cama em que dormia até encontrar o celular; ligou a lanterna do aparelho e caiu sentado para trás ao contemplar a figura em pé no canto do quarto olhando para ele: sentiu que se tratava do amigo de Guerra de seu avô.
Olhou para a figura esquelética e notou que lhe faltava o antebraço direito, tentou ficar de pé mas não conseguiu. Aquele ser levantou seu braço esquerdo esquelético e apontou para Carvalho, como se fosse um filme, ele reviu a trajetória da noite em que encontrou o saco e o enterrou na cova:
- Eu fiz o que meu avô, meu pai e meu irmão tentaram fazer com você, te devolvi seu antebraço! – Carvalho respondeu com palavras entrecortadas após terminar aquela visão;
Novamente a figura esquelética levantou o braço esquerdo e deixou cair uma plaqueta de identificação. Carvalho olhou para o objeto no chão e com as mãos trêmulas, o levantou na altura dos olhos, direcionou a lanterna do celular sobre a placa e leu mais uma vez. Só então enxergou a palavra “DeCarvalho”; era o nome de Guerra de seu avô. Carvalho compreendeu que enterrara o antebraço na cova de seu avô, e não na cova daquele esqueleto vestido com uma farda esfarrapada que remontava ao tempo da Segunda Guerra.
Carvalho olhou em direção aquela assombração e a claridade da luz ofuscou suas vistas; a energia voltou. Com o coração disparado, vestiu a farda, pegou a pá e correu para fora da casa.
Seus amigos ao notarem a demora, resolveram voltar para ver o que tinha acontecido, mas no caminho, o encontraram no cemitério cavando túmulo por túmulo, falando palavras desconexas, onde só entendiam a parte que ele dizia “preciso encontrá-lo, preciso encontra-lo”! O primeiro amigo que tentou segurar Carvalho, caiu morto ao ser atingido por ele com a pá na cabeça, foi preciso chamar reforço para contê-lo...
Puseram-no em uma sala trancada, tentavam entender o que estava acontecendo. O Comandante lhe fez algumas perguntas, mas tudo o que ouvia de Carvalho era “eu preciso achar os restos dele, me deixem procurar o túmulo dele”! Acharam que ele havia perdido o juízo e o deixaram trancado até o transportarem para a cidade.
Antes do amanhecer, um soldado foi verificar como Carvalho estava. Chamou por ele, mas não obteve resposta. Abriu a porta devagar e olhou ao redor da sala, encontrou Carvalho em um canto da sala com o rosto virado para a parede, aproximou-se com cautela e tocou em seu ombro; nada, ele permanecia inerte! Resolveu tentar virá-lo e para a sua surpresa e espanto, Carvalho estava com os olhos petrificados, a expressão de terror estampada no rosto e o mais intrigante, sem o antebraço direito. O soldado saiu em disparada para chamar o Comandante.
Tudo o que encontraram ao voltarem, foi as palavras na parede atrás do corpo de Carvalho, escritas com seu próprio sangue: “Me enterrem no cemitério do Forte Coimbra”...
EMANNUEL ISAC
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