A relação entre ciência e arte
Para debatermos este enunciado busquemos o capítulo: Que nos traz uma abordagem semiótica? Nele, podemos verificar como Lótman evoca esta questão. Em primeiro lugar, ele nos diz que a cultura costuma estabelecer uma divisão um tanto temerária entre ciência e arte. Na visão do senso comum, a ciência remete ao contexto das máquinas, numa impressão de que estas ameaçam competir com o homem e substituí-lo, sobretudo nos nossos dias.
Na verdade, Lótman nos ensina que esta relação é interativa, é simultânea e jamais niveladora. Basta, para isso, verificar a possibilidade de se criar um texto artístico visando à escolha de uma entre as possíveis variantes da formulação de um dado conteúdo. Para isso, é necessário ter uma estrutura já semiotizada, "configurada", e nela criam-se o maior número de variações. Desta forma, fica claro a aproximação de ciência e arte, isto é, máquina (mecanização) e arte, resultando na cibernética.
Vejamos o seguinte exemplo de uma abordagem cibernética que pode ser desdobrada em 54 possibilidades aleatórias:
Acaso Deus é tudo em presença do nada?
Acaso Deus é nada na ausência de tudo?
Acaso Deus é Deus na ausência de tudo?
Acaso tudo é nada na ausência de Deus?
Neste caso, estamos diante de um processo mecanizado de criação (várias possibilidades a partir da estrutura semiotizada), mas que jamais é substituto do processo criador (natural) em si. É neste aspecto que Lótman chama a atenção, dizendo que o homem ainda possui a concepção de máquina do séc. XVII, fazendo com que haja um travamento nos desenvolvimentos das técnicas e conseqüentemente no desenvolvimento cultural.
Assim, é como dizer atualmente que, com o avanço da informática, os computadores substituirão os livros, jornais etc., opinião difundida nos nossos dias, inclusive com grandes publicações literárias sobre o assunto. Mas, voltando à questão da cibernética, recortamos uma breve citação de Arlindo Machado, quando nos alerta para o seguinte contexto:
É verdade que a poesia 'artificial' trabalha com elementos não comunicativos e, conseqüentemente, com uma taxa praticamente nula de significados prefixados. Mas ela instaura também uma nova hermenêutica, na medida em que a extensão mesma de suas possibilidades combinatórias demanda interpretação. Além disso, nada impede que também os valores semânticos sejam submetidos ao tratamento combinatório da máquina. Do ponto de vista semântico, a máquina produz desconcertantes. (Machado, 1993, 173)
Portanto, podemos perceber que a mudança de um componente não oferece uma variante de conteúdo, mas sim um conteúdo novo. Com isso, a máquina não substituiu a criação natural e nem nivelou, entretanto houve uma integração, o que se pode evidenciar numa outra criação.
Para darmos densidade a esta reflexão, vamos relacionar alguns itens e tentar estruturá-los à teoria de Lótman. Aliás, estruturalismo e semiótica são eixos essenciais para compreender Lótman. A semiótica tem como base refletir e estudar os signos e os sistemas de signos. Analisa as suas características, suas combinações dentro ou fora de um sistema e, até mesmo, a relação entre sistemas. Diante deste percurso acreditamos, com base em Jakobson e Lótman, que o sistema só pode ser compreendido em função da estrutura. Em Semiótica Russa, de Bóris Schnaiderman, há citações do trabalho de Levi-Strauss, onde ele traça um longo percurso no capítulo Tipologia Estrutural e Folclore, discorrendo sobre o mito, e ele admite o caráter sistêmico das estruturas.
Por isso, Strauss faz questão de frisar que na estrutura há uma correlação dos elementos que a constituem, sendo que qualquer alteração em um dos elementos implica a alteração de todo o conjunto. Pensando desta forma, vamos expor a seguir uma situação que achamos qualificada para esse contexto. Verificamos em Kaspar Hauser 1 que o homem K. Hauser não tem habilidade para relacionar-se com o ambiente que o circunda. O mundo a todo momento lhe envia sinais, mas ele não consegue transformá-los em signos, portanto não consegue se relacionar. O que notamos é que, para Hauser, a significação do mundo rompeu antes da codificação lingüística, por isso os signos são por ele ignorados. Portanto, como os signos são responsáveis para organizar as informações e são responsáveis para se estabelecer a comunicação na sociedade, sendo, pois, elementos que constituem a linguagem. Hauser não conseguindo decodificá-la, não se relaciona com o mundo (a sociedade). Desta forma, pode-se afirmar com segurança que a linguagem é todo esse sistema organizado, que serve como meio de comunicação e se utiliza de signos. E, buscando o viés lotmaniano, a linguagem é compreendida em:
a) linguagem natural;
b) linguagem artificial;
c) linguagem secundária.
A linguagem natural, segundo Lótman, são as línguas naturais como o português, francês etc. A língua artificial é a linguagem das máquinas, que são sinais convencionais. E, finalmente, a linguagem secundária são os constituintes dos sistemas modelizantes secundários.
Pensando na ciência ou no avanço da modernidade como um todo, o conhecimento se faz de forma necessária e cada vez mais acelerada. Com isso, a necessidade da linguagem é um avanço vital, logo se tem um aumento na quantidade de linguagens. Esse fato fica evidente ao examinarmos a literatura.
Por exemplo, ao analisar a estética barroca em relação à estética romântica, iremos perceber que há diferença entre estilo e época, mas essa compreensão, essa análise se dão devido à língua. Isto é, para chegarmos a esta conclusão, foi necessário entender a linguagem, verificar o aumento de suas possibilidades, com a ampliação dos recursos das ciências, das características, das formas de externar o sentimento humano, das artes e, porque não dizer também, das máquinas, havendo, portanto, um aumento quantitativo de linguagem que se deu de uma época para a outro. Além disso, foi necessário, também, entender a vida, decodificar e codificar informações. Para Lótman isso seria um processo de comunicação que reúne dois conceitos fundamentais: Arte e Linguagem, já que qualquer obra de arte é uma comunicação em linguagem artística. Ela (linguagem) se organiza de forma muito singular. Se voltarmos nossas atenções ao esquema de (Jakobson, 1995:123) com relação à linguagem, verificamos que:
Contexto ® ® ½ ½ Emissor Mensagem Receptor ½ ½ Código ® ®
são elementos da comunicação. E como estamos afirmando que a arte é comunicação, uma forma singular ou, melhor dizendo, uma linguagem artística, certamente, envolverá dois ou mais interlocutores, então teríamos com base no gráfico da comunicação:
Contexto ® ® ½ ½ Emissor Arte Receptor ½ ½ Código ® ®
Assim sendo, a obra de arte se configura como uma comunicação em linguagem artística.
Mas, ao pensarmos a arte como informação, como transmissora de uma mensagem, segundo nosso esquema baseado em Jakobson, iremos verificar que o código tem um papel expressivo. O emissor deverá estabelecer uma transformação do código, na língua natural, atingindo ou estabelecendo um comum entendimento com a consciência do receptor. Devemos entender e levar em consideração que o receptor possui uma "reserva" ou "memória" histórica, cultural, emocional etc. Assim a obra de arte, ou até mesmo nessa linha de raciocínio, podemos dizer o texto artístico, também, oferecerá ao receptor, a cada leitor, diferentes formas de interação, de informação. Acreditamos que cada leitor caminhará no terreno interpretativo, segundo a dimensão de sua compreensão, ou "limitado" na sua compreensão. Assim, pode-se verificar que, a partir de uma única obra de arte, aparecerá "n(s)" comunicações, e estas enviarão ao leitor, ou interpretante, diferentes informações. Uma estrutura que possa explicar este fato, segundo Lótman, está na entropia.
Entretanto, para continuarmos nosso percurso, vamos procurar entender a entropia, a partir do ponto de vista da física, de onde a palavra se originou, uma vez que esta palavra possui extensa dimensão dentro do contexto das ciências em geral. Então, iremos associar ao nosso contexto, isto é, ao contexto da arte e ciência. Vejamos:
As partículas de um sistema tendem a sofrer uma equipartição de energia e equipartição do espaço. Coloquemos dois corpos de temperaturas diferentes em contato. Sabe-se que dentro de certo tempo eles possuirão a mesma temperatura, ou seja, entrarão em equilíbrio térmico. Mas por que aconteceu isto? Diferentes temperaturas significam diferentes energias cinéticas nas partículas mesmo que as substâncias em contato sejam iguais. É que a energia tende a distribuir-se uniformemente, ou seja, uma obediência à entropia. (Feltre-Yoshinago, 1977, 292-293)
Portanto, quando nos referirmos à arte, ou ao texto artístico, verificamos que há uma diversidade de informações a partir de um único instrumento. Daí, Lótman recorrer ao termo entropia. A entropia na linguagem é:
a) diversidade, quantidade com determinado sentido (capacidade de a linguagem transmitir uma informação de sentido);
b) variações, flexibilidade da linguagem - possibilidade de transmitir um mesmo conteúdo pelos mais diversos meios.
Assim, segundo nosso entendimento da teoria de Lótman, a entropia é o desvio da norma de interação (relação) entre o leitor (interpretante) e arte ou texto artístico. Fazendo com que aja entre o emissor e o receptor situações diversificadas, a entropia leva a linguagem a ser decodificada diferentemente pelos receptores. Desta forma, temos a presença da entropia lotmaniana, fazendo da semiótica um terreno muito fértil e cada vez mais promissor.
O homem como sistema semiótico
Uma vez que este trabalho tem como proposta dialogar com os conceitos da semiótica e, em especial, a semiótica lotmaniana, não poderíamos deixar o homem, sistema semiótico por excelência, ignorado deste universo de significação. Como o homem é uma usina geradora de sistemas semióticos, isso nos dá uma garantia de ousar dizer que tudo é signo. Pois, para que algo funcione como signo, este algo tem de estar materializado numa existência muito própria, que deve ter um lugar no mundo (real ou fictício) e reagem em relação aos outros existentes de seu universo. Mas, na linguagem lotmaniana e principalmente no estudo das culturas, essa relação de reagir do signo, Lótman denomina-a de organização. Portanto, é o homem o ser capaz de operacionalizar estes signos ¾ a linguagem é um sistema de signos ¾ logo, a linguagem é um sistema organizado de comunicação. Mas, cabe ao papel da cultura, organizar este sistema, este universo de signos e estruturá-lo. Antes de darmos profundidade ao percurso desta nossa explicitação, achamos interessante buscar um viés que antecede este percurso. Pois bem, há uma definição de cultura que tem o seguinte posicionamento: a cultura é determinada historicamente e gera um determinado modelo cultural, um modelo próprio. Mas, em contrapartida, Lótman nos diz que há dois traços distintos de cultura. Vejamos:
a) a cultura não representa um conjunto universal;
b) a cultura representa um subconjunto organizado.
Portanto, a partir destas duas colocações emerge o termo não-cultura.
Vejamos graficamente:
Não-cultura
Cultura
Pelo gráfico podemos notar que a cultura é o subconjunto da não-cultura. Ou, ainda, dizer que a cultura está contida na não-cultura. Daí, a passagem da não-cultura para a cultura se dá através da culturalização, sendo o homem (sistema semiótico) capaz de operacionalizar e produzir sistemas modelizantes e para isso houve a ocorrência da intervenção de um sistema de signos. Entretanto, Lótman nos chama a atenção quando diz:
A semiótica da cultura não consiste apenas no fato de que a cultura funciona como um sistema de signos. É necessário sublinhar que já a relação com o signo e à signicidade representa uma das características fundamentais da cultura. (Lótman,1981,45)
Graficamente podemos observar da seguinte forma:
a interseção é o código da cultura
A relação de:
signo ® signicidade ® cultura ® (resulta no processo de comunicação) ® comunicação.
Tem-se um processo de comunicação, quando as possibilidades de um sistema de significação são utilizadas não só para produzir "fisicamente" expressões, mas também para produzir diversos fins práticos. Quando os requisitos para a execução de um processo são socialmente reconhecidos e precedem o próprio processo, devem ser registrados como regras (regras de competência processual) e só podem ser considerados por uma teoria de produção física dos signos depois de codificados.
Desta forma, a semiótica estuda os processos culturais como processos de comunicação. Pois, segundo Lótman, os sistemas modelizantes secundários (como todo os sistemas semióticos) são construídos tendo como tipo-modelo a linguagem. Uma vez que o homem possui a consciência lingüística, todos os aspectos sobrepostos a esta consciência podem ser definidos como sistemas modelizantes secundários. Mas não podemos generalizar (baseado na consciência lingüística do homem) e dizer que toda a informação resulta num processo de significação, porque um sinal não significa necessariamente um signo, e o emissor, no caso deste sinal pode ser uma máquina (inteligência artificial). Sendo a máquina o destinatário, o sinal não tem nenhum poder de significante, apesar de ter havido passagem de informação, mas não existe significação. No entanto, já no caso do homem ocorre o processo de significação, pois o sinal solicita uma resposta interpretativa por parte do destinatário. Este processo de significação só se verifica quando existe um código. E, segundo Jakobson, no processo de transmissão da informação, são utilizados dois códigos, isto é, um código tem como finalidade cifrar a informação, e o outro, decifrar a informação. Portanto, a relação de significação existe toda vez que um código estabelece uma correspondência válida para todo destinatário possível. Isto se dá pela cultura ser um fenômeno social 2 e ser vista como uma memória. Mas, uma vez sendo uma memória da coletividade, pressupõe um sistema de regras semióticas pelas quais o homem se converte em cultura.
Conclusão
Percorrendo os conceitos de Lótman e, com base em tais conceitos, pudemos verificar, através do percurso escolhido por nós, que o homem, além de ser uma usina geradora de sistemas semióticos, está sujeito aos seus próprios sistemas, ou seja, o homem está determinado pelos sistemas culturais por ele criados. Isso não quer dizer que sua capacidade de criar novos sistemas e de ser capaz de operacioná-los esteja num nível de redução, pelo contrário, o nível de sua ampliação se faz além da proporção de criação. Todo processo de criação pressupõe a simbiose do homem e sua cultura, levando-o buscar recursos na coletividade, na memória coletiva, incorporando criativamente esses recursos e recriando-os.
Mas, pensando, nesta interação homem/cultura, podemos dizer que o homem se converte em cultura. Portanto, inferimos que há um ciclo em constante movimentação, em constante criação, e como o homem é o centro, acreditamos que isso representa um moto-contínuo. Percebemos, então, que o estudo desta relação entre homem e cultura é possível de ser aprofundado, se nos debruçarmos na semiótica da cultura, fundamentada, principalmente nestes teóricos experimentais: Jakobson e Lótman, pois suas teorias permitem avançar na construção de sistemas de signos sobre o modelo da língua.
Notas:
1. Izidoro BLIKSTEN, Kaspar Hauser ou Fabricação da Realidade, p.17
(2) Isso não exclui a possibilidade, segundo Lótman, de haver uma cultura individual, caso cada um se interprete a si mesmo como representante da coletividade.
REFERÊNCIAS
BLIKSTEN, Izidoro. (1990) Kaspar Hauser ou Fabricação da Realidade. São Paulo:Cultrix.
FELTRE, R. YOSHINAGAS,S. (1977) Físico - Químico. São Paulo: Editora Moderna.
JAKOBSON. Roman.(1995) Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix
LÓTMAN, Iury. (1978) A Estrutura do Texto Artístico. Lisboa: Estampa
LÓTMAN, I. USPENSKII, B. IVANÓV, V. (1981) Ensaios de Semiótica
Soviética. Lisboa: Livros Horizontes.
MACHADO, Arlindo. (1993). Máquina e Imaginário: o desafio das poéticas
Tecnológica. São Paulo: Edusp.
RECTOR, M. NEIVA, E. (1997) Comunicação Na Era Pós - Moderna.
Petrópolis: Ed. Vozes.
SCHNAIDERMAN, Bóris. (1979) Semiótica Russa. São Paulo: Perspectiva
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