RUBEMAR ALVES
Herdara do pai, que em criança tivera apenas um pião metálico e uma bola de futebol dados pelo padre-professor, uma pequena fábrica de brinquedos artesanais. Jurou prosperar tanto que – invocou o anjo da guarda - somente um terremoto (exagero?) o derrubaria. Formou-se em desenho industrial e a fábrica, pouco a pouco cheia de máquinas, tornou-se uma das maiores do Brasil, exportando para diversos países.
Conheceu-a menina... Quando menina. Filha de seu mais dedicado empregado, também desenhista e louco sonhador, que nunca se negava a horas extras para dar algum conforto e segurança à mulher e à filha. “Minhas bonecas”, como ele dizia.
Patrão nunca as tinha visto, até o décimo aniversário da menina. “Que presente sua filha quer ganhar?” Pai segredou com vergonha que as outras pessoas ouvissem. Não estava pedindo: patrão é que perguntara.
Muito simples. Mas caro para o bolso do pai antes do início do mês. Uma companhia russa estava na cidade e a menina queria assistir balé – “O quebra-nozes”, depois tomar “muito sorvete”. Festinha simples na escola. Ora, patrão gostou pois na oportunidade poderia rever e se exibir galante para antiga namorada brasileira, ‘raptada’ pelo Bolshoi.
Mãe e filha eram lindas, verdadeiras bonecas, muito brancas e rosadas nas faces, expressivos olhos castanhos, uma grande e a miniatura igualzinha.
Mandara lavar o carro importado no capricho e a garota, num atrevimento sincero que logo o encantou - “Carro horroroso! Eu pensava que você (ela não chamava ninguém de senhor – estudara que após 1888... ah, sim, era como interpretava, mais lógica que todo mundo) ia chegar de carruagem puxada por dois cavalos brancos. Porque você é rico, deve ser (ela um tanto incrédula, e será assim a vida toda) um príncipe.” Vestia pela segunda vez, lavadinha e perfumada a jasmim, uma camisola azul, encurtada do traje de anjo de uma festa na igreja católica.
Chorou ao balé quando o soldado, ainda quebra-nozes, perde o braço e aplaudiu muito quando a menina sonha com o soldado, agora perfeito, de carne e osso.
Na saída, o homem conseguiu entregar um buquê à bailarina que logo perguntou se a menina era filha dele. Chocou-se, emudeceu, a menina deu mão a ele, possessiva, desafiadora, provocante, e disse em bom tom que eram “noivos” - a moça riu muito e se despediu.
Cuidado! Em certas ocasiões um anjo de verdade nos escuta e leva nossas palavras para o céu ou para o inferno, como pedidos ou maldições, nunca se sabe.
Três dias depois ela recebeu em casa uma boneca, desenhada às pressas: Clara, a menina do balé, num romântico vestido diáfano azul. Mais adiante, perto do Natal, em parceria com o soldadinho, logo as vitrines das lojas de brinquedos expunham o famoso casal.
Os anos se passavam e ele se tornou por conta própria uma espécie de padrinho. Discretamente, complementava livros mais caros ou dicionários que o pai só poderia comprar, assim, ‘no próximo mês’... “Presentes culturais”, dizia.
“Importante conhecer outros idiomas.” Ela escolheu francês – ele nem questionou o preço – e passou a colecionar (caixa de papelão cheíssima!) recortes sobre Paris e escritores franceses de todos os tempos. Aprendeu sobre nouvelle vague – comprou muitas obras de Françoise Sagan; por preguiça de levantar, dormia com “Um certo sorriso” embaixo do travesseiro e para estranhos se apelidou Dominique.
Olha o anjo invisível novamente dizendo amém!
E o fabricante de brinquedos acompanhou o crescimento da “boneca”.
Conversavam muito. Constante troca de confidências. Um agora sabia do outro desde o nascimento, nos mínimos detalhes. Riam bastante. O rir junto é bom sinal de companheirismo otimista.
Contratou-a como secretária. Legitimou-a empregada da fábrica até quando quisesse ficar no ambiente. Carteira assinada como manda a lei, sem privilégios. Ela nunca reclamou do horário tardio, exagerado. Cansava-se... Mas tudo era divertido! Ela imitava bonecas de mola, desengonçada, ou ‘sugeria’ moveizinhos, panelinhas, joguinhos, bichinhos de pelúcia, ideias a perder de vista. Na verdade, mandona – patrão gostava de atitudes! Às vezes improvisava crises existenciais, tornou-se feminista ( ou apenas mais feminina?) e chorava copiosamente, às gargalhadas quando o coitado acreditava. Ele brigava no dia seguinte se arrependia e entregava uma única rosa, como ela gostava. Branca pedindo paz, cor-de-chá em sinal de amizade. Vermelha nunca!
Morava numa casa charmosíssima, com jardim na parte da frente e pequeno pomar atrás, mas fria e vazia de emoções: vivia sozinho – mulher alguma aceita ser companheira efetiva de um homem que sai de casa antes das seis da manhã e só regressa pouco antes da meia-noite. Fama de sedutor, nunca seduzido. Aventuras, sim, mas não compromisso sério - um jantar, um baile, um domingo ‘rapidinho’ em cidade próxima. Às vezes jogar futebol com os amigos e a fulana lendo revistas no quarto do hotel. Sedutor logo se desencantava... Arrumava defeitos - ora tagarelas demais ora incultas ou sem personalidade que acatavam conscientes e interessadas, sem disfarce, até absurdos que ele falasse de propósito. Deixava de telefonar e pronto.
Um dia, de repente, descobriu-se mais do que encantado: apaixonado pela “menina”! Lembrou-se da tarde no teatro: “noivos”...
Vinte anos de diferença. Olhou-se ao espelho, assumira há algum tempo fios de cabelo branco que lhe davam certo ar de respeito. Vestia-se esportivamente, sadio, bem cuidado, entre “rei” e “príncipe”, na verdade menos este e mais aquele. Olhou o calendário na parede: domingo, um dia 6 qualquer no primeiro semestre do ano.
Fazia calor, céu sem uma única manchinha azul.
Para ter coragem, tomou três cálices de licor caseiro. Romã. Simbologia? Ignorava. Das paixões, do amor e da fertilidade – soube depois. A tia, semianalfabeta, sem muita visão comercial, contudo rabiscara num rótulo “filtro do amor”, que aprendera numa telenovela. Escolheu ir a pé, sem avisar, almoçou com a família, depois distribuiu o que restara na garrafinha, brindaram antecipadamente e, direto, pediu a moça em casamento. Os pais em choque, buscando palavras para uma negativa, e ela, tranquilíssima como quem já previsse há dez anos: “Aceito!”
A moça memorizara uma frase do seu livro predileto - início do capítulo II: “Sempre me disseram que era dificílimo viver com alguém.” Luc, logo apresentado ao início da estória, advogado maduro, viajante, “um tanto idoso (..) tipo exato do sedutor de mocinhas do meu gênero”... Nada perderia em experimentar.
Anjo, anjo, nem sempre você deve dizer amém.
Namoraram poucos meses, como todo mundo namora. Passeios, piscina do clube, cinema, restaurante. Estranhamente, sadiamente, sem intimidades maiores - ela pediu.
Perdeu-a como secretária. Eficientíssima.
Dezembro, casamento discreto, só civil, festinha para poucos convidados, na casa dele que passariam a habitar juntos, desde criança treinadíssima em todos os afazeres domésticos. À noite, ao se deitarem, distraída (nada de ingênua ou pudica), vestiu um pijama novo, reservado para noites um pouco frias, as mãos vagamente trêmulas pela ansiedade. Ele a olhou espantado, ela trocou por camisola acetinada comprida só para se mostrar com ar de “princesa” e imediatamente se despiu para ele. Muito carinho e paciência, noite comum e ela aprendeu a ser mulher – dormiram abraçados, depois o sono os separou.
Foi só. Livro desmentido. Não era assim “dificílimo” viver com alguém. Rápida lua de mel na França, a princípio Paris, depois Cannes, como no livro.
Durante algum tempo, era a “boneca” de casa - passou a vir da fábrica mais cedo, sempre muito bem-humorado, risonho, até cozinhavam juntos, certos jantares à luz de velas. Ela amadurecera muito e ele como que voltara à juventude.
Numa noite ele parecia bêbado - não estava. Chegou bem tarde, sem ter avisado, não atendeu celular, parecia soltar fogo pelas ventas, como um dragão. Irritado, reclamou de tudo e das pessoas, duas máquinas quebradas na fábrica atrasariam entrega internacional na segunda-feira, todo o pessoal tendo que trabalhar em turnos extraordinários sábado e domingo, mau humor geral, mesmo com pagamento melhorado. Tentou acalmá-lo com chá de camomila, muito carinho e risadas tolas, improvisadas, a que ele não correspondeu – à noite, dormiram um de costas para o outro, ela em lágrimas internas, silenciosa.
Viciou-se novamente em fábrica, fábrica, fábrica...
Ela anunciou-se grávida, marido entre muito emocionado, beijava-lhe a barriga em lágrimas, em outros dias indiferentes, sem mesmo o beijo na testa antes do horário de trabalho - mudança de humor era rotina agora. Uma dor aguda, sem explicação clínica, perdeu a criança a caminho do terceiro mês, má formação do feto, ignorou-se menino ou menina. Alguns poucos dias em que ele a pajeou, sincero, tristíssimos.
Voltou a ser o grande senhor empresário, o dia inteiro de repente mais dirigindo com mão de ferro que idealizando e construindo brinquedos, casa somente para dormir e tomar um rápido café da manhã. Ela pensava em seu “rei” (ou “príncipe”?) o dia inteiro; sem perceber, começou pouco a pouco a desamar, cuidava da casa por mera obrigação, desencantada. Não houve nova gravidez – ele chegava da rua, atirava longe o tênis, chuveiro muito quente e logo dormia, na maioria das vezes ignorando se ela o chamasse para o amor. Sim, havia ardentes domingos, mas os anjos e a cegonha perderam o endereço do casal.
Três anos de casamento em ritmo decrescente.
Dois irmãos, esportistas novatos na localidade, construíram uma escolinha de futebol e um haras, até por acaso um tanto perto da fábrica, e muita gente do bairro se entusiasmou pelas aulas de equitação. Marido aprovou satisfeito, distração para ela. Ofereceram-lhe um cavalo branco, aceitou. Aulas toda quarta-feira pela manhã, logo que o marido saía de casa. Depois, aulas aos sábados também. Cada vez mais afastados emocionalmente.
Dragão foi se tornando violento. Nas poucas reuniões ou festas a que aceitava comparecer, ele agora a segurava pelo braço, ciúme que nunca tivera antes, afastava do grupo de amigos – “Chega! Você já falou demais esta noite!” Iam para casa e o amor era quase brutal, egoísta.
Meses se passaram.
Geólogos anunciaram a possibilidade, ainda que remota, de uma acomodação de terras. Um deles usou linguagem popular. “O centro da Terra é como um coração, que pode ter de repente uma paixão avassaladora, uma arritmia, e explodir.” O auditório todo riu com a comparação – entenderam direitinho. Descalças, as pessoas comprovavam o chão mais quente.
Muitas pessoas foram se refugiar nas casas de parentes em outras cidades. Bombeiros, polícia e hospitais atentos. Ensaiaram a população, inclusive o pessoal de indústrias. Por dois dias, a maioria não trabalhou em lugar algum. Estradas cheias de carros, ônibus e bicicletas. Fuga em massa. Pouca gente ficou.
Alguém afirma ter visto um anjo no telhado desta fábrica um minuto antes da tragédia. Inexplicavelmente outras sofreram apenas pequenas avarias: todas recuperáveis.
Houve um tempo rápido para fugirem – patrão, todos os empregados restantes contados um a um. Ninguém lá dentro. As paredes tremeram, ruídos saindo do solo como vozes de monstros zangados e... “era uma vez” um sonho de perpetuar a fábrica de brinquedos. Metros e metros de solo rachando. Tudo despencou de uma só vez. Seguiu-se um grande incêndio. Não sobrou nada.
Desesperado correu para casa: direitinha. Chave na fechadura, silêncio. Retrato de casamento caído na sala, porta-retratos com vidro quebrado. Gritou pela mulher – silêncio. Armário de roupas totalmente vazio dos trajes femininos, bilhete colado no espelho (como era no início do casamento), papel amarelado pelo tempo, desenho de coraçõezinhos.
“Nunca o traí, mas estou indo embora. Lembra-se de um rapaz que foi pedir emprego na sua fábrica, seria um terceiro desenhista (sonhador como o patrão e meu pai) e você o rejeitou antes mesmo da entrevista porque não tinha um braço? Pois é. Ele não precisava do emprego - é esportista, meu professor de equitação, meu príncipe encantado do cavalo branco... Renomado professor de desenho. Quis também criar brinquedos e você o impediu. O doce convívio nos colocou no caminho do amor. Que os anjos nos abençoem e ajudem você também!”
F I M
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